quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Big techs desafiam a democracia e favorecem a extrema direita

Do Brasil à Alemanha, a interferência das big techs na política tem despertado preocupação. No país latino-americano, Elon Musk, proprietário do X (antigo Twitter), confrontou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao desafiar decisões que determinavam o bloqueio de contas ligadas a redes de desinformação e ataques à democracia. Em meio ao conflito, o bilionário chegou a sugerir que os brasileiros burlassem restrições judiciais, acirrando o embate entre a plataforma e o Judiciário.

Na Alemanha, Musk escancarou seu alinhamento com a ultradireita ao apoiar o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), participando de eventos políticos e normalizando discursos extremistas.

Nos Estados Unidos, integrantes da “elite tecnológica” tiveram lugar de destaque na posse de Donald Trump em janeiro de 2025. Durante a cerimônia, gestos de Musk que remeteram à saudação nazista geraram indignação internacional e reforçaram temores a respeito da influência das big techs na ascensão de governos autoritários.

No mesmo mês, o CEO da Meta – companhia que controla Facebook, Instagram e Whatsapp – Mark Zuckerberg afirmou que vai trabalhar com o presidente estadunidense para impedir o avanço de países que buscam regular o ambiente digital. E fez insinuações sobre a existência de “tribunais secretos” na América Latina.A declaração foi interpretada, no Brasil, como uma referência indireta ao STF, que tem julgado casos de desinformação envolvendo as plataformas digitais no país.

·        Solo fértil para desinformação

As redes sociais se tornaram terreno fértil para a desinformação. Estudos indicam que setores alinhados à extrema direita se beneficiaram dessas plataformas, transformando-as em espaços de criação e fortalecimento de “bolhas informativas” — ambientes onde os usuários interagem predominantemente com conteúdos que reforçam suas convicções e limitam o debate plural.

Esse fenômeno é intensificado pelos algoritmos das plataformasque priorizam conteúdos com alto potencial de engajamento. Notícias falsas e sensacionalistas, por despertarem emoções como medo e indignação, tendem a se espalhar mais rapidamente do que conteúdos informativos. Isto é o que aponta uma pesquisa do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O estudo revelou que notícias falsas populares atingem até 100 mil pessoas, enquanto as verdadeiras raramente ultrapassam o alcance de mil indivíduos. Esse descompasso evidencia o papel dos algoritmos na amplificação de conteúdos polarizadores, tornando as plataformas peças-chave no ecossistema da desinformação.

Esse ciclo cria um ambiente propício para a manipulação da opinião pública, com impactos diretos sobre processos democráticos. Segundo pesquisa do Instituto DataSenado, 81% dos brasileiros acreditam que as fake news podem afetar significativamente o resultado das eleições.

·        Fake news: uma ameaça ao processo eleitoral

O impacto das fake news na democracia não se limita à percepção popular. Já se manifestou de forma bem concreta nas últimas eleições brasileiras. Um estudo de Margareth Vetis Zaganelli e Simone Guerra Maziero, publicado na Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político, aponta que a disseminação de desinformação eleitoral ganhou força a partir de 2018, tornando-se um instrumento de manipulação política.

As eleições de 2018 e 2022 foram marcadas pelo uso de fake news com a intenção de deslegitimar o sistema eleitoral. Informações falsas sobre as urnas eletrônicas foram amplamente compartilhadas, alimentando a desconfiança no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Vídeos manipulados, memes e mensagens de áudio circularam massivamente em aplicativos como WhatsApp e Telegram, criando um ambiente de descrença e instabilidade.

Além disso, uma análise conduzida pela Agência Lupa, em parceria com a USP e a UFMG, examinou 347 grupos públicos de WhatsApp durante o segundo turno das eleições de 2018. O estudo revelou que, entre as cinquenta imagens mais compartilhadas, apenas quatro eram verdadeiras. Isso demonstra como conteúdos manipulados e retirados de contexto foram amplificados, influenciando diretamente o processo democrático e aprofundando a polarização política.

·        O papel dos algoritmos e o modelo de negócios das big techs

As grandes plataformas digitais, como Facebook, WhatsApp, Telegram e X, não só facilitam a disseminação de desinformação como também lucram com ela. O modelo de negócios dessas empresas é baseado na “economia da atenção”, em que conteúdos que geram forte reação emocional – como medo, raiva ou indignação – são priorizados para maximizar o tempo de permanência dos usuários.

O professor da UFABC Sérgio Amadeu, no artigo “Plataformas se convertem em estruturas geopolíticas da extrema direita”, argumenta que as redes sociais aplicam na prática o princípio de Goebbels: “uma postagem é verdadeira se for replicada um milhão de vezes”. O pesquisador explica que as plataformas digitais operam com base na coleta massiva de dados dos usuários, permitindo que conteúdos polarizadores sejam direcionados com precisão para maximizar o engajamento. Esse ciclo vicioso favorece a radicalização política e dificulta o combate à desinformação.

·        Conflitos entre big techs e instituições democráticas no Brasil

A influência das big techs na política não se limita à disseminação de desinformação durante as eleições. Essas plataformas também ocuparam um espaço central na mobilização de ações antidemocráticas. O episódio mais emblemático desse uso estratégico pela extrema direita no Brasil ocorreu em 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Investigações revelaram que aplicativos como Telegram e WhatsApp foram utilizados para coordenar as ações, enquanto o X serviu como espaço para disseminação de mensagens extremistas e incitações à insurreição. Segundo Zaganelli e Maziero, “a desinformação viralizada nas redes sociais, além de moldar a opinião pública, incentiva narrativas que questionam a legitimidade das instituições democráticas”.

O Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro de 2023 reforça essa análise ao descrever como milicianos digitais foram empregados para disseminar medo, desqualificar adversários e atacar o sistema eleitoral. O documento destaca que “os golpes modernos (…) não usam tanques, cabos e soldados”. Os ataques seguiram uma estratégia de guerra híbrida, que combina desinformação massiva com ações políticas e sociais. Esse modelo, impulsionado pelas redes sociais, intensificou a radicalização e incentivou ações violentas contra as instituições democráticas.

·        STF versus X: a crise entre justiça e as big techs

O embate entre o STF e a plataforma X tornou-se um dos maiores confrontos entre uma big tech e o Estado brasileiro. O conflito remonta a investigações anteriores sobre redes de desinformação, mas ganhou força após os atos de 8 de janeiro de 2023, quando grupos bolsonaristas tentaram depor o governo democraticamente eleito.

Após os ataques às sedes dos Três Poderes, a Corte determinou o bloqueio de contas dos envolvidos na disseminação de fake news e incitação à violência contra as instituições democráticas. Essas suspensões foram baseadas em investigações já em andamento, como o Inquérito das Milícias Digitais (Inq. 4.874) e o Inquérito das Fake News (Inq. 4.781), que apuram o uso de redes sociais para organizar ataques ao regime democrático.

Em abril de 2024, o conflito escalou quando Elon Musk criticou publicamente o STF e ameaçou reativar as contas bloqueadas por decisões judiciais. Musk acusou o ministro Alexandre de Moraes de censurar a plataforma e sugeriu que usuários brasileiros utilizassem redes privadas virtuais (VPNs) para burlar as restrições impostas pela Justiça.

Em resposta, Moraes determinou a inclusão de Musk como investigado no Inquérito das Milícias Digitais, sob suspeita de obstrução de Justiça, incitação ao crime e desobediência a decisões judiciais. O ministro também instaurou um novo inquérito para apurar especificamente a conduta do empresário.

O caso alcançou seu ápice em 30 de agosto de 2024, quando o ministro determinou a suspensão da plataforma X em todo o território nacional. A decisão foi referendada por unanimidade pela Primeira Turma do STF em 2 de setembro, após a Corte considerar que todas as tentativas de fazer com que a plataforma cumprisse as ordens judiciais e pagasse as multas impostas haviam sido esgotadas.

O Supremo autorizou o retorno da plataforma X ao Brasil em 8 de outubro de 2024, após a empresa cumprir as exigências estipuladas pelo tribunal. Entre as condicionantes para a retomada do serviço, a empresa:

·        bloqueou os perfis que disseminavam fake news e incitação à violência;

·        nomeou um representante legal no Brasil, requisito obrigatório para empresas estrangeiras que operam no país; e

·        pagou integralmente as multas impostas, que totalizaram R$ 28,6 milhões.

A influência das big techs no debate global sobre redes sociais

A influência das big techs na política e o apoio à extrema direita global se intensificou nos últimos anos. E Elon Musk tem desempenhado um papel ativo. Em dezembro de 2024, ele declarou publicamente seu apoio ao partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha, afirmando na plataforma X que “apenas a AfD pode salvar a Alemanha“. Pouco tempo depois, em janeiro de 2025, Musk participou virtualmente de um evento de campanha do partido, no qual incentivou os alemães a “superarem a culpa do passado“ e se orgulharem de sua cultura.

Nos Estados Unidos, a posse de Donald Trump como presidente, em janeiro de 2025, evidenciou ainda mais a conexão entre as big techs e a radicalização digital. CEOs e donos de empresas do setor tiveram lugar de destaque na cerimônia, consolidando sua proximidade com a nova administração. Durante o evento, Elon Musk protagonizou um momento de grande repercussão ao fazer gestos que remetem à saudação nazista, gerando um “show de horrores” que rapidamente viralizou nas redes.

·        “Tribunais secretos” na América Latina

Alegando “censura nas redes sociais”, a Meta anunciou que vai se aliar à Trump para pressionar países que buscam regular o ambiente digital em suas regiões. “Vamos trabalhar com o presidente Trump para pressionar os governos ao redor do mundo que estão perseguindo empresas americanas e pressionando para censurar mais”, disse Zuckerberg. Nas palavras do empresário, “a única maneira de resistir a essa tendência global é com o apoio do governo dos EUA”. E acredita que a Europa está “institucionalizando a censura“, e que os países latino-americanos têm “tribunais secretos que podem ordenar que empresas retirem coisas discretamente”.

Embora Zuckerberg não tenha citado o STF explicitamente, membros do governo brasileiro entenderam a fala como uma crítica às decisões da Suprema Corte que envolvem remoção de conteúdos e moderação de plataformas digitais.

Fim da moderação: um convite ao discurso de ódio

O contexto da declaração ocorreu durante o anúncio do fim do programa de checagem de fatos da Meta e sua substituição por um sistema de “notas da comunidade”, semelhante ao adotado por Musk no X. A decisão gerou críticas de especialistas e organizações que alertam para os desafios das plataformas no combate à desinformação em um ambiente político já polarizado.

Em resposta à declaração do CEO da Meta, o Secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência, João Brant, criticou o fim da checagem profissional por meio de um post no LinkedIn: “significa um convite para o ativismo da extrema direita reforçar a utilização dessas redes como plataformas de sua ação política“. Brant destaca: “Facebook e Instagram vão se tornar plataformas que vão dar total peso à liberdade de expressão individual e deixar de proteger outros direitos individuais e coletivos”.

O anúncio gerou forte reação por parte de instituições como o Ministério Público Federal (MPF) e a Advocacia-Geral da União (AGU), que exigiram esclarecimentos da Meta sobre a moderação de conteúdos no país. Alguns dias depois, a Meta comunicou que manterá a checagem de fatos no Brasil, mas encerrará o programa nos EUA. Informou ainda que a empresa colocou em prática mudanças na Política de Conduta de Ódio, o que gerou preocupação no governo.

Diante do fato, a AGU convocou uma audiência pública em Brasília para discutir as novas políticas de moderação de conteúdo das plataformas digitais. De acordo com o órgão público, 45 agentes de instituições ligadas ao tema foram convidados, incluindo representantes de plataformas digitais, especialistas, agências de checagem de fatos, acadêmicos e organizações da sociedade civil. Apesar de convidadas, as plataformas digitais não compareceram.

A audiência pública reforçou a necessidade de regulação das big techs para evitar abusos, garantir a transparência na moderação de conteúdo e proteger os direitos fundamentais dos usuários. Especialistas apontaram que a falta de regras claras favorece a desinformação, o discurso de ódio e a exploração comercial dos usuários.

·        Defesa da regulamentação das plataformas digitais

Partidos de esquerda, setores progressistas da sociedade, movimentos sociais e organizações da sociedade civil defendem a criação de um arcabouço regulatório que imponha maior transparência às plataformas, responsabilize empresas por conteúdos impulsionados e crie mecanismos eficazes contra a disseminação de fake news.

É preciso afirmar sempre que a promoção da integridade da informação não é censura e a regulação democrática não é uma restrição ilegítima da liberdade de expressão. E é preciso ter coragem para ir além do que a Europa conseguiu fazer com o DSA [Digital Services Act, lei de regulamentação de serviços digitais]”, defendeu Bia Barbosa, representante da organização Repórteres Sem Fronteiras, durante a audiência pública.

·        Regular as big techs: um passo essencial para frear a extrema direita

A influência das big techs na democracia brasileira e global evidencia o papel central dessas empresas na disseminação de desinformação e na radicalização política. O modelo de negócios dessas plataformas, baseado no engajamento e na priorização de conteúdos polarizadores, favorece diretamente a extrema direita, criando um ambiente digital propício à manipulação da opinião pública e à erosão das instituições democráticas.

No Brasil, os impactos desse fenômeno foram visíveis nas eleições recentes e em eventos como a invasão de 8 de janeiro de 2023, demonstrando como a desinformação se tornou um instrumento estratégico para movimentos autoritários. O embate entre governos e big techs, evidenciado no caso do STF contra a plataforma X, reforça a necessidade urgente de regulamentação para evitar que essas empresas continuem operando sem transparência e sem mecanismos eficazes de responsabilização.

A mobilização de setores progressistas e a defesa de um arcabouço regulatório para as plataformas digitais são passos essenciais para restaurar o equilíbrio do debate público e proteger a democracia. O desafio, contudo, é enfrentar o forte lobby das big techs, que utilizam sua influência global para tentar barrar qualquer tentativa de regulação.

Garantir transparência, responsabilidade e justiça na moderação de conteúdo é fundamental para impedir que a lógica do lucro continue se sobrepondo à integridade da informação e ao direito da sociedade a um ambiente digital democrático e plural. Concluo com uma reflexão de Isabel Loureiro, professora de filosofia, durante a aula “Socialismo ou Barbárie” do curso “O Legado Revolucionário de Rosa Luxemburgo”: “Rosa Luxemburgo propõe que os partidos de esquerda não abram mão de seus princípios, mesmo que corram o risco de perder seguidores”.

 

Fonte: Por Katarine Flor, no Le Monde 

 

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