Dados do SUS nas calculadoras de risco
da saúde privada?
O ano de 2024 terminou com episódio envolvendo uma das
maiores seguradoras de saúde dos Estados Unidos, a UnitedHealth (UHG).
Retomando os fatos: em 9 de dezembro
um de seus diretores executivos foi assassinado de chofre em plena rua na
cidade de Nova Iorque, antes de sua participação no dia anual de investidores
do grupo. O suspeito é um jovem
americano, que deixara um manifesto contra as
empresas do setor de saúde, chamando-as de “parasitas” e mencionando o tamanho descomunal da
UHG em seu país.
Não fosse só por isso, após o caso ganhar as redes
sociais, “a morte do executivo desencadeou uma
onda de sentimentos negativos sobre o setor e atraiu críticas ao próprio braço
de seguros”.
Em poucas palavras, milhares nas redes sociais saíram a favor do assassino.
Nos projéteis utilizados para execução, o suspeito
deixou marcado “Deny, Defend, Depose”, cujo significado Reinaldo Guimarães
resumiu aqui no Outra Saúde: “negue o atendimento da demanda
para cobertura de serviço, defenda-se no tribunal se o demandante o acionar, e
derrube o demandante contando com a morosidade da justiça, quando ele já pode
ter morrido”.
O cenário é de uma longa crise estrutural do sistema de
saúde estadunidense – um dos mais caros per
capita do mundo e um dos mais inefetivos, “curiosamente”
também o mais privatizado e financeirizado. Algo que, por sinal, tem feito da
agenda dos negócios com a saúde uma corrida ainda mais brutal por “cortes de
gastos”.
Como sabemos, uma das maneiras de diminuir custos no
setor é a radicalização dos cálculos de riscos. Algumas seguradoras, por
exemplo, recusam ou aumentam os preços para pessoas com histórico de doenças,
por se tratarem de pacientes potencialmente mais custosos; ou classificam os
perfis dos pacientes de maior “custo-benefício” para receber determinados
tratamentos, priorizando aqueles com maior expectativa de vida ou chance de
recuperação; ou ainda, tornam exames e consultas mais burocráticos ou caras,
desestimulando a procura precoce por atendimento. Entre tantas outras
possibilidades – legais e ilegais.
De acordo com um relatório recente de
Investigações do Senado dos Estados Unidos, as taxas de recusas em assistência
à saúde têm crescido anualmente e aceleradamente em todas as seguradoras do
país, sendo justamente a UHG a campeã dentre elas – com a marca de 32% de
recusa em 2024. Não por acaso, já em 2009 aproximadamente 44 mil trabalhadores
e trabalhadoras estadunidenses morriam anualmente por falta de
seguro médico, por desassistência deliberada – sem somar as mortes em razão do
cálculo voltado ao “custo da operação”.
·
No Brasil, um processo
semelhante
Vale constatar que mesmo no Brasil, ano passado,
o MPF acolheu 300 reclamações sobre
cancelamentos unilaterais de contratos e recusas de atendimento a pessoas
diagnosticados com TEA (Transtorno do Espectro do Autismo) por parte de
operadoras, com indícios de discriminação por cálculo de risco – risco de
“pacientes custosos”. Como o defensor público André Naves disse ao Outra Saúde: “O que acontece às vezes é o plano de
saúde começar a criar muitas dificuldades, muitas burocracias e às vezes até
aumentos abusivos para expelir essas pessoas. Planos criam todo um cipoal
burocrático ou descredenciam tratamentos essenciais, gerando tantas
dificuldades que acabam levando as pessoas a saírem dos planos” – sem contar
toda batalha em torno do rol taxativo.
Também podemos lembrar, como é sempre bom, que em 2019
uma das então operadoras do grupo UnitedHealth aqui no Brasil, a Amil,
utilizou planilhas de orientação sobre
materiais de procedimentos cirúrgicos, indicando próteses mais baratas a
pacientes cujos planos não dispusessem de ampla cobertura – discriminando a
priori os casos em que havia acesso a produtos de maior qualidade, ao invés de
atender a recomendação do profissional habilitado e responsável pelo paciente.
Se não tratou de uma negativa propriamente, certamente tratou-se de prática de
cálculo contábil para a saúde dos negócios. Ademais, ainda em 2019, um diretor
médico da UHG denunciou a suposta
ocorrência de uma fraude interna; sua alegação era
que havia pacientes de planos mais baratos com câncer recebendo medicamentos de
valor menor e de pior qualidade – inclusive não reagiam à medicação durante o
tratamento. (A negligência atribuída ao grupo foi objeto de uma matéria do The Intercept Brasil.)
Com a financeirização do setor da saúde, como diz o
economista Carlos Ocké-Reis, “os dados
passaram a ser usados não somente para encontrar melhores tratamentos, mas para
atingir o melhor desempenho da gestão clínico-financeira”. Na verdade, essa
engenharia contábil, se formos ao âmago do problema, é a graxa do mundo das
finanças. Falar em capital financeiro é falar em hipotecar o futuro e
exigir remuneração acionária para hoje, agora. Donde o cálculo de risco
é, justamente, a quantificação das incertezas capaz de tornar a especulação com
o futuro – e todo seu cassino – uma atividade “racionalizada” para atores de
mercado.
Papo reto: no mercado financeiro, o nosso futuro, da
nossa saúde, da nossa família, cidade, país ou planeta são um conjunto de
números, planilhas de cálculos contábeis procurando maior liquidez. Ou,
como se naturalizou dizer no mundo dos CEOs da saúde: trata-se de ter uma boa
“carteira de vidas”, de preferência de vidas high ticket, capaz de remunerar os acionistas
com alta performance.
·
O cálculo de riscos
impulsionado pela IA
É nesse contexto que a dita “transformação digital da
saúde” está se desenvolvendo. É com esses personagens em cena, com essas
motivações e essa racionalidade que a “saúde digital” vem chegando,
inclusive no Brasil.
Nos últimos anos, os avanços na inteligência artificial,
big data e cia. tem acelerado e aprofundado a agenda de automatização (e
radicalização) dos cálculos de riscos. A matemática Cathy O’Neil reflete justamente que foi em torno
desses cálculos que os seguros individuais e coletivos surgiram. E “agora, com
a evolução da ciência de dados e dos computadores em rede, o setor de seguros
está enfrentando uma mudança fundamental. Com cada vez mais informações
disponíveis – incluindo dados de nossos genomas, padrões de sono, exercício e
dieta, e habilidades de direção – , as seguradoras vão calcular cada vez mais o
risco para o indivíduo…”
As promessas dessas transformações ouvimos
cotidianamente em alto e bom som, em qualquer mídia convencional – privada ou
pública. Acontece que das mesmas bocas, ou dos mesmos capitais com alto
potencial de valorização, é também de onde vem a nossa tragédia. Sob as
coordenadas da financeirização da saúde, a calculadora de risco está se
tornando uma maquinaria cibernética de necropolítica.
Nos últimos anos, além da UHG, a Cigna e Humana, todas
seguradoras de saúde nos EUA têm sido acusadas de utilizarem tecnologias
de IA para negar cuidados que salvam
vidas. Seja para fixar a duração da estadia de internamento, seja para
determinar se esses doentes deveriam ser internados ou não, etc. “Um dos processos alega que a Cigna
negou mais de 300.000 reivindicações em um período de dois meses, o que
equivale a cerca de 1,2 segundos para cada reclamação revisada pelo médico.”
E, logicamente, como fase hightech da estrutura
clínico-sanitária dominante, os efeitos dessa transformação digital em voga são
e serão desiguais. Uns sentem mais que outros. Este foi o caso paradigmático de
racismo algorítmico publicado na Science. Um algoritmo de
IA – possivelmente desenvolvido pela Optum da UHG – usado por grandes redes
hospitalares, tinha a função de classificar pacientes que precisavam de
cuidados médicos mais intensivos. Contudo, os pesquisadores descobriram que ele
favorecia pacientes brancos em relação a pacientes negros, mesmo quando estes
últimos apresentavam condições de saúde mais graves.
Em países que como o nosso já sabemos há tempos que
a dor tem cor, como ficará a
radicalização digital dos cálculos de risco?
·
Os perigos que rondam o SUS
O fato de – ainda – termos um sistema de saúde público,
gratuito e universal não nos deixa imunes. Ao contrário, a “transformação
digital da saúde” é mais uma frente de batalhas onde as investidas contra o SUS
seguem em artilharia pesada. O Projeto de Lei n.º 5875 de 2013 é um exemplo
delas.
Trata-se de uma proposta iniciada no Senado Federal,
que vem sendo discutida e reformulada na Câmara dos Deputados nos últimos anos,
junto de uma série de outros projetos cujas temáticas serão consolidadas neste
texto de lei. Atualmente, essa proposta dispõe sobre a Rede Nacional de Dados em Saúde – RNDS, elevando as bases das políticas públicas de saúde
digital ao estatuto de lei ordinária.
Havendo muitos questionamentos sobre as
escolhas feitas pelo Brasil nessa matéria, destaca-se que o texto atual do projeto propõe acesso
ao big data da saúde brasileira (aos dados do SUS, em última instância) por
“instituições de ensino, pesquisa e inovação” sem qualificar exatamente o que
isso significa, deixando a competência para tanto nas mãos de uma “instância de
governança” que abre espaço à participação direta do mundo corporativo.
Os dados da saúde da nossa população, fruto do trabalho
dos nossos profissionais, abertos para treinamento das “IA” corporativas, para
inovação de soluções mercadológicas e para radicalização dos cálculos de
riscos?
Além de “conflito de interesses”, essa não seria uma
estratégia de enfraquecer ainda mais o controle social exercido por meio do
Conselho Nacional de Saúde (CNS), que recentemente formalizou sua Câmara
Técnica de Saúde Digital e Comunicação em Saúde? Ao promover uma “instância”
que repete muitas das representações presentes no CNS, o projeto abre espaço
para a diluição dos acúmulos oriundos dos movimentos sociais, dos sindicatos e
demais organizações em defesa do povo brasileiro, que têm se esforçado para
garantir o pouco de voz popular que o Estado brasileiro ainda permite, o pouco
de democracia real que sobrevive neste país.
Como ressaltou um estudo recente, nem
mesmo na Dinamarca, “governança modelo” para muitos dos gestores
e líderes do governo, há tão pouca
preocupação com o uso de dados de saúde desconectado de seu propósito original
por empresas privadas. E nós vamos mesmo abrir mais espaço para o setor
privado na “saúde digital”? Mesmo depois de comprovadas práticas de emprego das
novas tecnologias para o desenvolvimento da máquina necropolítica de calcular
as vidas que merecem ou não ser vividas, vamos seguir considerando que é
possível regular o comportamento “instintivo” do mundo corporativo sem oferecer
uma alternativa efetiva?
A política do consenso parece uma coisa boa para muita
gente. Parece como uma virtuosa habilidade de não estabelecer conflitos e
garantir a governabilidade. Bom seria se a nossa sociedade não fosse
estruturada a partir de interesses antagônicos, de vida ou morte. Acontece que
tal política tem um pressuposto: fazer concessões aos inimigos. Não há consenso
sem concessão, e a conta só fecha se, ao passar do tempo, os inimigos deixam de
ser inimigos. Mas e o que acontece na vida real? Graças às concessões que
fazemos, nossos inimigos não apenas continuam sendo inimigos, como também
ampliam os meios que dispõem para nos derrotar. Essa é a história política do
Brasil e dos SUS nas últimas décadas…
Fonte: Por Leandro
Modolo e Raquel Rachid, em Outra Saúde
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