quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Michael Burawoy: marxismo, sociologia e companheirismo

Imaginem o seguinte cenário: ao longo de um par de semanas entre fevereiro e março de 2011, cerca de dezessete estudantes haviam sido presos pela polícia de Berkeley por participarem de protestos pacíficos no campus contra um novo programa de “racionalização” de recursos que a direção da universidade estava implementando. O mal-estar existente entre os estudantes que circulavam pelo campus nesses dias era facilmente perceptível.

Logo após entrar numa sala lotada para assistir minha aula de teoria sociológica com Michael, alguns estudantes anunciaram que nove manifestantes haviam conseguido subir no telhado de Wheeler Hall, acorrentando-se uns aos outros em protesto contra as prisões e exigindo que todas as acusações contra os presos fossem imediatamente retiradas. Fora do prédio ocupado, a polícia ameaçava prendê-los, o que poderia causar uma tragédia devido à altura de uns vinte metros que separa o estreito parapeito onde eles estavam do solo.

Michael, então, nos convidou para uma aula em frente ao prédio ocupado. O tema planejado para aquela sessão era o livro Vigiar e punir de Michel Foucault. Depois de nos sentarmos na escadaria de Wheeler Hall, logo abaixo dos manifestantes acorrentados, bloqueando o acesso ao prédio, Michael começou sua aula que, posteriormente, foi apelidada por nós de “Foucault para o povo”. Ao longo de uma hora, ele conectou brilhantemente a teoria foulcaultiana à história recente da universidade, demonstrando a atualidade da sociologia crítica.

As condições para uma aula como essa eram bem difíceis: um helicóptero da polícia ficava sobrevoando o telhado do prédio fazendo um barulho infernal, enquanto policiais ao nosso redor ameaçavam retomar Wheeler à força. Após o fim da exposição, permanecemos por algumas horas bloqueando a entrada, enquanto uma comissão estudantil negociava com a reitoria alguma solução para o impasse.

Esse processo levou algumas horas e lembro-me de cenas engraçadas: um jogador de futebol americano da universidade que fazia o curso de Michael arremessou várias garrafas plásticas de água para os nove acorrentados no telhado. Na sequência, alguns alunos conseguiram improvisar um dispositivo com um balde e uma corda capaz de chegar até o telhado a fim de levar comida aos estudantes acorrentados. Ao final, os esforços foram recompensados: praticamente todas as exigências dos alunos foram acolhidas pela universidade e eles puderam descer do telhado em segurança.

Assisti a aula de Michael ao lado de meu mestre e amigo, Peter Evans, que, sabendo do que acontecia, terminou seu curso de pós mais cedo para poder manifestar sua solidariedade aos ocupantes. Sinceramente, acredito que a presença de Michael nesse protesto foi central para sensibilizar a reitoria da universidade a atender as demandas dos manifestantes. Esse era Michael: nenhum outro professor na rica história de ativismo de Berkeley foi tão longe em seu compromisso ético com seus estudantes do que esse sociólogo nascido em Manchester.

A notícia de sua morte na segunda-feira, dia 3 de fevereiro de 2025, após um atropelamento com fuga nas proximidades de seu apartamento em Oakland, chocou a comunidade sociológica internacional. Michael havia se aposentado em 2023 do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley, após 47 anos da mais intensa e generosa dedicação a seus estudantes, colegas e orientandos. Desde os anos 1970, foi um baluarte da sociologia crítica, além de um dos intelectuais marxistas mais destacados de sua geração.

Professor lendário, era capaz de arrebatar salas enormes com sua presença carismática amparada num bom humor inesgotável. Ao mesmo tempo, tinha uma sensibilidade muito individualizada: Michael costumava memorizar meia dúzia de nomes de estudantes por aula, escrevendo-os num pequeno canto da lousa. No final do curso, ele conseguia se lembrar dos nomes de praticamente todos os seus estudantes – ao menos, dos mais participativos.

Sempre revestia sua atenção aos estudantes com bom-humor. Certa vez, uma estudante entrou em contato com ele dizendo que teria que faltar à aula, pois havia cortado sua mão abrindo um abacate e precisara ir à enfermaria levar alguns pontos. Na sessão seguinte, Michael começou a aula apresentando um tutorial sobre como cortar um abacate com segurança. Ele era esse tipo de professor. Incrivelmente atencioso e bem-humorado.

Como orientador, os relatos são incontáveis a respeito do cuidado, do interesse e do envolvimento profundo, fraterno e incrivelmente proficiente que ele mantinha com o trabalho de pesquisa de seus pupilos. Michael tinha o hábito de pagar jantares nos melhores restaurantes de Berkeley para seus assistentes de ensino. Não surpreende que tantos doutorandos quisessem trabalhar com ele. Isso sem mencionar que Michael adorava coordenar os esforços de pesquisa de seus orientandos, articulando-os em amplos projetos comparativos globais. Isso rendeu algumas coletâneas que se transformaram em livros de referência no mundo todo. Não é de se estranhar que, assim como suas aulas de graduação, seus seminários na pós-graduação fossem tão concorridos.

Todo esse compromisso com seus estudantes decorria de um profundo senso de solidariedade. Algo que o inspirava em seu próprio trabalho de pesquisa, enraizando-se nas bases de seu método científico. Na história da sociologia, Michael é a maior referência do método do estudo de caso ampliado desenvolvido e aperfeiçoado a partir da Escola Antropológica de Manchester. Antes de mais nada, trata-se de um método científico incrivelmente exigente de produção de dados empíricos, metodicamente formalizado por ele em seu livro Marxismo sociológico, e incomparável na análise das microdeterminações dos macroprocessos de reprodução e de transformação social.

Um método desenvolvido a partir de um vai-e-vem entre teoria e empiria, conectando o passado ao presente em antecipação ao futuro a partir da reflexão crítica e contextualizada do sociólogo como um observador participante do mundo social. Para tanto, é necessário que a sociologia tenha um forte enraizamento moral. Um enraizamento capaz de expressar a natureza única das relações sociais. Para Michael, a história humana é socialmente construída e, portanto, pode ser socialmente reconstruída – de preferência, de uma maneira mais justa.

Daí o enraizamento moral da sociologia. Valores como solidariedade, justiça, igualdade, liberdade (“para quê?” e “para quem?”), são partes incontornáveis de nossas escolhas científicas quando atuamos como sociólogos. Ao invés de evitar os valores, algo que seria impossível, seria melhor abraçá-los de forma reflexiva, aproveitando seu potencial heurístico. As bases epistemológicas, teóricas e empíricas dessa ferramenta vieram de lugares inusitados para um acadêmico: uma mina de cobre em Zâmbia, uma fábrica de motores em Chicago, uma siderúrgica na Hungria, uma fábrica de móveis e divisórias modulares na Rússia.

Trabalhando em quatro países diferentes como operário não-qualificado, ele poliu suas lentes, investigando quatro grandes transformações históricas: a descolonização africana, a consolidação do fordismo, o colapso do socialismo burocrático de Estado e o advento do neoliberalismo. Para tanto, Michael adotou em suas observações participantes o ponto de vista dos “de baixo”, em especial, dos operários. A inspiração teórica que o impulsionou ao longo de décadas foi uma síntese entre um marxismo heterodoxo apoiado, sobretudo, nas obras de autores como Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Leon Trótski, Frantz Fanon e, mais recentemente, W. E. B. Du Bois, e a tradição sociológica radical, tendo C. Wright Mills e Karl Polanyi à frente.

No início dos anos 1990, ao lado de seu melhor amigo, Erik Olin Wright, Michael engajou-se em um amplo projeto teórico de reconstrução do “marxismo sociológico” – definido por eles como a “teoria da reprodução contraditória das relações sociais capitalistas” – cujo objetivo era resgatar a potência emancipatória da teoria marxista, desmantelada após o colapso do socialismo burocrático de Estado. Esse programa teórico-político foi levado adiante por meio de duas grandes iniciativas: Erik Olin Wright engajou-se na construção do projeto das “utopias reais”, enquanto Michael desenvolveu sua proposta por uma “sociologia pública”.

Ambos levaram adiante a empreitada de “reconstruir o marxismo” convidando a comunidade sociológica para fazer parte de um amplo movimento social de transformação do capitalismo por meio do engajamento crítico com os diferentes públicos, acadêmicos e extra-acadêmicos, que compõem o mundo da sociologia. Erik e Michael foram presidentes da Associação Sociológica Americana (ASA) e Michael globalizou sua atuação tornando-se presidente da Associação Sociológica Internacional após uma campanha eleitoral em que visitou 44 países diferentes, debatendo com sociólogos do mundo todo seu apelo por uma sociologia pública.

A sociologia pública nada mais é do que uma sociologia crítica e reflexiva, engajada prioritariamente com públicos extra-acadêmicos, e comprometida com valores emancipatórios: justiça social, liberdade, igualdade, democracia e solidariedade. Michael dizia que se o objeto da ciência política era o Estado, e o da economia era o mercado, o da sociologia era a sociedade civil – suas contradições e seus desafios históricos. A relação da sociologia pública com os movimentos sociais progressistas que desafiaram a mercantilização do trabalho, da natureza, do dinheiro e do conhecimento, mundo afora, a partir da crise da globalização neoliberal de 2008, é muito transparente.

Ao mesmo tempo, Michael sempre enfatizou a necessidade de investigarmos os movimentos sociais regressivos, como o nacionalismo autoritário, por exemplo, que surgiram em diferentes sociedades nacionais a partir de meados dos anos 2010, e que, atualmente, impulsionam a atual ofensiva da extrema-direita em escala global. A sociologia pública seria uma ferramenta capaz de revelar as relações, as estruturas e os processos sociais por trás da multiplicação desses “sintomas mórbidos” (Gramsci). Para ele, esse conhecimento crítico seria estrategicamente central para que a atual onda reacionária pudesse ser melhor compreendida e enfrentada por forças democráticas renovadas.

Em 2014, após o fim de seu mandato como presidente da ISA, Michael retornou a Berkeley, onde assumiu a direção da associação dos docentes da universidade, defendendo em especial os interesses dos professores-assistentes sem estabilidade que atuam em condições precárias no interior do sistema universitário público da Califórnia. Sua atuação em defesa da greve dos assistentes de ensino em 2023, por exemplo, demonstrou uma vez mais seu compromisso político com um mundo social mais justo.

Aliás, ao longo de sua vida, não foram poucos seus engajamentos ao lado das causas da emancipação humana: o movimento de libertação nacional de Zâmbia, a campanha contra o apartheid sul-africano, a luta feminista contra o assédio sexual nas universidades, a campanha contra a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, a luta contra o genocídio do povo palestino na Faixa de Gaza, tema de seu último artigo, ainda não publicado. Na história da sociologia mundial, nunca alguém desenvolveu pesquisas de campo em tantos países diferentes, engajando-se politicamente em causas tão centrais para a humanidade.

E apesar de todo seu sucesso acadêmico mundial, trabalhando por 47 anos numa das universidades mais prestigiadas do mundo, Michael vivia num modesto apartamento comprado no início dos anos 1980 com seu salário de professor assistente em sua amada Oakland. Trata-se de uma cidade portuária relativamente pobre e com índices de violência social considerados alarmantes para os padrões estadunidenses. Nos anos 1960, Oakland testemunhou o nascimento do Partido Pantera Negra pela Auto-defesa (Black Panther Party for Self-Defense), até hoje a experiência política organizativa marxista mais importante da história dos Estados Unidos.

A solidariedade, a sensibilidade e o compromisso que Michael manifestava nas relações com seus estudantes, refletiam a maneira como ele cultivava suas relações pessoais. Todos aqueles que tiveram o privilégio e a felicidade de o conhecer sabem que Michael era simplesmente formidável. Uma imagem que não me sai da cabeça desde que soube de sua morte é ele esparramado no chão da sala de minha antiga casa em Berkeley com minhas duas filhas – à época, com três e cinco anos – montando uma ferrovia de madeira que ele havia comprado como presente de aniversário de uma delas. O brinquedo era enorme, com um monte daquelas peças de encaixar. Michael não apenas montou tudo pacientemente, com a “ajuda especializada” das crianças, como ficou um tempão brincando com as duas depois do brinquedo estar todo montado…

Michael nunca teve um carro. Ele era um ciclista conhecido na região da Baía de San Francisco. Adorava pedalar pelos morros e explorar as belezas da região. Uma dessas grandes injustiças da vida é que ele foi morto por um carro, atravessando uma avenida muito perto de seu apartamento. Hoje, a grande família ampliada que ele cultivou ao longo dos anos, seus amigos, colegas e estudantes, exigem das autoridades policias de Oakland justiça para Michael e a solução célere desse crime. Ao mesmo tempo, sua família celebra um legado único e maravilhoso de conhecimento, empatia, generosidade, gentileza, paixão, sabedoria e solidariedade.

 

Fonte: Por Ruy Braga, no Blog da Boitempo

 

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