Big techs desafiam a democracia
e favorecem a extrema direita
Do Brasil à Alemanha, a interferência das big techs na política
tem despertado preocupação. No país latino-americano, Elon Musk, proprietário
do X (antigo Twitter), confrontou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao desafiar
decisões que determinavam o bloqueio de contas ligadas a redes de desinformação
e ataques à democracia. Em meio ao conflito, o bilionário chegou a sugerir que
os brasileiros burlassem restrições judiciais, acirrando o embate entre a
plataforma e o Judiciário.
Na Alemanha, Musk escancarou seu alinhamento com a
ultradireita ao apoiar o partido Alternativa para a Alemanha (AfD),
participando de eventos políticos e normalizando discursos extremistas.
Nos Estados Unidos, integrantes da “elite tecnológica”
tiveram lugar de destaque na posse de Donald Trump em janeiro de 2025. Durante
a cerimônia, gestos de Musk que remeteram à saudação nazista geraram indignação
internacional e reforçaram temores a respeito da influência das big techs na ascensão
de governos autoritários.
No mesmo mês, o CEO da Meta – companhia que controla
Facebook, Instagram e Whatsapp – Mark Zuckerberg afirmou que vai trabalhar com
o presidente estadunidense para impedir o avanço de países que buscam regular o
ambiente digital. E fez insinuações sobre a existência de “tribunais secretos”
na América Latina.A declaração foi interpretada, no Brasil, como uma referência
indireta ao STF, que tem julgado casos de desinformação envolvendo as
plataformas digitais no país.
·
Solo fértil para desinformação
As redes sociais se tornaram terreno fértil para a
desinformação. Estudos indicam que setores alinhados à extrema direita se
beneficiaram dessas plataformas, transformando-as em espaços de criação e
fortalecimento de “bolhas informativas” — ambientes onde os usuários interagem
predominantemente com conteúdos que reforçam suas convicções e limitam o debate
plural.
Esse fenômeno é intensificado pelos algoritmos das
plataformas, que priorizam
conteúdos com alto potencial de engajamento. Notícias falsas e
sensacionalistas, por despertarem emoções como medo e indignação, tendem a se
espalhar mais rapidamente do que conteúdos informativos. Isto é o que aponta
uma pesquisa do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O estudo revelou
que notícias
falsas populares atingem até 100 mil pessoas, enquanto as verdadeiras raramente
ultrapassam o alcance de mil indivíduos. Esse descompasso evidencia o papel dos
algoritmos na amplificação de conteúdos polarizadores, tornando as plataformas
peças-chave no ecossistema da desinformação.
Esse ciclo cria um ambiente propício para a manipulação
da opinião pública, com impactos diretos sobre processos democráticos. Segundo
pesquisa do Instituto DataSenado,
81% dos brasileiros acreditam que as fake news podem afetar significativamente
o resultado das eleições.
·
Fake news: uma ameaça ao processo eleitoral
O impacto
das fake news na
democracia não se limita à percepção popular. Já se manifestou de forma bem
concreta nas últimas eleições brasileiras. Um estudo de Margareth Vetis
Zaganelli e Simone Guerra Maziero, publicado na Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político,
aponta que a
disseminação de desinformação eleitoral ganhou força a partir de 2018,
tornando-se um instrumento de manipulação política.
As eleições de 2018 e 2022 foram marcadas pelo uso
de fake
news com
a intenção de deslegitimar o sistema eleitoral. Informações
falsas sobre as urnas eletrônicas foram amplamente compartilhadas, alimentando
a desconfiança no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Vídeos
manipulados, memes e mensagens de áudio circularam massivamente em aplicativos
como WhatsApp e Telegram, criando um ambiente de descrença e instabilidade.
Além disso, uma análise conduzida pela Agência Lupa, em
parceria com a USP e a UFMG, examinou 347 grupos públicos de WhatsApp durante o
segundo turno das eleições de 2018. O
estudo revelou que, entre as cinquenta imagens mais compartilhadas, apenas
quatro eram verdadeiras. Isso demonstra como conteúdos manipulados e retirados
de contexto foram amplificados, influenciando diretamente o processo
democrático e aprofundando a polarização política.
·
O papel dos algoritmos e o modelo de negócios das big techs
As grandes plataformas digitais, como Facebook,
WhatsApp, Telegram e X, não só facilitam a disseminação de desinformação como
também lucram com ela. O modelo de negócios dessas empresas é baseado na
“economia da atenção”, em que conteúdos que geram forte reação emocional – como
medo, raiva ou indignação – são priorizados para maximizar o tempo de
permanência dos usuários.
O professor da UFABC Sérgio Amadeu, no artigo “Plataformas
se convertem em estruturas geopolíticas da extrema direita”, argumenta que as
redes sociais aplicam na prática o princípio de Goebbels: “uma postagem é
verdadeira se for replicada um milhão de vezes”. O pesquisador explica que as
plataformas digitais operam com base na coleta massiva de dados dos usuários,
permitindo que conteúdos polarizadores sejam direcionados com precisão para
maximizar o engajamento. Esse ciclo vicioso favorece a radicalização política e
dificulta o combate à desinformação.
·
Conflitos entre big techs e instituições democráticas no Brasil
A influência das big techs na política
não se limita à disseminação de desinformação durante as eleições. Essas
plataformas também ocuparam um espaço central na mobilização de ações
antidemocráticas. O
episódio mais emblemático desse uso estratégico pela extrema direita no Brasil
ocorreu em 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair
Bolsonaro invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Investigações revelaram que aplicativos como Telegram e
WhatsApp foram utilizados para coordenar as ações, enquanto o X serviu como
espaço para disseminação de mensagens extremistas e incitações à insurreição.
Segundo Zaganelli e Maziero, “a
desinformação viralizada nas redes sociais, além de moldar a opinião pública,
incentiva narrativas que questionam a legitimidade das instituições
democráticas”.
O
Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de
Janeiro de 2023 reforça essa análise ao descrever como milicianos digitais
foram empregados para disseminar medo, desqualificar adversários e atacar o
sistema eleitoral.
O documento destaca que “os golpes modernos (…) não usam tanques, cabos e
soldados”. Os ataques seguiram uma estratégia de guerra híbrida, que combina
desinformação massiva com ações políticas e sociais. Esse modelo, impulsionado
pelas redes sociais, intensificou a radicalização e incentivou ações violentas
contra as instituições democráticas.
·
STF versus X: a crise entre justiça e as big techs
O embate entre o STF e a plataforma X tornou-se um dos
maiores confrontos entre uma big tech e o Estado
brasileiro. O conflito remonta a investigações anteriores sobre redes de
desinformação, mas ganhou força após os atos de 8 de janeiro de 2023, quando
grupos bolsonaristas tentaram depor o governo democraticamente eleito.
Após os ataques às sedes dos Três Poderes, a Corte
determinou o bloqueio de contas dos envolvidos na disseminação de fake news e incitação à
violência contra as instituições democráticas. Essas suspensões foram baseadas
em investigações já em andamento, como o Inquérito
das Milícias Digitais (Inq. 4.874) e o Inquérito
das Fake News (Inq. 4.781), que apuram o uso de redes sociais para organizar
ataques ao regime democrático.
Em abril de 2024, o conflito escalou quando Elon Musk criticou
publicamente o STF e ameaçou reativar as contas bloqueadas por decisões
judiciais. Musk acusou o ministro Alexandre de Moraes de censurar a plataforma
e sugeriu
que usuários brasileiros utilizassem redes privadas virtuais (VPNs) para burlar
as restrições impostas pela Justiça.
Em resposta, Moraes
determinou a inclusão de Musk como investigado no Inquérito das Milícias
Digitais,
sob suspeita de obstrução de Justiça, incitação ao crime e desobediência a
decisões judiciais. O
ministro também instaurou um novo inquérito para apurar especificamente a
conduta do empresário.
O
caso alcançou seu ápice em 30 de agosto de 2024, quando o ministro determinou a
suspensão da plataforma X em todo o território nacional. A decisão foi
referendada por unanimidade pela Primeira Turma do STF em 2 de setembro, após a
Corte considerar que todas as tentativas de fazer com que a plataforma
cumprisse as ordens judiciais e pagasse as multas impostas haviam sido
esgotadas.
O
Supremo autorizou o retorno da plataforma X ao Brasil em 8 de outubro de 2024,
após a empresa cumprir as exigências estipuladas pelo tribunal. Entre as
condicionantes para a retomada do serviço, a empresa:
·
bloqueou
os perfis que disseminavam fake news e incitação à violência;
·
nomeou
um representante legal no Brasil, requisito obrigatório para empresas
estrangeiras que operam no país; e
·
pagou
integralmente as multas impostas, que totalizaram R$ 28,6 milhões.
A influência das big techs no debate global sobre redes sociais
A influência das big techs na política e
o apoio à extrema direita global se intensificou nos últimos anos. E Elon Musk
tem desempenhado um papel ativo. Em dezembro de 2024, ele declarou publicamente
seu apoio ao partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha, afirmando
na plataforma X que “apenas
a AfD pode salvar a Alemanha“. Pouco tempo depois, em janeiro de 2025,
Musk participou virtualmente de um evento de campanha do partido, no qual
incentivou os alemães a “superarem
a culpa do passado“
e se orgulharem de sua cultura.
Nos Estados Unidos, a posse de Donald Trump como
presidente, em janeiro de 2025, evidenciou ainda mais a conexão entre as big techs e a
radicalização digital. CEOs e donos de empresas do setor tiveram lugar de
destaque na cerimônia, consolidando sua proximidade com a nova
administração. Durante
o evento, Elon Musk protagonizou um momento de grande repercussão ao fazer
gestos que remetem à saudação nazista, gerando um “show de horrores” que
rapidamente viralizou nas redes.
·
“Tribunais secretos” na América Latina
Alegando “censura nas redes sociais”, a Meta anunciou
que vai se aliar à Trump para pressionar países que buscam regular o ambiente
digital em suas regiões. “Vamos
trabalhar com o presidente Trump para pressionar os governos ao redor do mundo
que estão perseguindo empresas americanas e pressionando para censurar mais”, disse
Zuckerberg. Nas palavras do empresário, “a
única maneira de resistir a essa tendência global é com o apoio do governo dos
EUA”.
E acredita que a Europa está “institucionalizando
a censura“,
e que os
países latino-americanos têm “tribunais
secretos que podem ordenar que empresas retirem coisas discretamente”.
Embora Zuckerberg não tenha citado o STF
explicitamente, membros do governo brasileiro entenderam a fala como uma
crítica às decisões da Suprema Corte que envolvem remoção de conteúdos e
moderação de plataformas digitais.
Fim da moderação: um convite ao discurso de ódio
O contexto da declaração ocorreu durante o anúncio
do fim do programa de checagem de fatos da Meta e sua substituição por um
sistema de “notas da comunidade”, semelhante ao adotado por Musk no X. A
decisão gerou críticas de especialistas e organizações que alertam para os desafios
das plataformas no combate à desinformação em um ambiente político já
polarizado.
Em resposta à declaração do CEO da Meta, o Secretário
de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência, João Brant,
criticou o fim da checagem profissional por meio de um post no LinkedIn: “significa
um convite para o ativismo da extrema direita reforçar a utilização dessas
redes como plataformas de sua ação política“. Brant destaca: “Facebook
e Instagram vão se tornar plataformas que vão dar total peso à liberdade de
expressão individual e deixar de proteger outros direitos individuais e
coletivos”.
O anúncio gerou forte reação por parte de instituições
como o Ministério Público Federal (MPF) e a Advocacia-Geral
da União (AGU), que exigiram esclarecimentos da Meta sobre a moderação de
conteúdos no país.
Alguns dias depois, a Meta comunicou que manterá a checagem de fatos no Brasil,
mas encerrará o programa nos EUA. Informou
ainda que a empresa colocou em prática mudanças na Política de Conduta de Ódio,
o que gerou preocupação no governo.
Diante do fato, a
AGU convocou uma audiência pública em Brasília para discutir as novas políticas
de moderação de conteúdo das plataformas digitais. De acordo com o
órgão público, 45
agentes de instituições ligadas ao tema foram convidados, incluindo
representantes de plataformas digitais, especialistas, agências de checagem de
fatos, acadêmicos e organizações da sociedade civil. Apesar de convidadas, as
plataformas digitais não compareceram.
A audiência pública reforçou a necessidade de regulação
das big
techs para
evitar abusos, garantir a transparência na moderação de conteúdo e proteger os
direitos fundamentais dos usuários. Especialistas apontaram que a falta de
regras claras favorece a desinformação, o discurso de ódio e a exploração
comercial dos usuários.
·
Defesa da regulamentação das plataformas digitais
Partidos de esquerda, setores progressistas da
sociedade, movimentos sociais e organizações da sociedade civil defendem a
criação de um arcabouço regulatório que imponha maior transparência às
plataformas, responsabilize empresas por conteúdos impulsionados e crie
mecanismos eficazes contra a disseminação de fake news.
“É
preciso afirmar sempre que a promoção da integridade da informação não é
censura e a regulação democrática não é uma restrição ilegítima da liberdade de
expressão. E é preciso ter coragem para ir além do que a Europa conseguiu fazer
com o DSA [Digital Services Act, lei de regulamentação de serviços digitais]”, defendeu Bia
Barbosa, representante da organização Repórteres Sem Fronteiras, durante a
audiência pública.
·
Regular as big techs: um passo essencial para frear a extrema direita
A influência das big techs na democracia
brasileira e global evidencia o papel central dessas empresas na disseminação
de desinformação e na radicalização política. O modelo de negócios dessas
plataformas, baseado no engajamento e na priorização de conteúdos
polarizadores, favorece diretamente a extrema direita, criando um ambiente
digital propício à manipulação da opinião pública e à erosão das instituições
democráticas.
No Brasil, os impactos desse fenômeno foram visíveis
nas eleições recentes e em eventos como a invasão de 8 de janeiro de 2023,
demonstrando como a desinformação se tornou um instrumento estratégico para
movimentos autoritários. O embate entre governos e big techs, evidenciado no
caso do STF contra a plataforma X, reforça a necessidade urgente de
regulamentação para evitar que essas empresas continuem operando sem
transparência e sem mecanismos eficazes de responsabilização.
A mobilização de setores progressistas e a defesa de um
arcabouço regulatório para as plataformas digitais são passos essenciais para
restaurar o equilíbrio do debate público e proteger a democracia. O desafio,
contudo, é enfrentar o forte lobby das big techs, que utilizam sua
influência global para tentar barrar qualquer tentativa de regulação.
Garantir transparência, responsabilidade e justiça na
moderação de conteúdo é fundamental para impedir que a lógica do lucro continue
se sobrepondo à integridade da informação e ao direito da sociedade a um
ambiente digital democrático e plural. Concluo com uma reflexão de Isabel
Loureiro, professora de filosofia, durante a aula “Socialismo ou Barbárie” do
curso “O
Legado Revolucionário de Rosa Luxemburgo”: “Rosa Luxemburgo propõe que os partidos
de esquerda não abram mão de seus princípios, mesmo que corram o risco de
perder seguidores”.
Fonte: Por Katarine Flor, no Le Monde
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