A nova era da
prevenção contra a aids — e os desafios que complicam esses cuidados
Foi-se o tempo em
que a camisinha era a única
estratégia disponível para prevenir a infecção pelo HIV, o vírus
causador da aids.
Nos últimos anos,
diversas entidades — incluindo o Ministério da Saúde — adotaram a chamada
"mandala da prevenção", que congrega todos os métodos disponíveis
para evitar o patógeno.
Fazem parte da
mandala medidas clássicas, como usar preservativos, políticas de saúde pública, como garantir
acesso ao diagnóstico e ao tratamento e combater a transmissão vertical (a
passagem do HIV da mãe para o filho durante a gestação), e novas
abordagens, como os testes rápidos, a Profilaxia Pré-Exposição (Prep) e a
Profilaxia Pós-Exposição (Pep), sobre os quais falaremos adiante.
Por um lado,
especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a mandala dá liberdade e
permite individualizar melhor as medidas disponíveis, para que elas se adequem
à realidade de cada pessoa.
Por outro, eles
temem que o sistema tenha se tornado complexo demais para ser compreendido por
todo mundo — o que exige campanhas de educação e
conscientização mais frequentes.
Entenda a seguir
como a prevenção do HIV evoluiu nas últimas décadas e as novidades que são
esperadas para os próximos anos — com a promessa de até uma "vacina"
contra o vírus no horizonte.
·
Uma
perspectiva histórica
O antropólogo
Richard Parker, diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de
Aids (Abia), divide os métodos de prevenção do HIV em quatro grandes ondas.
“No começo da epidemia, no início dos anos
1980, não existia praticamente nada em termos de estratégias preventivas
oficiais em nenhum país. Como os governos basicamente negaram ou ignoraram o
problema, as comunidades mais afetadas precisaram se organizar para fazer a
prevenção", contextualiza o especialista, que também é professor titular
emérito de Saúde Pública, Ciências Sócio-Médicas e Antropologia na Universidade
de Columbia, nos Estados Unidos.
“Esse primeiro
modelo de prevenção comunitária começou especialmente nas comunidades gays, que
criaram as primeiras orientações sobre o uso da camisinha", complementa ele.
Parker destaca que,
na segunda onda, as campanhas oficiais focaram no comportamento das pessoas.
“E a mensagem
transmitida era horrorosa, cheia de culpas, quase terrorista, na linha ‘a aids
vai te pegar'", lembra ele.
“À época, a ideia
era que as pessoas tinham comportamentos de risco que precisavam ser
modificados de alguma maneira.”
A partir da metade
dos anos 1990, ativistas e cientistas sociais começaram a criticar essa
abordagem. Numa terceira onda de prevenção, eles passaram a chamar a atenção
para as questões estruturais da sociedade que colocavam as pessoas em risco de
se infectar com o HIV.
“Uma mulher pobre,
com um filho para alimentar e sem emprego, começa a trabalhar com sexo não
porque quer se colocar em risco. São as condições estruturais que fizeram ela
precisar disso", exemplifica ele.
“Ou seja,
desigualdades sociais, questões de gênero, opressão sexual de pessoas não
normativas e uma série de outras coisas condicionam esse risco, e é preciso
lidar com esses pontos", avalia Parker.
O especialista
pontua que esse modelo de pensamento dominou até meados de 2006, quando
começaram a surgir as primeiras discussões sobre a prevenção biomédica —
métodos de testagem rápida ou até mesmo remédios que, tomados regularmente,
reduzem praticamente a zero o risco de uma infecção pelo HIV.
Esse foi o embrião
para a Prep, a profilaxia pré-exposição.
“Só que todo mundo
ficou tão entusiasmado com a prevenção biomédica que alguns ficaram
preocupados: será que não estamos ignorando outras metodologias que não custam
tanto, mas que eventualmente são muito mais fáceis de administrar e
promover?", questiona Parker.
Foi nesse caldo de
debates e inovações que surgiu a estratégia de prevenção combinada, reunida num
esquema de mandala com 9 sessões diferentes.
A ideia desse
esquema visual é combinar uma série de estratégias que, juntas, diminuem o
risco de infecção pelo HIV em toda a sociedade.
No Brasil, a
mandala foi adotada pelo Ministério da Saúde e consiste em:
# Usar preservativo
interno e externo (conhecidos anteriormente como preservativo feminino e
masculino, respectivamente) e gel lubrificante (para diminuir o atrito e o
risco de fissuras na pele ou nas mucosas);
# Tratar todas as
pessoas vivendo com HIV/Aids — as medicações mantém a carga viral do paciente
bastante reduzida, o que praticamente elimina o risco de ele transmitir o vírus
para outros;
# Testagem regular
para o HIV, hepatites virais e outras IST's (infecções sexualmente
transmissíveis);
# Profilaxia
Pós-Exposição (Pep) — uso emergencial de medicamentos antirretrovirais para
impedir a infecção, que devem ser tomados de 2 a até 72 horas após a exposição
de risco ;
# Profilaxia
Pré-Exposição (Prep) — uso regular de medicamentos antirretrovirais para
prevenir a infecção pelo HIV;
# Prevenir a
transmissão vertical do HIV (da mãe para o filho, durante a gestação);
# Imunizar contra o
HPV e a hepatite B;
# Estratégias de
redução de danos;
# Diagnosticar e
tratar pessoas com IST’s e hepatites virais.
·
Mas
qual é a melhor forma de prevenção que existe?
“Aquela que o
paciente se sente bem, que ele vai aderir e adotar", responde o médico
Alexandre Naime Barbosa, coordenador científico da Sociedade Brasileira de
Infectologia.
“E o ideal é usar
estratégias combinadas. Por exemplo, fazer a Prep para prevenir o HIV e usar
camisinha para evitar outras IST's", complementa o infectologista, que
também é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
O médico
sanitarista e epidemiologista Draurio Barreira, diretor do Departamento de
HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis
do Ministério da Saúde, compara a evolução das estratégias preventivas ao que
aconteceu na pandemia recente, causada pelo coronavírus.
“No caso da
covid-19, num prazo muito curto, de pouco mais de um ano, houve toda uma
transformação nos meios de prevenção", começa ele.
“Primeiro vieram os
métodos de barreira. No caso da covid-19, a máscara e o isolamento. Já no HIV,
o preservativo.”
“Depois, para a
covid-19, surgiram as ferramentas biomédicas, como as vacinas", continua o
especialista.
Algo similar
aconteceu com o HIV a partir da chegada das medicações que compõem a Pep e a
Prep: essas opções têm uma alta taxa de eficácia, que beira os 100%, e
representaram uma nova forma de proteção para uma parcela importante da sociedade.
·
Limitações
e problemas da mandala
Barbosa avalia que
a adoção dos métodos descritos na mandala ainda é muito desigual no Brasil.
“Tanto no
consultório privado quanto na saúde pública, a prevenção do HIV depende muito
de uma percepção de risco, da pessoa sentir que está numa situação de
vulnerabilidade", diz ele.
Segundo o médico, o
acesso aos métodos preventivos ainda não é homogêneo — e, para mudar isso, é
preciso ampliar a chegada de informações e a conscientização sobre o vírus.
“Os pacientes que
vêm até o consultório em busca de prevenir-se contra o HIV geralmente são
indivíduos com bom poder aquisitivo, com mais anos de escolaridade, de cor de
pele branca… Isso tudo reflete o acesso à informação e uma percepção de
risco", observa o especialista.
Parker concorda que
a mandala “não é fácil de entender".
“Para compreender
toda a mandala, você praticamente necessita de um PhD [um doutorado]",
brinca ele.
“Precisamos usar
técnicas de educação popular, algo como uma pedagogia da prevenção, para capacitar
as pessoas, de modo que elas entendam todas as opções e como usá-las com
eficácia”, argumenta ele.
“As pessoas
precisam entender para ter controle do que estão fazendo, para que possam
decidir as coisas sem a tutela de médicos ou especialistas."
“E, para isso,
precisamos também atacar questões estruturais, lidar com a pobreza, criar
coalizões e ter uma resposta coletiva", complementa ele.
Barreira concorda
que as pessoas precisam ter “autonomia para escolher os métodos” e pontua que o
Ministério da Saúde está pensando em saídas para essa questão.
Uma das soluções
que está em discussão no governo, por exemplo, é o fornecimento de máquinas
dispensadoras de Prep, Pep e autoteste do HIV para municípios com serviços de
teleatendimento em saúde.
“A ideia é que as
pessoas não necessitem ir até uma unidade de saúde para ter acesso a essas
ferramentas. Elas apenas precisariam fazer uma consulta pelo celular, gerar um
QR code e ir até uma máquina dessas, que a gente pretende espalhar por metrôs,
rodoviárias e outros locais com grande circulação de pessoas", propõe o
médico.
“Também não dá para
a gestão aqui, do alto do Ministério da Saúde, em Brasília, definir qual é a
melhor prática para quem está no interior do Piauí. É preciso customizar a
prevenção para a realidade local", acrescenta ele.
·
Um
desafio de comunicação
Barbosa acredita
que o melhor caminho para transformar essa realidade e ampliar a prevenção do
HIV envolve a chamada comunicação por pares — ou seja, encontrar e empoderar
pessoas com capacidade de conversar (e serem ouvidas), especialmente pelos
grupos definidos como populações-chave (gays e outros homens que fazem sexo com
homens; pessoas trans; pessoas que usam álcool e outras drogas; pessoas
privadas de liberdade e trabalhadoras do sexo) e populações prioritárias
(adolescentes e jovens; negros; indígenas; indivíduos em situação de rua).
"Sou um homem,
professor universitário, heterossexual, cis, de alto poder aquisitivo… Muitas
vezes, por mais que eu seja treinado no assunto, não consigo ter um diálogo ou
chegar, por exemplo, numa mulher trans que trabalha com sexo", explica
ele.
Já Parker lembra
com saudades das campanhas contra o HIV que o Brasil fez no passado.
"Nos últimos
10 ou 15 anos, o Brasil abandonou sua tradição ousada de fazer uma prevenção
lúdica, que valorizava a cultura da sexualidade e do prazer que o país
possui", lamenta ele.
O
diretor-presidente da Abia lembra que uma das últimas campanhas do tipo
aconteceu em 2013, quando o Ministério da Saúde divulgou peças publicitárias
voltadas às prostitutas — o que resultou na demissão do então diretor do
departamento que cuidava de HIV e outras IST's.
"A
extrema-direita atacou as campanhas de prevenção e todo programa de aids
brasileiro, porque esses eram alvos fáceis e de grande sucesso", opina
ele.
"No fim do
governo Dilma e nos governos Temer e Bolsonaro, essas comunicações foram
censuradas e ficaram cada vez mais conservadoras", observa o antropólogo.
Barreira avalia
que, atualmente, "não existem condições políticas de voltar a fazer as campanhas
do passado".
"Hoje temos
uma onda conservadora não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. No passado,
não existia tanto conflito, a sociedade era menos dividida e os conversadores e
a extrema-direita tinham pouco poder", pontua o especialista.
O sanitarista diz
que, para lidar com todas esses entraves, o Ministério da Saúde traçou algumas
estratégias.
"A primeira
delas é nunca trabalhar de forma isolada, especialmente em assuntos mais
sensíveis", conta ele.
"Por exemplo,
na questão das drogas. Qualquer campanha que façamos sobre redução de danos
pode ter uma leitura, na parcela mais conservadora da sociedade, que estamos
estimulando o uso de substâncias, quando é justamente o contrário."
"Mas, se nós
fecharmos parcerias com o Ministério da Justiça, agências internacionais, as
Nações Unidas e organizações da sociedade civil que trabalham com esse tema há
muito tempo, conseguimos chegar até essas populações mais vulneráveis",
pontua Barreira.
O médico cita uma
outra iniciativa, focada em homens que fazem sexo com homens.
"Nós fizemos
uma parceria com um aplicativo de relacionamentos usado por esse público que,
quando acontece o ‘match’ [dois usuários mostram interesse um no outro],
abre-se uma caixa de diálogo no celular oferecendo de graça autoteste de HIV e
Prep."
A iniciativa está
sendo testada como um projeto-piloto em cinco cidades brasileiras. Em algumas
delas, esses métodos preventivos que fazem parte da mandala podem ser enviados
diretamente para a casa da pessoa. Em outras, o usuário recebe a orientação de
onde retirar o teste e o medicamento.
"Esse projeto,
que começou há poucos meses, está com uma aceitação enorme. Vamos avaliá-lo por
mais tempo para ver como ampliá-lo para o Brasil inteiro", informa o
representante do ministério.
"Acreditamos
que essa abordagem direcionada a alguns públicos pode ser mais efetiva, e
invisibiliza a campanha para pessoas que não fazem parte das populações-chave
que, se eventualmente virem uma propaganda de televisão na hora da novela, vão
se indignar e achar que estamos jogando dinheiro público fora", raciocina
Barreira.
Para o
especialista, essa estratégia "pode trazer uma falsa impressão de que o
ministério não tem feito campanhas".
"Mas as
campanhas atuais são visíveis para quem precisa delas. Isso é mais viável do
ponto de vista econômico e político", pontua ele.
·
Uma
luz no fim do túnel?
Embora a prevenção
do HIV tenha avançado bastante nas últimas décadas, os próximos anos prometem
trazer mais novidades.
A que mais empolga
as pessoas envolvidas nesse debate são as profilaxias de longa duração.
Isso porque a Prep
disponível hoje é feita a partir de comprimidos, que devem ser tomados todo o
dia.
Ainda que esse
método seja bastante efetivo, ele depende da memória e da iniciativa do
indivíduo — se ele se esquecer de tomar o remédio, pode se colocar num risco
imprevisto.
Para lidar com essa
questão, foi desenvolvida uma versão do medicamento cabotegravir cuja ação dura
dois meses.
Trata-se de uma
injeção intramuscular profunda, que precisa ser tomada a cada bimestre, e garante
uma alta proteção contra a infecção pelo HIV.
Essa solução já
está aprovada no Brasil pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde o
final de 2023, mas ainda não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) de
forma mais ampla.
Os especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o cabotegravir ainda traz algumas
barreiras importantes, como o fato de depender de uma injeção intramuscular nas
nádegas — para pessoas com próteses de silicone nessa região do corpo, por
exemplo, esse método de Prep se torna inviável.
Mas há outra
novidade no horizonte: o lenacapavir, outro remédio
usado como Prep a partir de uma injeção subcutânea, ou seja, mais superficial,
tomada de seis em seis meses.
Os resultados dos
estudos que avaliaram essa medicação mostraram uma alta taxa de eficácia e
foram apresentados durante a última Conferência Internacional sobre Aids,
realizada em julho na cidade de Munique, na Alemanha.
"Eu frequento
esse evento científico desde os anos 1990, e a edição deste ano foi certamente
uma das mais marcantes", afirma Barreira.
Embora
conceitualmente o medicamento não estimule nosso sistema imunológico a
reconhecer e atacar o HIV, o fato de ele ser aplicado de forma injetável a cada
seis meses e ter uma alta taxa de eficácia fez com que muita gente o comparasse
a uma vacina.
Afinal, quando esse
método estiver disponível (provavelmente a partir de 2026, segundo as projeções
mais recentes), bastará tomar uma dose por semestre para ficar protegido desse
vírus.
"Hoje nós
podemos trabalhar na perspectiva de ter uma 'vacina' contra a aids, ainda que
esse termo precise ser usado entre aspas", diz Barreira.
"Com a Prep
injetável semestral, nós começamos a ver uma luz no fim do túnel na erradicação
do HIV como um problema de saúde pública", comemora Barbosa.
Parker também vê o
avanço científico com bons olhos — mas chama a atenção para o risco de a aids
se tornar uma doença negligenciada nos próximos anos.
"A ciência
continuará a avançar e eventualmente até teremos uma cura para o HIV",
acredita ele.
"Mas eu tenho
muito pessimismo sobre o que acontece quando um sistema de um país, ou o
sistema global, decide que já fez o bastante em relação a uma doença",
admite ele.
"A História
está cheia de casos de pandemias e epidemias que foram controladas o suficiente
e deixaram de ser um problema relevante para justificar o investimento e a
continuidade das ações. É só ver o que aconteceu com a tuberculose e a
malária."
"Meu medo é
que ocorra o mesmo com a aids. Precisamos que os sistemas políticos continuem a
dar a devida atenção à doença", conclui o antropólogo.
Fonte: BBC News
Brasil
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