Chuvas: quando o
sofrimento se reduz a espetáculo
A frase amplamente
repetida e veiculada diante dos chamados “desastres naturais” orienta que em
momentos de extrema aflição em situações de risco é necessário agir, embora não
nos diga exatamente de que forma proceder. Dentre as inúmeras ações possíveis,
há quem utilize o celular para registrar a situação vivida e compartilhá-la com
o maior número de pessoas.
A veiculação, por
vezes em tempo real, de imagens produzidas com o uso de celulares por pessoas
comuns tem se tornado uma estratégia recorrente na constituição de narrativas
midiáticas, que reforçam a vilanização do tempo, da chuva e outros fenômenos
naturais, a responsabilização da população por suas ações e a espetacularização
do sofrimento.
Recentemente, as
múltiplas ocorrências de fortes chuvas em várias cidades brasileiras foram
noticiadas, notadamente, aquelas que aconteceram entre os dias 24 de janeiro e
10 de fevereiro de 2025, na Região Metropolitana de São Paulo e em Recife.
Várias reportagens ecoaram termos como “desespero”, “ameaça”, “risco”, “morte”,
acompanhados de expressões como “mau tempo”, “o dia virou noite”, “chuvas
deixam mortos”.
Catástrofes
naturais, crimes e crises políticas são frequentemente retratados como se
fossem o prenúncio do caos absoluto, sem a devida contextualização e análise
crítica. O uso de narrativas midiáticas que prezam pelo sensacionalismo pode
contribuir para uma percepção distorcida da realidade, gerando pânico, tristeza
e ansiedade desnecessários entre o público. A cobertura alarmista dos fatos
distorce a função primordial da informação que deveria circular com precisão e
responsabilidade. Isso não apenas gera efeitos, por vezes desnecessários, mas
também dificulta a compreensão dos fatos e a busca por soluções.
Em vez de provocar
a indagação, a reflexão e a crítica, esse tipo de abordagem dramatiza os
acontecimentos, explorando emoções como medo, indignação e choque para prender
a atenção do público. A busca incessante por cliques, likes e
audiência acarreta uma priorização das histórias chocantes, em detrimento de
reportagens aprofundadas, tanto pelos meios de comunicação que as produzem,
quanto pelo público que as assiste. Em muitos casos, isso resulta na
disseminação de informações imprecisas ou incompletas, prejudicando o debate
qualificado do público.
As imagens
produzidas em situações de desespero, frequentemente, refletem uma lógica de
espetacularização que pode ser analisada sob a ótica da percepção capitalista
do que estamos chamando de a “mais-valia da dor”. Nesse contexto, o sofrimento
humano em distintas situações de tragédias é transformado em um produto que
gera valor, a rigor, em detrimento da dignidade dos sujeitos retratados.
Quando a mídia ou
outras plataformas de comunicação capturam ou reproduzem e disseminam imagens
de desespero, como as produzidas em desastres naturais, crises humanitárias ou
situações de violência, elas tendem a enfatizar o drama e a tragédia. O
sujeito, portanto, perde o seu nome, a sua identidade, a sua subjetividade, a
sua individualidade, a sua história. Isso não apenas atrai a atenção do
público, mas também pode gerar uma forma de consumo emocional, na qual o
sofrimento torna-se a grande mercadoria. Guy Debord (2003, p. 14), afirma que o
vivido está se esvaindo na fumaça da representação, trata-se de “[…] uma
relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”.
Este tipo de abordagem
reforça uma narrativa que ignora as causas estruturais do sofrimento como as
desigualdades étnico-racial, socioeconômica e ambiental, a própria exploração
econômica e da força de trabalho, bem como da falta de implementação de
políticas públicas adequadas. Em vez de promover uma compreensão crítica e
empática das situações, as imagens espetacularizadas, geralmente, perpetuam
estigmas e simplificações, transformando a dor e o sofrimento em símbolos
máximos.
É o caso das chuvas
torrenciais que caíram sobre a cidade de São Paulo, em 24 de janeiro deste ano,
as quais foram registradas por vários sujeitos. Em um dos vídeos compartilhados
nas redes sociais, é possível ver ao menos vinte pessoas que ficaram retidas no
metrô, sentadas ou de pé sobre os corrimãos, agarradas às paredes ou mesmo às
estruturas das tubulações elétricas. Em meio àquele que parecia uma espécie de
acervo do caos, uma cena viralizou.
Um homem filmava o
volumoso e célere fluxo das águas que invadiram os túneis do transporte
subterrâneo. Ele se despedia da
sua companheira. E,
embora não fosse possível vê-lo, o seu desalento e o seu choro causaram comoção
ao revelar: “Tá dando medo! Mas, eu sei que se acontecer alguma coisa, eu vou
te encontrar de novo hoje ou no reino dos céus”. O desespero diante da
iminência da finitude da vida foi noticiado na manhã do dia seguinte por um
jornal televisivo. Pouco antes da sua exibição, a apresentadora mencionou a
produção audiovisual como “o vídeo gravado por um pedestre na estação, na zona
norte de São Paulo” e anunciou o recorte do “trecho em que ele mostra o
desespero e tenta se abrigar ali”.
Contudo, para além
daquilo que nos foi mostrado em uma pequena fração de segundos, caberia
perguntar: Quem era aquele trabalhador nomeado como “um pedestre”? Quem eram
todas as outras pessoas que ali estavam? Quando e como todas conseguiram sair
daquele lugar? E quando elas chegaram em suas casas, em quais condições as
encontraram? Estavam também alagadas? Como estavam os seus familiares? Naquela
noite, foi possível dormir ou foi preciso suspender os móveis e retirar a lama
do imóvel? Havia risco de deslizamentos, desabamentos em suas localidades? O
fato é que, provavelmente, no dia seguinte, todos/as aqueles/as
trabalhadores/as retornaram aos fluxos das linhas de metrô para voltar aos seus
respectivos locais de trabalho.
Dando continuidade
à matéria jornalística, após afirmar que o desespero demonstrado por aquele
homem foi sentido por todos que estavam ou poderiam estar na mesma situação, o
tenente da Defesa Civil, convidado pelo programa, afirmou que: “[…] em meio ao
desespero, nós precisamos saber o que fazer”. O oficial destacou casos em que
as pessoas sobreviveram, mesmo estando em situações de extremo perigo e que os
alertas emitidos de forma cada vez mais abrangente, acessível e articulada pela
Inteligência Artificial, possibilitam saber, com antecedência, quando poderão
ocorrer outros eventos climáticos semelhantes.
O sistema de
alertas implementado em várias capitais do Brasil, embora fundamental para
reduzir danos em situações de risco, tende a transferir a responsabilidade das
gestões públicas ao sujeito. O alerta que dizia: “Chuva forte se espalhando
pela capital paulista com rajadas de vento e risco de alagamento. Mantenha-se
em local seguro”, tem a ênfase no aviso de perigo, sem ações concretas de
infraestrutura e políticas públicas adequadas. A sua orientação “mantenha-se em
local seguro” nos faz pensar: Que lugares estariam realmente seguros naquelas
circunstâncias? E, por outro lado, parece eximir o Estado da obrigação de
prevenir ou mitigar os impactos dos fenômenos naturais, cujas mutações têm
tornado-os cada vez mais intensos e constantes, devido aos efeitos das mudanças
climáticas. A emissão deste tipo de alerta automaticamente designa a população
como a principal responsável por sua própria segurança, fortalecendo a ideia do
discurso neoliberal de que basta a ação individual para evitar tragédias.
Contudo, não há garantias de que existirão abrigos disponíveis ou um plano
estruturado para a evacuação das pessoas das áreas de risco.
Em contextos
semelhantes, a exemplo das enchentes que ocorreram no Rio Grande do Sul, a
menos de um ano atrás, os refugiados do clima não tiveram para onde retornar.
Desse modo, as “catástrofes” e “tragédias” climáticas (usando termos que
circulam nos meios de comunicação de massa) ganham um caráter de continuidade
pelos efeitos que permanecem, mesmo quando o céu volta a ficar azul.
Centrar as formas
de enfrentamento à crise climática no sistema de alertas, e neste tipo de
discurso, naturaliza as desigualdades étnico-racial e social, pois a
vulnerabilização vivenciada por parte da população não é uma questão de escolha
individual, mas sim da falta de políticas habitacionais, planejamento urbano e
investimentos em prevenção ambiental. Ou seja, o foco na ação individualizada
suprime a responsabilidade das gestões municipais, estaduais e federais sobre a
falta de infraestrutura adequada, de políticas ambientais e da negligência na
adaptação das cidades para lidar com os eventos extremos. O alerta deve
constituir-se em instrumento complementar às políticas públicas eficientes e
não uma forma de transferência da responsabilização. Sem ações preventivas,
como o mapeamento de áreas de risco, investimentos em drenagem urbana e
planejamento habitacional, os avisos e alertas, apartados de outras ações
intersetoriais, tornam-se apenas um paliativo, estando a população à mercê da
própria sorte.
Poucos dias depois,
antes mesmo que moradores da capital paulista pudessem secar completamente as
suas casas ou restaurar os seus móveis, os seus pertences e a si mesmos, caíram
outras chuvas torrenciais na chamada “Grande São Paulo” e foram produzidos
outros tantos vídeos, alguns amplamente disseminados pela mídia. A
comunicadora, que falava do “pedestre do metrô”, havia se referido a tais
produções como “relatos e flagrantes impressionantes e emocionantes de pessoas
que ficaram ilhadas”, ampliando o acervo do caos e a mais-valia da dor.
E foi assim que no
dia 10 de fevereiro, na Vila Fátima, em Guarulhos, no interior de um
ônibus quase submerso,
o homem que dirigia o veículo, identificado como “o motorista”, aparece
clamando em um trecho de um desses vídeos disseminados: “Meu Deus, gente! Me
ajuda aqui! Tô desesperado! Tô na [Avenida] Monteiro Lobato, aqui!”. Mais uma
vez, “em meio ao desespero”, outro homem se viu compelido a fazer algo. E, de
forma semelhante ao “pedestre”, o “motorista” agiu usando o aparelho celular
para captar as imagens que evidenciaram a criticidade da situação vivida por
ele e por outras pessoas que tentaram se manter sobre as cadeiras do ônibus,
compartilhando as cenas nas redes sociais para midiatizar o seu pedido de
socorro.
Porém, a despeito
do choque e da perturbação provocados pelos gritos e deslocamentos pouco
exitosos realizados pelas outras pessoas que viajavam no transporte coletivo, a
reportagem que expôs várias imagens de corpos-trabalhadores tornados
corpos-penínsulas foi iniciada, assim como no título, com as imagens dos “carros 0 km
flutuando”
no pátio de uma revendedora de veículos importados. Houve grande destaque para
os carros elétricos e o “prejuízo milionário da concessionária”. O “cenário
devastador” era mostrado, enquanto a repórter falava sobre perdas estimadas em
50 milhões de reais e ratificava aquela que parecia ser a mais relevante
preocupação: “Eu não sei se o seguro cobre isso”.
É importante
destacar que, ao contrário do ônibus, os carros estavam vazios. Qualquer
semelhança com o filme “O parasita” não é mera coincidência.
Mas, em meio ao
caos, desespero e temor pela perda da vida evidenciado no pedido de socorro do
“motorista” e do “pedestre do metrô”, uma artista nacionalmente conhecida,
moradora de uma das áreas mais nobres da região de Barueri/SP, também ganhou
destaque. Ao contrário dos homens citados anteriormente, a mesma é referida
sempre por seu nome e sobrenome em todas as matérias que divulgaram o seu caso.
No vídeo gravado ela comenta: “Tá chovendo gelo,
Brasil! Meu
Deus, proteja o meu telhado, meu Deus! […] Galera, se liga como é que tá meu
jardim: gelo, gelo, gelo, gelo. Parece que tô na neve. Nem precisei ir para a
neve, ela veio até a São Paulo. […] Começou a brincadeira da chuva de gelo. ”
Modulando a voz, com a mesma frequência de quando canta as suas músicas, ela
brinca com a situação, ainda que demonstre certa preocupação com o estrago
provocado em seu telhado e dentro de sua residência com a entrada de água.
Quando a tempestade
atinge a “Grande São Paulo” e se torna a notícia, revela a forma como a cidade,
frequentemente vista como um símbolo de oportunidades de trabalho e desenvolvimento
econômico, também é um espaço marcado pela exploração e desigualdade
étnico-racial e social. Expõe o sistema que perpetua a marginalização e a
invisibilização de determinados sujeitos e a precarização do trabalho.
Tacitamente está ali a realidade dos trabalhadores e trabalhadoras,
especialmente os/as pretos/as, migrantes ou descendentes de migrantes,
notadamente nordestinos/as.
Podemos perceber
que as imagens destacadas das chuvas na “Grande São Paulo” objetifica as
pessoas em categorias como “um pedestre” e “o motorista”, denotando como a
narrativa midiática segue o mesmo rumo do discurso capitalista e neoliberal da
produção da exploração de pessoas reduzidas à dimensão do trabalho. Essa
narrativa, por vezes, ignora ou minimiza as realidades, focando em uma imagem
idealizada da cidade como um centro de progresso e inovação. Então, mesmo
quando esta é confrontada por fenômenos que expõe a sua fragilidade e pequenez,
frente à grandeza dos eventos climáticos, como este em que suas avenidas e ruas
sangraram como veias rompidas produzindo um processo hemorrágico, a
representação que fundamenta a narrativa das imagens que viralizaram,
desumaniza sujeitos específicos e reforça o lugar da diferença. Assim, em meio
à perda da humanidade do outro, a Grande São Paulo ainda mantém a sua
dignidade.
Já na cidade do
Recife, em 5 de fevereiro quando chuvas torrenciais também romperam e
interromperam o fluxo das avenidas e ruas da cidade, foi o discurso do poder
destruidor das chuvas que ganhou destaque, ou seja, aquelas que “matam”,
“destroem”, “arrastam” e “arrasam”.
Em nenhuma das
notícias analisadas discutiu-se como a gestão do território e de políticas
públicas adequadas de moradia, saúde, infraestrutura urbana, dentre outras,
podem modificar a forma como estes eventos impactam as cidades. É importante
considerar que a atuação do estado é fundamental na prevenção e na resposta aos
desastres naturais, mas isso a rigor não é o centro do debate nas narrativas
midiáticas.
Mesmo com todas as
críticas que devem ser tecidas aos governos, as reportagens não costumam citar
ou problematizar o que tem sido feito ou não em relação ao enfrentamento à
crise climática nos estados. É importante relembrar, ainda no segundo mandato
do presidente Lula, a implementação da Lei 12.187/2009 que instituiu a Política
Nacional sobre Mudança do Clima. Ademais, já neste terceiro mandato o ajuste
feito para inserir à pasta do meio ambiente a questão, renomeia o Ministério do
Meio Ambiente para Ministério do Meio ambiente e Mudança do Clima, o qual tem
buscado estabelecer diretrizes para a mitigação das emissões de gases de efeito
estufa, o incentivo ao uso de energias renováveis, a promoção de programas de
conservação ambiental e o desenvolvimento de ações para a adaptação do país às
mudanças climáticas. Para tanto, foi instituída a Secretaria Nacional de
Mudança do Clima, vinculada a esse ministério, a qual dentre o conjunto de
ações e programas desenvolvidos, instituiu o Comitê Interministerial sobre a
Mudança do Clima, o Plano Clima e o Programa AdaptaCidades.
A COP-30, ou
Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do
Clima, constituirá evento importante para o Brasil pautar a discussão e
negociação de ações relacionadas às mudanças climáticas. Programada para acontecer
em novembro deste ano, em Belém/PA, o encontro será uma oportunidade para os
países revisarem e firmarem novos compromissos climáticos e avançarem nas metas
estabelecidas no Acordo de Paris.
Em suma, a relação
entre a espetacularização do sofrimento e a lógica neoliberal revelam a
mais-valia da dor, ou seja, como o sofrimento humano pode ser explorado para
gerar lucro, visibilidade e engajamento, ao passo em que desconsidera a
complexidade das realidades vividas pelos sujeitos. Essa dinâmica ressalta a
necessidade de uma abordagem mais ética e responsável na representação de
crises e desastres climáticos, que priorize a dignidade e a voz dos afetados,
sobretudo, num contexto em que as mudanças climáticas tendem a aprofundar as
históricas desigualdades sociais e étnico-raciais, haja vista a sociedade
brasileira ter sido constituída a partir da expropriação das terras e bens
naturais, bem como da produção da aculturação, assimilação, violência,
genocídio e escravização dos povos originários e africanos.
Para que não haja
tanto desespero, nós todos, incluindo governos e outras instituições,
precisamos desenvolver consciência crítica e ações efetivas para que saibamos o
que fazer juntos.
Fonte:
Por Diana Anunciação e Lilian Miranda, para a coluna Saúde É Coletiva
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