O que é o 'RG do
boi' e por que ele é importante para a Amazônia e o seu bife
Após dois anos de
discussão, e em meio a pressões de ambientalistas de um lado e de produtores e
exportadores do outro, o governo brasileiro lançou, no fim do ano passado, o
Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos.
O objetivo é que todo
o rebanho brasileiro seja identificado e
rastreado individualmente, desde o nascimento até o abate.
Atualmente, a
rastreabilidade é feita por meio da Guia de Trânsito Animal (GTA), um documento
obrigatório que o produtor emite para transportar um animal de um lugar para o
outro e, por fim, para o abate.
Mas a GTA é feita
por lotes e não contempla informações individuais de cada animal, apresentando
algumas fragilidades, como apontam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Por isso, a
iniciativa do novo sistema anunciado pelo governo foi celebrada tanto por
representantes de produtores quanto por ambientalistas, que apontaram, no
entanto, alguns pontos de atenção.
Marina Guyot,
gerente de Políticas Públicas do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e
Agrícola (Imaflora), diz que o plano representa o compromisso do governo
federal com informação de maior qualidade na cadeia de produção da carne.
"Por isso
estão chamando esse novo sistema de 'RG do boi", disse ela, que participou
ativamente das negociações com o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA).
Mas por que é
importante que o bife que o brasileiro come tenha RG?
·
O
que muda com as novas regras
O plano
recém-lançado se propõe a reunir diversas informações sobre cada um dos mais de
238,6 milhões de animais bovinos — e os 1,6 milhão de búfalos — contabilizados
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado.
Esses dados serão
fornecidos por meio de um registro pendurado na orelha do animal em um
"brinco-RG" que ele carregará do nascimento até o abate.
Ali, data e local
de nascimento, sexo, espécie, vacinas e as propriedades por onde o animal passou,
por exemplo, serão registrados.
Marina Guyot
ressalta que, no âmbito fitossanitário, essa rastreabilidade do animal é
fundamental para, por exemplo, facilitar o controle de doenças.
Nesse sentido, ela
diz que o plano coloca o Brasil em outro patamar em relação ao mercado externo,
dado que atende a exigências do acordo com a China, a maior compradora de carne
brasileira.
Já Roberto Perosa,
presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne
(Abiec), defende que o novo sistema atenderá aos mercados "mais exigentes
do mundo", incluindo a Europa, terceira maior compradora de carne do
Brasil, atrás somente da China e dos Estados Unidos.
·
Combate
ao desmatamento ilegal
Mas, diferentemente
da China, a Europa coloca exigências que vão além das regras fitossanitárias
impostas pelo gigante asiático.
Em abril de 2023,
na esteira de uma série de cobranças por medidas contra o desmatamento ilegal,
a União Europeia aprovou o Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento
(EUDR, na sigla em inglês).
A nova regulação
proíbe a importação e o comércio, no bloco europeu, de produtos derivados de
algumas commodities — gado, soja, óleo de palma, café, cacau, madeira e
borracha — provenientes de áreas de floresta desmatadas após 31 de dezembro de
2020.
Conhecida como lei
antidesmatamento europeia, a previsão para ser colocada em prática era partir
de 30 de dezembro do ano passado.
Mas, ao longo do
ano passado inteiro, o Planalto se esforçou para tentar ao menos
adiar a
implantação da lei classificada internamente como "discriminatória, unilateral e
punitiva".
Até que, em
novembro, pouco menos de dois meses antes de ser oficialmente instituída, o
Parlamento europeu aprovou a postergação da lei por um ano.
Para atender à
exigência da União Europeia, a rastreabilidade individual será fundamental.
E, embora o Brasil
seja o maior exportador de carne bovina do mundo há mais de vinte anos, até
hoje o país ainda não tinha um sistema efetivo de rastreabilidade individual de
cada animal.
Agora, às vésperas
de sediar em Belém do Pará a COP, a cúpula de meio ambiente das Nações Unidas,
o Brasil corre contra o relógio para tentar se adequar às exigências ambientais
especialmente do mercado externo.
"Alguns dos
maiores concorrentes do Brasil, como Austrália e Uruguai, já têm a
rastreabilidade individual", lembra Marina Guyot, do Imaflora.
·
E
por que isso é importante para o seu bife?
Além de exigências
comerciais, a rastreabilidade individual, se bem implementada, atenderá também
ao consumidor final que se importa com a origem da carne que consome.
Essa demanda foi
detectada pela iniciativa Do Pasto ao Prato, que busca dar mais transparência
para a cadeia de produção de carne no Brasil. Por meio de um aplicativo, é
possível, diretamente do mercado e antes mesmo de comprar a carne, saber se o
alimento tem procedência confiável.
Por meio do código
sanitário ou do CNPJ do fornecedor, o aplicativo identifica a origem do
produto. Depois, a informação é cruzada com uma base de dados para identificar
se aquele produtor tem passivos ambientais, multas sanitárias e histórico de
utilização de mão de obra análogas à escravidão.
Dariane Santos,
coordenadora de impacto da iniciativa, afirma que saber a origem dos alimentos
significa também ter poder de escolha. "Além disso, o consumidor tem papel
importante na mudança e na briga por mais transparência do setor", diz.
"Temos
usuários que sequer comem carne, mas estão ali contribuindo com informações
porque querem mais transparência."
Saber sobre a
origem da carne é uma informação importante para o consumidor comum também, não
só o engajado, segundo uma pesquisa feita pelo Instituto de Defesa de
Consumidores (Idec) em 2023.
O levantamento
apontou, dentre outras coisas, que, caso a carne viesse com informações sobre a
origem no rótulo ou embalagem, isso seria considerado por nove entre 10
consumidores no ato da compra.
Apesar de ser
comemorado tanto por ambientalistas, quanto por produtores, o Plano de
Rastreabilidade apresenta alguns pontos de atenção.
O primeiro é o
tempo de implementação. Ao todo, entre as sistematizações tecnológicas,
regulamentações, definições e a brincagem dos milhões de bois espalhados pelo
país, o governo estabeleceu um prazo de oito anos de implementação.
"Conseguimos
que a política seja obrigatória, mas com essa ambição baixa de ser implementado
totalmente em todo o Brasil oito anos", afirma Guyot.
O MAPA apontou a
dimensão do território e do rebanho brasileiro, a quantidade de fazendas e a
adequação dos Estados às novas regras como algumas das razões que justificam o
prazo extenso.
Roberto Perosa, da
Abiec, lembra que outros mercados importantes do setor também demoraram para
realizar a implementação total da rastreabilidade individual, como a Austrália.
"Existem
diversas possibilidades no meio do caminho que podem vencer etapas, havendo a
possibilidade grande de ser implementado mais cedo."
·
A
pecuária e o desmatamento
A pastagem foi a
principal finalidade do desmatamento ilegal na Amazônia entre 1985 e 2023, de
acordo com o MapBiomas, projeto formado
por diversas iniciativas que se dedica a monitorar a cobertura e o uso da terra
no Brasil.
As imagens de
satélite analisadas pelos técnicos do MapBiomas mostram que nessas quase quatro
décadas, o crescimento da área de pastagem na Amazônia foi de mais de 363%.
Atualmente, quase metade do rebanho de bovinos — 45% — está espalhada pelos
Estados da Amazônia legal.
Além do peso no
desmatamento ilegal, a pecuária foi o setor onde mais se registrou aumento das
emissões de gases do efeito estufa em 2023, segundo dados do Sistema de Estimativas de
Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima.
Esse é um ponto de
atenção importante, especialmente porque o Brasil é um dos 103 países
signatários do Acordo Global de Metano. Firmado na COP de
Glasgow, em 2021, o acordo tem o objetivo de reduzir em 30% as emissões de metano até 2030.
Porém, mesmo com a
pressão do mercado europeu e os compromissos internacionais pelo meio ambiente,
o novo Plano de Rastreabilidade apresentado não menciona, em momento algum,
finalidade ambiental.
Para Perosa, embora
a questão ambiental não esteja mencionada no plano, "é óbvio" que ela
está relacionada.
"A questão da
rastreabilidade está muito relacionada à questão ambiental e de
desmatamento", diz Perosa.
Por isso, ele
afirma que o sistema atende às demandas da União Europeia: "Você vai saber
se [a carne] está vindo de área de desmatamento ou não".
Questionado, o MAPA
afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que o plano, "da forma em que
foi desenhado durante os debates do Grupo de Trabalho, tem fins estritamente
sanitários. Em nenhum momento é citada a questão ambiental no documento".
A BBC News Brasil
pediu entrevista com o ministro da Agricultura e da Pecuária, Carlos Fávaro,
mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.
·
Lavagem
do boi
Devido ao peso que
a pecuária tem nos índices de desmatamento, a rastreabilidade da carne
brasileira é um tema sobre o qual ambientalistas e autoridades estão debruçados
em busca de soluções há, pelo menos, 15 anos.
Observando que,
sobre as áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia havia, em sua imensa maioria,
gado espalhado, o procurador do Ministério Público Federal, Daniel Azeredo, foi
um dos criadores do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da carne.
Criado em 2009, o
acordo voluntário convidava os principais frigoríficos a se comprometer a não
comprar carne com passivos ambientais. Ou seja, proveniente de fazendas que
cometeram crimes ambientais.
E isso seria
possível de atestar por meio das informações da GTA cruzadas com a das
propriedades, via Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Assim, produtores
de fazendas com desmatamento começaram e encontrar dificuldade para vender seu
gado.
Mas, como o sistema
de rastreabilidade ainda deixa muitas brechas, rapidamente uma saída foi
encontrada: a "lavagem do gado".
A prática, ainda
muito comum, consiste em fazer uma triangulação, levando o rebanho de uma
propriedade com passivos ambientais para outra "limpa" antes de,
enfim, vender ao frigorífico.
Com a experiência
de quem viu o TAC da Carne dar certo somente até a página dois, Azeredo,
que formou a força-tarefa Amazônia, menciona alguns
pontos a serem considerados agora sobre o novo sistema de rastreabilidade.
O primeiro, assim
como também aponta Guyot, é o prazo longo para ser implementado.
"O país é
grande, mas poderia ter prazos menores para, por exemplo, os 50 municípios que
mais desmatam na Amazônia", sugere Azeredo.
"É menos de
10% dos municípios da Amazônia e poderia dar uma agilidade no processo."
Outro ponto
levantado pelo procurador é a tecnologia que será usada.
"Dependendo da
tecnologia e das regras, você não consegue saber se o animal passou por terra
indígena, por exemplo."
Além disso, a
periodicidade com que as informações dos animais serão atualizadas é
fundamental, já que o brinco, a princípio, não trará informações em tempo real
sobre a localização.
"Se for um
prazo longo, é mais fácil de burlar", afirma Azeredo.
Ele aponta que a
participação do Ministério do Meio Ambiente na elaboração de um plano como este
seria importante, algo que não ocorreu.
Isso reforça as
dúvidas sobre a sua efetividade para fins ambientais.
"Só teríamos
uma maior garantia se esse plano vai ser eficiente na área ambiental com a
participação dos órgãos ambientais."
Dariane Santos diz
que "a brincagem [do boi] é um sonho", mas é preciso ainda entender
os limites desse sistema. "Só a brincagem, sem transparência da informação
não vai adiantar nada."
Fonte: BBC News Brasil
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