Michael Burawoy: marxismo,
sociologia e companheirismo
Imaginem o seguinte cenário: ao longo de um par de
semanas entre fevereiro e março de 2011, cerca de dezessete estudantes haviam
sido presos pela polícia de Berkeley por participarem de protestos pacíficos no
campus contra um novo programa de “racionalização” de recursos que a direção da
universidade estava implementando. O mal-estar existente entre os estudantes
que circulavam pelo campus nesses dias era facilmente perceptível.
Logo após entrar numa sala lotada para assistir
minha aula de teoria sociológica com Michael, alguns estudantes anunciaram que
nove manifestantes haviam conseguido subir no telhado de Wheeler Hall,
acorrentando-se uns aos outros em protesto contra as prisões e exigindo que
todas as acusações contra os presos fossem imediatamente retiradas. Fora do
prédio ocupado, a polícia ameaçava prendê-los, o que poderia causar uma
tragédia devido à altura de uns vinte metros que separa o estreito parapeito
onde eles estavam do solo.
Michael, então, nos convidou para uma aula em
frente ao prédio ocupado. O tema planejado para aquela sessão era o livro Vigiar
e punir de Michel Foucault. Depois de nos sentarmos na escadaria de
Wheeler Hall, logo abaixo dos manifestantes acorrentados, bloqueando o acesso
ao prédio, Michael começou sua aula que, posteriormente, foi apelidada por nós
de “Foucault para o povo”. Ao longo de uma hora, ele conectou brilhantemente a
teoria foulcaultiana à história recente da universidade, demonstrando a
atualidade da sociologia crítica.
As condições para uma aula como essa eram bem
difíceis: um helicóptero da polícia ficava sobrevoando o telhado do prédio
fazendo um barulho infernal, enquanto policiais ao nosso redor ameaçavam
retomar Wheeler à força. Após o fim da exposição, permanecemos por algumas
horas bloqueando a entrada, enquanto uma comissão estudantil negociava com a
reitoria alguma solução para o impasse.
Esse processo levou algumas horas e lembro-me de
cenas engraçadas: um jogador de futebol americano da universidade que fazia o
curso de Michael arremessou várias garrafas plásticas de água para os nove
acorrentados no telhado. Na sequência, alguns alunos conseguiram improvisar um
dispositivo com um balde e uma corda capaz de chegar até o telhado a fim de
levar comida aos estudantes acorrentados. Ao final, os esforços foram
recompensados: praticamente todas as exigências dos alunos foram acolhidas pela
universidade e eles puderam descer do telhado em segurança.
Assisti a aula de Michael ao lado de meu mestre e
amigo, Peter Evans, que, sabendo do que acontecia, terminou seu curso de pós
mais cedo para poder manifestar sua solidariedade aos ocupantes. Sinceramente,
acredito que a presença de Michael nesse protesto foi central para sensibilizar
a reitoria da universidade a atender as demandas dos manifestantes. Esse era
Michael: nenhum outro professor na rica história de ativismo de Berkeley foi
tão longe em seu compromisso ético com seus estudantes do que esse sociólogo
nascido em Manchester.
A notícia de sua morte na segunda-feira, dia 3 de
fevereiro de 2025, após um atropelamento com fuga nas proximidades de seu
apartamento em Oakland, chocou a comunidade sociológica internacional. Michael
havia se aposentado em 2023 do Departamento de Sociologia da Universidade da
Califórnia em Berkeley, após 47 anos da mais intensa e generosa dedicação a
seus estudantes, colegas e orientandos. Desde os anos 1970, foi um baluarte da
sociologia crítica, além de um dos intelectuais marxistas mais destacados de
sua geração.
Professor lendário, era capaz de arrebatar salas
enormes com sua presença carismática amparada num bom humor inesgotável. Ao
mesmo tempo, tinha uma sensibilidade muito individualizada: Michael costumava
memorizar meia dúzia de nomes de estudantes por aula, escrevendo-os num pequeno
canto da lousa. No final do curso, ele conseguia se lembrar dos nomes de
praticamente todos os seus estudantes – ao menos, dos mais participativos.
Sempre revestia sua atenção aos estudantes com
bom-humor. Certa vez, uma estudante entrou em contato com ele dizendo que teria
que faltar à aula, pois havia cortado sua mão abrindo um abacate e precisara ir
à enfermaria levar alguns pontos. Na sessão seguinte, Michael começou a aula
apresentando um tutorial sobre como cortar um abacate com segurança. Ele era
esse tipo de professor. Incrivelmente atencioso e bem-humorado.
Como orientador, os relatos são incontáveis a
respeito do cuidado, do interesse e do envolvimento profundo, fraterno e
incrivelmente proficiente que ele mantinha com o trabalho de pesquisa de seus
pupilos. Michael tinha o hábito de pagar jantares nos melhores restaurantes de
Berkeley para seus assistentes de ensino. Não surpreende que tantos doutorandos
quisessem trabalhar com ele. Isso sem mencionar que Michael adorava coordenar
os esforços de pesquisa de seus orientandos, articulando-os em amplos projetos
comparativos globais. Isso rendeu algumas coletâneas que se transformaram em
livros de referência no mundo todo. Não é de se estranhar que, assim como suas
aulas de graduação, seus seminários na pós-graduação fossem tão concorridos.
Todo esse compromisso com seus estudantes decorria
de um profundo senso de solidariedade. Algo que o inspirava em seu próprio
trabalho de pesquisa, enraizando-se nas bases de seu método científico. Na
história da sociologia, Michael é a maior referência do método do estudo de
caso ampliado desenvolvido e aperfeiçoado a partir da Escola Antropológica de
Manchester. Antes de mais nada, trata-se de um método científico incrivelmente
exigente de produção de dados empíricos, metodicamente formalizado por ele em
seu livro Marxismo sociológico, e incomparável na análise das
microdeterminações dos macroprocessos de reprodução e de transformação social.
Um método desenvolvido a partir de um vai-e-vem
entre teoria e empiria, conectando o passado ao presente em antecipação ao
futuro a partir da reflexão crítica e contextualizada do sociólogo como um
observador participante do mundo social. Para tanto, é necessário que a
sociologia tenha um forte enraizamento moral. Um enraizamento capaz de
expressar a natureza única das relações sociais. Para Michael, a história
humana é socialmente construída e, portanto, pode ser socialmente reconstruída
– de preferência, de uma maneira mais justa.
Daí o enraizamento moral da sociologia. Valores
como solidariedade, justiça, igualdade, liberdade (“para quê?” e “para quem?”),
são partes incontornáveis de nossas escolhas científicas quando atuamos como
sociólogos. Ao invés de evitar os valores, algo que seria impossível, seria
melhor abraçá-los de forma reflexiva, aproveitando seu potencial heurístico. As
bases epistemológicas, teóricas e empíricas dessa ferramenta vieram de lugares
inusitados para um acadêmico: uma mina de cobre em Zâmbia, uma fábrica de
motores em Chicago, uma siderúrgica na Hungria, uma fábrica de móveis e
divisórias modulares na Rússia.
Trabalhando em quatro países diferentes como
operário não-qualificado, ele poliu suas lentes, investigando quatro grandes
transformações históricas: a descolonização africana, a consolidação do
fordismo, o colapso do socialismo burocrático de Estado e o advento do
neoliberalismo. Para tanto, Michael adotou em suas observações participantes o
ponto de vista dos “de baixo”, em especial, dos operários. A inspiração teórica
que o impulsionou ao longo de décadas foi uma síntese entre um marxismo
heterodoxo apoiado, sobretudo, nas obras de autores como Antonio Gramsci, Rosa
Luxemburgo, Leon Trótski, Frantz Fanon e, mais recentemente, W. E. B. Du Bois,
e a tradição sociológica radical, tendo C. Wright Mills e Karl Polanyi à
frente.
No início dos anos 1990, ao lado de seu melhor
amigo, Erik Olin Wright, Michael engajou-se em um amplo projeto teórico de
reconstrução do “marxismo sociológico” – definido por eles como a “teoria da
reprodução contraditória das relações sociais capitalistas” – cujo objetivo era
resgatar a potência emancipatória da teoria marxista, desmantelada após o
colapso do socialismo burocrático de Estado. Esse programa teórico-político foi
levado adiante por meio de duas grandes iniciativas: Erik Olin Wright
engajou-se na construção do projeto das “utopias reais”, enquanto Michael
desenvolveu sua proposta por uma “sociologia pública”.
Ambos levaram adiante a empreitada de “reconstruir
o marxismo” convidando a comunidade sociológica para fazer parte de um amplo
movimento social de transformação do capitalismo por meio do engajamento
crítico com os diferentes públicos, acadêmicos e extra-acadêmicos, que compõem
o mundo da sociologia. Erik e Michael foram presidentes da Associação
Sociológica Americana (ASA) e Michael globalizou sua atuação tornando-se
presidente da Associação Sociológica Internacional após uma campanha eleitoral
em que visitou 44 países diferentes, debatendo com sociólogos do mundo todo seu
apelo por uma sociologia pública.
A sociologia pública nada mais é do que uma
sociologia crítica e reflexiva, engajada prioritariamente com públicos
extra-acadêmicos, e comprometida com valores emancipatórios: justiça social,
liberdade, igualdade, democracia e solidariedade. Michael dizia que se o objeto
da ciência política era o Estado, e o da economia era o mercado, o da
sociologia era a sociedade civil – suas contradições e seus desafios
históricos. A relação da sociologia pública com os movimentos sociais
progressistas que desafiaram a mercantilização do trabalho, da natureza, do
dinheiro e do conhecimento, mundo afora, a partir da crise da globalização
neoliberal de 2008, é muito transparente.
Ao mesmo tempo, Michael sempre enfatizou a necessidade
de investigarmos os movimentos sociais regressivos, como o nacionalismo
autoritário, por exemplo, que surgiram em diferentes sociedades nacionais a
partir de meados dos anos 2010, e que, atualmente, impulsionam a atual ofensiva
da extrema-direita em escala global. A sociologia pública seria uma ferramenta
capaz de revelar as relações, as estruturas e os processos sociais por trás da
multiplicação desses “sintomas mórbidos” (Gramsci). Para ele, esse conhecimento
crítico seria estrategicamente central para que a atual onda reacionária
pudesse ser melhor compreendida e enfrentada por forças democráticas renovadas.
Em 2014, após o fim de seu mandato como presidente
da ISA, Michael retornou a Berkeley, onde assumiu a direção da associação dos
docentes da universidade, defendendo em especial os interesses dos
professores-assistentes sem estabilidade que atuam em condições precárias no
interior do sistema universitário público da Califórnia. Sua atuação em defesa
da greve dos assistentes de ensino em 2023, por exemplo, demonstrou uma vez
mais seu compromisso político com um mundo social mais justo.
Aliás, ao longo de sua vida, não foram poucos seus
engajamentos ao lado das causas da emancipação humana: o movimento de
libertação nacional de Zâmbia, a campanha contra o apartheid sul-africano,
a luta feminista contra o assédio sexual nas universidades, a campanha contra a
guerra na Ucrânia e, mais recentemente, a luta contra o genocídio do povo
palestino na Faixa de Gaza, tema de seu último artigo, ainda não publicado. Na
história da sociologia mundial, nunca alguém desenvolveu pesquisas de campo em
tantos países diferentes, engajando-se politicamente em causas tão centrais
para a humanidade.
E apesar de todo seu sucesso acadêmico mundial,
trabalhando por 47 anos numa das universidades mais prestigiadas do mundo,
Michael vivia num modesto apartamento comprado no início dos anos 1980 com seu
salário de professor assistente em sua amada Oakland. Trata-se de uma cidade
portuária relativamente pobre e com índices de violência social considerados
alarmantes para os padrões estadunidenses. Nos anos 1960, Oakland testemunhou o
nascimento do Partido Pantera Negra pela Auto-defesa (Black Panther Party for
Self-Defense), até hoje a experiência política organizativa marxista mais importante
da história dos Estados Unidos.
A solidariedade, a sensibilidade e o compromisso
que Michael manifestava nas relações com seus estudantes, refletiam a maneira
como ele cultivava suas relações pessoais. Todos aqueles que tiveram o
privilégio e a felicidade de o conhecer sabem que Michael era simplesmente
formidável. Uma imagem que não me sai da cabeça desde que soube de sua morte é
ele esparramado no chão da sala de minha antiga casa em Berkeley com minhas
duas filhas – à época, com três e cinco anos – montando uma ferrovia de madeira
que ele havia comprado como presente de aniversário de uma delas. O brinquedo
era enorme, com um monte daquelas peças de encaixar. Michael não apenas montou
tudo pacientemente, com a “ajuda especializada” das crianças, como ficou um
tempão brincando com as duas depois do brinquedo estar todo montado…
Michael nunca teve um carro. Ele era um ciclista
conhecido na região da Baía de San Francisco. Adorava pedalar pelos morros e
explorar as belezas da região. Uma dessas grandes injustiças da vida é que ele
foi morto por um carro, atravessando uma avenida muito perto de seu
apartamento. Hoje, a grande família ampliada que ele cultivou ao longo dos
anos, seus amigos, colegas e estudantes, exigem das autoridades policias de Oakland
justiça para Michael e a solução célere desse crime. Ao mesmo tempo, sua
família celebra um legado único e maravilhoso de conhecimento, empatia,
generosidade, gentileza, paixão, sabedoria e solidariedade.
Fonte: Por Ruy Braga, no
Blog da Boitempo
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