'Não adianta escola
proibir celular e os pais continuarem deixando usar 5 horas seguidas em casa'
Foi graças ao celular que Débora
Garofalo, na época professora em uma escola municipal paulistana, conseguiu
desenvolver atividades de programação com seus
alunos do ensino fundamental — impulsionando um projeto de robótica com sucata
que a fez chegar aos melhores colocados do Global Teacher Prize, prêmio para
professores considerado o "Nobel da educação".
Ela foi a primeira
brasileira a chegar ao top 10 do prêmio
internacional, em 2019.
Desde que esses
aparelhos eletrônicos passaram a entrar nas salas de aula sem pedir licença,
Garofalo defendeu que eles podem ser aliados, e não inimigos.
Por isso, diante
da notícia recente de
que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a proibição dos celulares
nas escolas e
de iniciativas semelhantes em municípios, estados e outros países, a educadora
critica o banimento puro e simples — apesar de admitir os problemas que o uso
do celular pode acarretar a crianças e adolescentes.
"Não dá para
falar em proibição, que é uma ação radical, se a gente não educar as crianças
verdadeiramente para um uso consciente da tecnologia", afirma
Garofalo, em entrevista à BBC News Brasil.
"A proibição é
uma medida inicial pra gente poder retomar o controle da sala de aula. Ela é um
caminho, mas não pode ser um fim."
Para a educadora,
os celulares são uma possibilidade de conexão em escolas públicas que muitas
vezes não têm computadores para todos, além de uma oportunidade de inclusão
digital para estudantes que não têm acesso pleno à internet em
casa.
A lei que proibe os
celulares nas escolas brasileiras afirma ter como objetivo salvaguardar a saúde mental, física e psíquica
das crianças e adolescentes.
Ao defender a
restrição, o ministro da Educação, Camilo Santana, citou estudos que mostram
que o uso excessivo desses equipamentos pode causar ansiedade e depressão.
Segundo Santana, a proibição seria uma demanda dos próprios professores.
Ao sancionar a lei, no último dia
13, Lula parabenizou a
aprovação do projeto pelo Congresso.
"O que vocês
fizeram nesse ato de coragem foi falar o seguinte: nós vamos cuidar das nossas
crianças, vamos evitar mutilamento, que as crianças possam voltar a brincar,
possam voltar a interagir entre si", disse.
A nova lei abre
exceções para estudantes que precisem do celular por razões de acessibilidade,
inclusão ou condições de saúde, além de permitir o uso dos aparelhos "para
fins estritamente pedagógicos ou didáticos, conforme orientação dos
profissionais de educação".
Também decreta que
as redes de ensino criem estratégias para abordar o tema do uso excessivo de
telas com os estudantes e acolham aqueles que estiverem em sofrimento psíquico
devido à nomofobia (medo ou
ansiedade pela falta do celular).
Para Garofalo, o
aproximação do uso pedagógico das tecnologias começou quando ela, então
professora de língua portuguesa em uma escola municipal, decidiu se candidatar
a uma vaga para professora orientadora de educação digital, em 2015.
Hoje com experiência
de 19 anos em sala de aula, Garofalo é assessora de políticas públicas
inovadoras da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
Ela é também
pós-graduada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora convidada
do curso de especialização em Computação Aplicada à Educação da USP
(Universidade de São Paulo).
Na entrevista,
Garofalo abordou ainda o "apagão" docente, o novo programa de
incentivos à profissão criado pelo governo federal e o papel da inteligência
artificial (IA) na
educação.
"A máquina
pode contribuir para o processo de ensino-aprendizagem, mas não vai substituir
o professor", diz.
<><> Confira
abaixo os principais trechos da entrevista.
·
O
que acha da lei que proíbe celulares em escolas?
Débora Garofalo
- Eu não sou contra, mas acho que é uma medida incompleta. Estamos
esquecendo que o papel principal da escola é educar. Não dá para falar
em proibição, que é uma ação radical, se a gente não educar as crianças
verdadeiramente para um uso consciente da tecnologia.
A lei é importante
para dar um resguardo pedagógico para os professores, mas só isso não é
suficiente para a gente ter uma mudança. Não estamos olhando para a educação
midiática, ainda não conseguimos implementar nas escolas a BNCC [Base Nacional
Comum Curricular] da Computação, que traz os pilares da cultura digital e do
pensamento computacional.
A gente não pode
negar que está vivenciando uma revolução tecnológica. Não dá para a
gente voltar à era do giz e da lousa, somente do livro didático.
Precisamos educar
para o uso, ainda mais em uma sociedade em que teremos cada vez mais a
disseminação de notícias falsas. O estudante tem que saber que, quando acessa
uma rede social ou faz uma pesquisa, existem algoritmos. Ele precisa saber
o que está por trás desse algoritmo.
Não se trata de
formar um programador, mas que ele [o aluno] compreenda a mentalidade por trás
de um dado. Que, ao acessar uma informação, ele não tome aquilo como verdadeiro
e cheque esse dado antes de repassar.
·
No
caso de dispositivos que têm um potencial viciante, como os celulares, a
proibição não se justifica?
Garofalo - Ela
vai atacar o vício num primeiro
momento porque é uma medida drástica, mas se você não tiver o apoio dos pais,
dos familiares em casa, isso cai por terra.
Não adianta a
escola proibir e os pais continuarem permitindo o uso de forma liberada, sem
uma rotina. A criança chega em casa
e fica quatro, cinco horas seguidas no celular ou no computador.
Hoje, o que a gente
vê são as crianças tendo acesso cada vez mais cedo a
dispositivos móveis para entretenimento. A gente precisa mudar isso também,
fazer isso de uma forma mais consciente. A família vai precisar aprender com
esse processo.
·
O
celular não é um fator de distração em sala de aula?
Garofalo
- Realmente, a sala de aula está se tornando um lugar onde o professor não
tem um diálogo com os estudantes. Eu vejo [a proibição] como uma medida
importante para estancar essa epidemia de distração que estamos
vivenciando. Mas só isso não resolve o problema se as aulas não forem mais
atrativas.
Os estudantes hoje
aprendem de uma maneira diferente e lidam de uma forma diferenciada com a
tecnologia. Ele não precisa anotar tudo que o professor fala, pode tirar uma
foto, por exemplo. Isso não é errado, faz parte da maneira dele de aprender.
Quando eu era
professora de tecnologias, o celular foi muito importante para o trabalho de
robótica com sucata. A escola não tinha infraestrutura e o celular possibilitou
que as crianças pudessem programar através dos aplicativos.
É possível usar a
tecnologia com uma intencionalidade pedagógica. Não é usar algo só por usar, é
ter um sentido naquilo que você está propondo.
·
O
celular é necessário para as atividades tecnológicas em sala de aula? Não
poderiam ser usados computadores da própria escola?
Garofalo - A
gente pode usar qualquer dispositivo que tenha conectividade. O que ocorre nas
escolas públicas é que muitas vezes você não tem os computadores necessários
para os estudantes.
Além disso, uma
pesquisa de 2022 mostrou que 71% dos estudantes do ensino fundamental público
não têm acesso à internet em casa. Temos que tomar cuidado para não aumentar
esse abismo digital, deixando esses meninos despreparados para lidar com esse
mundo tecnológico que vai cobrar deles a capacidade de lidar com a inteligência
artificial, pensamento computacional, programação.
Precisamos de
políticas públicas para melhorar a conectividade e a infraestrutura das escolas
em todo o território brasileiro.
·
A
proibição do celular no recreio pode ajudar na socialização dos estudantes?
Garofalo - A
escola é um lugar para a socialização e isso sem dúvida é benéfico, mas esse
tipo de controle vai ser um grande desafio para as escolas, principalmente
porque o aparelho não é da escola, é do estudante. Vai ser mais uma regra,
sendo que as escolas geralmente não têm um quadro suficiente de apoio escolar,
de inspetores.
·
Do
ponto de vista prático, que outros desafios as escolas devem enfrentar para
colocar em prática a lei?
Garofalo
- Essa é uma crítica que eu tenho: é mais uma responsabilidade que recai
sobre a escola. O que elas estão fazendo é criar caixas na entrada para que os
estudantes coloquem os seus celulares, mas e se sumir um pertence? De quem é a
responsabilidade? Isso é muito sério.
A gente também
precisa pensar em todos os estudantes que têm essa necessidade, crianças com
deficiência, com autismo, que às vezes
precisam ficam conectadas por conta das crises, para se autorregular. Como a
escola vai gerir isso?
·
A
lei prevê exceções para esses casos.
Garofalo
- Sim, mas eu estou falando do dia a dia da gestão da escola, de como ela
vai controlar todos esses casos. Precisamos pensar em maneiras de não onerar a
escola, que já tem um dia a dia muito desafiador.
·
Acha
que a proibição pode gerar conflitos em sala de aula entre professores e
alunos?
Garofalo
- Acho que sim. Tudo que é proibido o estudante tende a desafiar. Vai ter
muitos conflitos nesse sentido de o professor ter que tomar o aparelho. Por
isso acho que é uma ação que precisa ser pedagógica, de não fazer algo que seja
tão radical, principalmente para os estudantes que estão doentes com as redes
sociais e com o uso do celular.
·
Mesmo
sendo incompleta, a proibição não pode ser um começo?
Garofalo - A
proibição é uma medida inicial para a gente poder retomar o controle da sala de
aula. Ela é um caminho, mas não pode ser um fim, porque aí vêm todos esses
pilares que precisam ser trabalhados junto com ela.
·
Você
atuava na Secretaria de Educação no Rio de Janeiro quando proibiram os
celulares nas escolas municipais, em 2024. Lá, essa medida funcionou?
Garofalo - Foi
um processo muito dialogado. Abriu-se um edital para que os familiares, para
que a sociedade como um todo opinasse
Como foi um
processo muito democrático, quando chegou esse momento, os estudantes já
estavam cientes. No começo, houve um estranhamento normal, e depois o processo
foi fluindo.
E é importante
salientar que o Rio fez todo um
trabalho ancorado em escolas vocacionadas ao uso de tecnologia e inovação,
principalmente com os GET [Ginásios Educacionais Tecnológicos].
E o professor tem
total autonomia. Quando ele precisa utilizar o celular, ele fala: "Agora
nós vamos nas caixinhas, vocês vão pegar o celular e vamos fazer esse trabalho
aqui".
Então lá essa
medida deu certo, mas existe um aparato de currículo, e é por isso que tem dado
resultado.
·
O
que falta para que as escolas ofereçam a educação midiática?
Garofalo - Um
grande gargalo é a formação docente. Temos documentos que mostram que os
professores têm um déficit nas competências digitais porque não tiveram
formação para isso.
Principalmente
quando olhamos para os municípios, sabemos que não há recursos e equipe técnica
preparada dentro das secretarias para enxergar a BNCC da Computação e fazer
essa implementação.
Precisamos de uma
reforma educacional. A gente precisa dar aporte para os Estados e municípios
realmente implementarem um currículo que fale de tecnologia, para que o
estudante não seja um mero consumidor dessa tecnologia, que ele possa vivenciar
esse papel de produtor.
·
governo federal também lançou o programa Mais
Professores, com bolsas para alunos de licenciatura e um adicional de salário
para professores que lecionarem em regiões com déficit de profissionais. Esses
auxílios podem resolver o "apagão" docente (déficit de professores)?
Garofalo
- Eles são válidos para atrair os jovens para a carreira, mas também não
podem ser o único fator. A carreira do professor exige muito estudo, muita
dedicação. O incentivo financeiro pode ser um atrativo inicial, mas não pode
ser o único. Temos que pensar a longo prazo na qualidade dessa educação.
É preciso
reformular a formação inicial, valorizar a carreira como um todo,
melhorar as condições dentro da sala de aula.
Se esse professor
tem 25 turmas, cada uma com 35 estudantes, como eu já tive, como é que ele vai
personalizar aulas para 30 crianças que estão aprendendo em ritmos
diferenciados? Se ele trabalha em três ou quatro escolas diferentes para
constituir um único salário, como ele vai ter tempo de se atualizar?
A gente já sabe
quais são os problemas para resolver na educação, mas a gente ainda parte de
premissas e ações isoladas.
·
O
quão grave é esse apagão docente no Brasil e por que ele acontece?
Garofalo
- Faltam professores simplesmente porque a carreira é muito desprestigiada
no Brasil. Os nossos estudantes já perceberam isso e preferem seguir outras
profissões. Faltam melhores condições para lecionar, um plano de carreira
melhor.
A gente vê falta de
professores ao longo do país, principalmente em áreas de exatas, como matemática ou física,
mas não só. Faltam professores em território mais vulneráveis, com maior
complexidade.
Faltam também mais
concursos públicos. Hoje, a gente tem muitos professores temporários para
suprir essas necessidades, que não têm os mesmos benefícios de carreira que um
profissional concursado.
É por isso que a
gente precisa de uma reforma educacional. Enquanto sociedade, temos que nos
conscientizar de que só vamos evoluir se investirmos em educação.
·
Acha
que a inteligência artificial vai substituir o professor?
Garofalo
- Acho que isso nunca vai acontecer. O professor tem um papel fundamental
de mediar os processos de conhecimento e de fazer parte dessa construção do
aprendizado do estudante. Educação é interação, é presencial.
Acho que a pandemia deixou isso
muito claro, tanto que a gente tem um déficit de aprendizagem que vem desse
período e que até hoje não foi sanado.
A inteligência
artificial não deve ser desconsiderada, ela pode agregar muito à educação. O
professor pode usá-la, por exemplo, para a parte administrativa, pode trabalhar
uma plataforma adaptativa para os estudantes com deficiência, que o ajuda a
atuar de uma maneira mais personalizada.
A máquina pode
contribuir para o processo de ensino-aprendizagem, mas não vai substituir o
professor. É a pessoa que faz a diferença.
Fonte: BBC News
Brasil
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