quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025


 

O nazismo era um movimento de esquerda ou de direita?

O gesto feito pelo bilionário Elon Musk durante a posse do presidente americano Donald Trump gerou polêmica por semelhança com saudação nazista, apesar de ele negar isso. Dias depois, o empresário teve um bate-papo — transmitido online via X — com Alice Weidel, líder de partido de direita alemão.

Durante a conversa, Weidel, candidata da sigla ultradireitista alemã AfD afirmou que o ditador nazista não era "de direita", e sim um "socialistacomunista".

A discussão sobre se o movimento nazista alemão — cujo governo matou milhões de pessoas e levou à Segunda Guerra Mundial — teria as mesmas origens do marxismo ferve nas redes sociais de tempos em tempo.

Mas historiadores entrevistados pela BBC News Brasil esclarecem o que dizem ser uma "confusão de conceitos" que alimenta a discussão — e explicam que o movimento se apresentava como uma "terceira via".

"Tanto o nazismo alemão quanto o fascismo italiano surgem após a Primeira Guerra Mundial, contra o socialismo marxista — que tinha sido vitorioso na Rússia na revolução de outubro de 1917 —, mas também contra o capitalismo liberal que existia na época. É por isso que existe essa confusão", afirma Denise Rollemberg, professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).

"Não era que o nazismo fosse à esquerda, mas tinha um ponto de vista crítico em relação ao capitalismo que era comum à crítica que o socialismo marxista fazia também. O que o nazismo falava é que eles queriam fazer um tipo de socialismo, mas que fosse nacionalista, para a Alemanha. Sem a perspectiva de unir revoluções no mundo inteiro, que o marxismo tinha."

O projeto do movimento nazista, segundo Rollemberg, previa uma "revolução social para os alemães", diferentemente do projeto dos partidos de direita da época, "que vinham de uma cultura política do século 19, de exclusão completa e falta de diálogo com as massas".

Mesmo assim, ela diz, seria complicado classificá-lo no espectro político atual. "Eles rejeitavam o que era a direita tradicional da época e também a esquerda que estava se estabelecendo. Eles procuravam se mostrar como um terceiro caminho", afirma.

·        Nacionalismo

A ideia de uma "revolução social para a Alemanha" deu origem ao Partido Nacional-Socialista alemão, em 1919. O "socialista" no nome é um dos principais argumentos usados nos debates de internet que falam no nazismo como um movimento de esquerda, mas historiadores discordam.

"Me parece que isso é uma grande ignorância da História e de como as coisas aconteceram", disse à BBC News Brasil Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da USP e especialista em análise do discurso nazista e totalitário.

"O que é fundamental aí é o termo 'nacional', não o termo 'socialista'. Essa é a linha de força fundamental do nazismo — a defesa daquilo que é nacional e 'próprio dos alemães'. Aí entra a chamada teoria do arianismo", explica.

De acordo com Blikstein, os teóricos do nazismo procuraram uma fundamentação teórica e filosófica para defender a ideia de que eles eram descendentes diretos dos "árias", que seriam uma espécie de tribo europeia original.

"Estudiosos na Europa tinham o 'sonho da raça pura' nessa época. Quanto mais próximos da tribo ariana, mais pura seria a raça. E esses teóricos acreditavam que o grupo germânico era o mais próximo. Daí surgiu a tese de que, para serem felizes, tinham que defender a raça ariana, para ficar longe de subversões e decadência. (Alegavam que) a raça pura poderia salvar a humanidade."

A ideia de uma defesa do povo germânico ganhou popularidade em um momento de perda de territórios, profunda recessão e forte inflação após a Primeira Guerra Mundial — e tornou-se o centro do movimento nazista.

"Era preciso recuperar a moral do pobre coitado, que não tinha dinheiro e era 'massacrado pelos capitalistas'", explica Blikstein. Nesse contexto, afirma, o nazismo vendia a ideia de "reerguer o orgulho da nação ariana". "O pressuposto disso seria eliminar os não arianos. E essa teoria foi aplicada até as últimas consequências."

·        'Marxistas e capitalistas'

Mesmo propagando a ideia de que o nazismo planejava uma revolução social na Alemanha — o que incluía, por exemplo, maior intervenção do Estado na economia —, o partido fazia questão de deixar clara sua oposição ao marxismo.

"Os comícios hitleristas eram profundamente antimarxistas", disse à BBC Brasil a antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, que é estudiosa de movimentos neonazistas.

"O nazismo e o fascismo diziam que não existia a luta de classes — como defendia o socialismo — e, sim, uma luta a favor dos limites linguísticos e raciais. As escolas nacional-socialistas que se espalharam pela Alemanha ensinavam aos jovens que os judeus eram os criadores do marxismo e que, além de antimarxistas, deveriam ser antissemitas."

Os judeus, aliás, tornaram-se o ponto focal da perseguição nazista porque representavam tanto o socialismo como o capitalismo liberal, mesmo que isso possa parecer antagônico nos dias de hoje.

"Havia uma simbologia do judeu como representante, por um lado, do socialismo revolucionário — porque Marx vinha de uma família judia convertida ao protestantismo, assim como muitos bolcheviques", diz a historiadora Denise Rollemberg.

"Por outro lado, os judeus eram associados ao capitalismo financeiro porque os judeus assimilados (que assumiram as culturas de outros países, para além da nação religiosa) que viviam na Europa tinham uma tradição de empréstimos de dinheiro e de negócios."

·        'Precisão científica'

A "precisão científica" do extermínio de judeus na Alemanha nazista também dificulta as comparações com a perseguição política no regime socialista soviético, na opinião de Izidoro Blikstein.

"Há muitos genocídios pelo mundo, mas nenhum igual ao nazismo, porque este era plenamente apoiado por falsa teoria científica e linguística e levada até as últimas consequências. A União Soviética também tinha campos de trabalhos forçados, mas não existia uma doutrina para justificar isso", afirma.

"Mas há traços comuns entre o nazismo o regime (soviético) de Stálin. A propaganda, por exemplo, e o fato de que ambos eram regimes totalitários, que controlavam e legislavam sobre a vida pública e também privada do cidadão", admite.

Além dos judeus, o regime nazista também perseguiu democratas liberais, socialistas, ciganos, testemunhas de Jeová e homossexuais — algo que, hoje, contribui para que o nazismo seja classificado como extrema-direita, e o aproxima de grupos que pregam contra a comunidade LGBT, contra imigrantes e contra muçulmanos, por exemplo.

"Todo esse projeto de repressão, censura, campos de concentração e extermínio nazista era direcionado a quem estava fora do que eles chamavam de 'comunidade popular', o povo alemão. Mas alemães que eram democratas liberais e socialistas também eram excluídos por serem contrários ao projeto nazista e colocarem em risco essa comunidade popular", explica Denise Rollemberg.

No entanto, para Blikstein, a ideia de raça é tão central ao nazismo que, assim como não se pode usar o projeto de revolução social para classificá-lo como "esquerda", também é difícil defini-lo como a "direita" que conhecemos hoje.

"Dizer apenas que Hitler era um político de direita é apequenar o nazismo. Foi mais do que direita ou esquerda. Foi uma doutrina arquitetada para defender uma raça, embora esse conceito seja discutível e pouco científico", diz.

·        'Crise de referências'

Uma recapitulação do projeto e do regime nazista, de acordo com os especialistas no assunto, aumenta a confusão: deveria haver igualdade social e distribuição de renda, mas imigrantes, judeus, opositores políticos e até filhos "não talentosos" de alemães seriam excluídos dela por serem "menos puros"; o Estado prometia interferir mais na economia para benefício dos cidadãos, mas empresas privadas tiveram os maiores lucros com a máquina de extermínio e de guerra nazista; o movimento dizia defender os trabalhadores, mas sindicatos trabalhistas foram extintos, assim como o direito de greve; o socialismo marxista era considerado ruim, mas o liberalismo também.

·        Como seria possível defender todas estas ideias ao mesmo tempo?

"Quando o partido foi constituído, ele tinha uma vertente mais à esquerda e uma mais à direita. No início, tinha um discurso bastante antiburguês. Mas ao assumir o poder na Alemanha, o grupo à direita foi fazendo mais alianças com a burguesia e expulsando o grupo à esquerda", diz a historiadora da UFF.

"Além disso, o nazismo nasce no meio de uma crise de referências muito grande após a Primeira Guerra. Muitos passaram de um lado para outro. Os valores muitas vezes vão se embaralhar, e esses conceitos de direita e esquerda atuais não resolvem bem o problema."

Entre historiadores, a tentativa de traçar paralelos entre o nazismo e o fascismo europeus e o regime stalinista na União Soviética também não é nova, segundo Rollemberg.

"Todos eles eram regimes totalitários, mas o totalitarismo pode estar de qualquer lado. Hoje entendemos que há o totalitarismo de direita, como o nazismo e o fascismo, e o de esquerda, como o da União Soviética."

 

¨      'Meu avô foi o maior assassino em massa da história'

Kai estava na sexta série quando o professor mencionou um nome que chamou sua atenção na aula de históriaRudolf Höss, o homem responsável por supervisionar o maior campo de concentração e extermínio da Segunda Guerra Mundial, tinha o mesmo sobrenome dele. "Obviamente, comecei a prestar atenção porque me soava familiar", conta Kai Höss ao programa de rádio Outlook, da BBC. "Percebi que era o nosso sobrenome, com a mesma grafia da minha certidão de nascimento."

Mas o que o jovem não imaginava era que sua curiosidade o levaria a descobrir um segredo de família obscuro: "'Sim', minha mãe me disse, 'ele é seu avô'."

De acordo com o depoimento do próprio Rudolf Höss durante os históricos julgamentos de Nuremberg — em que grande parte do comando nazista foi julgado por crime de guerra e crimes contra a humanidade, como o Holocausto —, mais de 1.130.000 pessoas, a maioria delas judeus europeus, foram assassinadas no campo de Auschwitz, na Polônia. E Kai acabara de descobrir que era descendente direto do principal arquiteto do massacre. "Foi chocante, inacreditável, quem quer ter uma pessoa assim como avô?"

Hoje, Kai Höss — que foi gerente hoteleiro, viajou pelo mundo e acabou virando pastor evangélico na Alemanha, sua terra natal — relembra como esta revelação na adolescência mudou sua vida, e fala sobre o momento em que finalmente conseguiu confrontar o passado junto ao pai.

<><> Uma infância normal

Kai conta que teve uma infância tranquila, brincando no enorme jardim que havia na casa dos pais, e que nunca houve qualquer menção à ideologia nazista na sua casa. "Meu pai sempre foi muito gentil, mas uma pessoa muito calada. Você tinha que se esforçar muito para arrancar um sorriso ou um 'sim' ou 'não' dele. Ele vendia carros, estava sempre ocupado, visitava clientes, saía cedo de manhã e voltava tarde da noite." Já sua mãe era uma pessoa "dinâmica", que Kai descreveu como "bastante empreendedora, sempre causando boas impressões no vilarejo, um lugar pequeno onde todo mundo te conhece".

Kai diz que foi justamente por causa da natureza calada do pai, Hans Jürgen Höss, que ele nunca soube sobre o passado dele, nem sobre a infância do pai vivendo com seus quatro irmãos ao lado de um enorme campo de extermínio. "Acho que só uma vez ouvi ele dizer que se lembrava de algo sobre quando mencionou o 'tio Heini', que tinha chegado de Berlim com brinquedos para ele no Natal. O 'tio Heini' era Heinrich Himmler (comandante da SS, temida força paramilitar nazista, e um dos arquitetos do Holocausto). Não sei o quanto ele se lembrava, quer dizer, [meu pai] tinha seis ou sete anos quando tudo isso aconteceu." As poucas menções que Hans fez sobre Rudolf Höss, o pai dele, passavam uma imagem "positiva", segundo Kai. "O pai dele o levava para passear de barco no rio, coisas assim. Meu pai dizia que teve uma infância feliz". Kai diz que o contato que teve quando pequeno com a avó Hedwig, mulher de Rudolf, também reforçou essa imagem. "Ela nunca falou sobre o casamento. Nunca deu detalhes sobre o Holocausto ou o campo. Eu era pequeno, acho que eles não falavam sobre isso."

<><> Memórias de Auschwitz

Pouco depois de saber quem tinha sido o avô, Kai encontrou, na prateleira de livros da casa de seus pais, um exemplar de Comandante de Auschwitz, a autobiografia que Rudolf Höss escreveu no período entre sua condenação à morte por um tribunal na Polônia e sua execução, por enforcamento, em Auschwitz, em abril de 1947. O livro é tido como um documento único, um relato em primeira mão sobre o planejamento do Holocausto. Em uma das edições, o autor italiano Primo Levi escreve na introdução: "O autor passa o que ele é: um canalha tosco, estúpido e arrogante...mesmo assim é um dos livros mais instrutivos já publicados'.

Para se ter uma ideia do conteúdo e da forma, aqui está um trecho:

“Discutimos as formas e métodos de extermínio. Isso só poderia ser feito por meio de gás, já que teria sido absolutamente impossível se livrar do grande número esperado de pessoas atirando nelas, e teria sido um fardo pesado para os homens da SS (forças de segurança nazistas) encarregados de fazer isso, especialmente devido à presença de mulheres e crianças entre as vítimas.”

Kai diz que, embora seu pai tenha contado a verdade à sua mãe, ele nunca discutiu abertamente o que considerava ser algo vergonhoso. Assim, quando Kai encontrou o livro, sua mãe o incentivou a lê-lo. "Fiquei com o coração partido ao ler suas declarações e as coisas que ele (Höss) diz de forma tão fria e clínica", recorda.

"Quando as pessoas fazem coisas, elas tendem a justificá-las, e você pode justificar praticamente qualquer coisa, certo? E ele justificou." Um turbilhão de emoções tomou conta de Kai. "Vergonha, culpa, incredulidade. Foi difícil para mim processar que sou parente de alguém que fez algo assim, e em uma época que já é difícil por si só, na adolescência."

<><> O neto do comandante

Como se não bastasse esta turbulência na vida do jovem Kai, logo após saber a verdade sobre sua família, seus pais decidiram se divorciar. "Foi um divórcio muito complicado", lembra Kai. "Houve ordens de restrição e tudo o mais. E nós, como crianças, estávamos no meio dessa situação. Se não fosse isso, talvez tivéssemos conversado sobre o assunto, mas a tensão constante entre meus pais ofuscava tudo."

Esse passado obscuro, somado a uma carreira promissora no setor hoteleiro, manteve Kai longe da Alemanha por mais de 30 anos. Ele se casou, viajou pelo mundo e morou alguns anos nos EUA, evitando sempre voltar para o lar que não existia mais. "Isso teve a ver com o divórcio dos meus pais, e com a falta de um lar. Muitas pontes foram queimadas, e meu relacionamento com a minha mãe era muito difícil. Não queria levar minha família para essa dinâmica familiar desestruturada."

Durante esses 30 anos, Kai nunca falou com o pai. "Depois do divórcio, meu pai simplesmente desapareceu. O motivo é que ele traiu minha mãe, ele tinha outra pessoa. Ele mudou de nome, e só quase 30 anos depois, quando voltamos para a Alemanha, que o telefone tocou. Não reconheci o número. Perguntei quem era, e ele disse: 'Seu pai'."

Kai afirma que, por mais difícil que tenha sido saber o que havia acontecido durante todo esse tempo, ouvir a voz do pai novamente era uma oportunidade que ele queria aproveitar. "Quando ele me ligou, eu queria ter ficado irritado com esse homem. Queria dizer a ele: 'Como você pode nos amar se passou 30 anos sem se comunicar? Mas ele havia encontrado uma nova esposa, e eles tinham filhos e uma nova família. Me senti mal, mas pensei: Quer saber, ele é meu pai, e eu o amo. É um homem idoso agora, está na faixa dos 80 anos, vamos construir um relacionamento."

<><> Regresso a Auschwitz

Na tentativa de confrontar seu passado, Kai e o pai de 87 anos, Hans Jürgen Höss, decidiram fazer parte do documentário A Sombra do Comandante, de Daniela Volker. No filme, que estreou no Festival de Cinema de Sedona, nos EUA, e hoje pode ser encontrado em algumas plataformas de streaming, os dois são confrontados com o trauma intereracional causado pelas ações de Rudolf Höss ao conhecerem uma das vítimas de Auschwitz. “O mais poderoso para mim, o que tocou meu coração, foi conhecer essa mulher de 90 anos, que sofreu no campo de concentração, e ela estar em nossa casa, tomar um café conosco, e vê-la sorrir." "Perceber que existe reconciliação, compreensão, perdão, amor. Sim, isso pode ser alcançado."

Além disso, Kai e Hans visitaram Auschwitz. “Naquela semana, fiquei com o coração partido. Chorei todos os dias em momentos diferentes. Ao ver esta fábrica, esta coisa que meu avô criou para exterminar pessoas. Gravamos nas plataformas onde chegavam os trens com judeus de toda a Europa, eles eram transportados como gado para Auschwitz, alguns morreram devido às condições da viagem. É uma das marcas mais profundas que ficaram no meu coração."

Ainda mais dolorosa foi a experiência de Hans, que leu pela primeira vez trechos do livro do pai e visitou o local onde ele foi levado à forca, condenado por seus crimes contra a humanidade. "Você podia vê-lo chorando", lembra Kai sobre a visita do pai a Auschwitz. "Ele estava parado ali em silêncio com seu andador, e disse algo como: 'Meu pai recebeu a punição justa por seus crimes'."

Kai diz que já conversou sobre os crimes cometidos pelo avô com seus dois filhos, de 12 e sete anos, e espera manter o diálogo aberto com eles no futuro, porque acredita que é importante manter viva a experiência do Holocausto para evitar que aconteça novamente. "Temos que fazer com que as crianças fiquem tão comovidas que saiam da sala dizendo: 'Isso é a coisa mais triste, mais terrível, temos que fazer o que for preciso para garantir que isso nunca mais aconteça'."

 

Fonte: BBC News Mundo

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