sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Carlos Bocuhy: Trump inicia desmonte da proteção ambiental e humanitária

O modelo constitucional do governo norte-americano concede amplos poderes presidenciais. No momento atual, com Donald Trump voltando à Casa Branca, é necessária uma ampla avaliação sobre os riscos e impactos desse controle excessivo.

Trump ampliou seus poderes na área econômica com o artifício da declaração de estado de emergência nas áreas de fronteiras e de saúde.

Até no âmbito natural mais elementar, da segurança alimentar, as propostas de Trump se distanciam da realidade. Por exemplo, sua promessa de tarifaço a produtos estrangeiros inviabilizaria que o prato dos americanos continuasse a contar com os nove quilos anuais habituais de abacaxi per capita. Cerca de 90% do guacamole (abacate) e de tantos outros produtos amplamente consumidos não são produzidos nos Estados Unidos.

O atual presidente dos EUA pretende “fazer a América cara de novo”, afirmou jocosamente Matt Devan, da rede americana ABC. Coagir economicamente países que são parceiros naturais, fronteiriços, depois voltar atrás por falta de razoabilidade nas propostas, demonstra ações erráticas, incapacidade de gestão e de diplomacia.

Trump segue de forma agressiva. Alardeia o “America First, sem considerar a ordem natural do mundo e regras naturais. Sequer avalia se a própria casa ficaria sem guacamole e abacaxi.

O sistema de negociação agressivo testa limites de resistência com falácias. Alardeia para atingir objetivos menores, sem fundamentação jurídica, técnica ou científica. Para sustentar a bravataria e propostas desarrazoadas, adota medidas de exceção.

As notícias são de arrepiar. A pilhagem da América inicia seu curso, a partir de sua espoliação para além dos limites naturais. O fato se agrava com a oligarquia de interesses econômicos inserida por Trump nos altos escalões do poder.

Há inúmeros riscos e impactos ao dissociar ações políticas da base natural-territorial. Sem reflexão humanística, Trump elimina qualquer possibilidade de segurança social e ecológica.

Sem preocupações éticas, Trump avança com uso de coerção para obter submissão interna do aparelho estatal. Visa neutralizar mecanismos de reflexão e controle social. Sua ação leva ao obscurantismo, reprimindo a ciência e aprisionando sua expressão.

Trump decretou a suspensão das comunicações públicas para agências de saúde federais. A emissão de documentos, orientações ou avisos fica suspensa até que tais documentos possam ser aprovados por “um nomeado presidencial”. Em outras palavras, impõe-se da figura de um censor!

“Confusão e ansiedade estão se espalhando pela comunidade de pesquisa em saúde dos EUA”, afirmou a revista Nature. O governo cancelou abruptamente as revisões de bolsas de pesquisa, viagens e treinamento para cientistas dentro e fora dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), o maior financiador Público de pesquisa biomédica do mundo.

Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (Noaa) está sendo intimidada por Elon Musk e seu Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês). Houve corte de pessoal com alegações de que a agência era “prejudicial à prosperidade dos EUA” por seu papel na ciência climática.

Como consequência, agências europeias como a Copernicus suprirão a necessidade de dados climáticos globais e os Estados Unidos perderão seu espaço referencial e expertise tecnológica.

Na era da informação, a tentativa de abafar a Noaa será como tentar represar um rio com falácias. Considerando o momento sensível da emergência climática planetária, esse é o tipo de ação que corrói, internamente e no exterior, qualquer sobrevida política.

A magistratura começa a agir firmemente. Uma juíza federal suspendeu a ordem de Trump para congelar bilhões de dólares em ajudas financeiras, que incluem socorro a desastres, compra de merenda escolar e empréstimos a pequenas empresas. Trump imediatamente voltou atrás e revogou a ordem.

“America First” representa a crença de que o mundo gira em torno da América. Para convencer sua torcida, o governo fóssil de Trump impõe atmosfera medieval, como a que tentou reprimir as ideias de Galileu.

Por puro interesse especulativo da base política, Trump segue rumo à facilitação para combustíveis fósseis. As medidas tomadas até o momento e as nomeações do secretariado revelam o perfil do governo e suas ações setoriais.

O novo secretário do Interior Doug Burgum, em seu primeiro dia de gestão, abriu milhões de acres em terras federais para exploração e para perfuração de petróleo e gás, além de mineração.

Alan Zibel, diretor de pesquisa da Public Citizen, disse que o Departamento do Interior “parece inclinado a encolher ou vender terras públicas para interesses de combustíveis fósseis e empresas de mineração, atendendo interesses que foram benfeitores generosos da campanha de Trump”.

As ações de Burgum atingem ainda a proteção de sítios e monumentos nacionais, além de espécies da flora e fauna.

A área governamental vocacionada ao controle de poluição é a Environmental Protection Agency (EPA). Sofreu perda de 200 funcionários da área de justiça ambiental, colocados compulsoriamente em “licença”. A divisão era encarregada de integrar equidade e direitos civis na formulação de políticas ambientais. O Departamento de Justiça também sofreu cortes para funcionários que exerciam funções assemelhadas.

“O ataque caótico do governo Trump à EPA e ao Escritório de Justiça Ambiental e Direitos Civis Externos exporá os americanos em todo o país a uma poluição mais mortal”, disse Jen Duggan, diretora executiva do Projeto de Integridade Ambiental.

Na política externa, os Estados Unidos experimentam agora o isolamento e a decrepitude de multilateralismo, uma das poucas virtudes que restava à nação de George Washington durante os últimos governos progressistas.

O desmonte norte-americano da USAID, o maior doador humanitário do mundo, vai de encontro ao perfil sociopata e isolacionista de Trump. Com alegações infundadas de que organismos humanitários são dominados pela esquerda e que o aporte de recursos é um roubo do orçamento americano, Trump abandonou milhares de pessoas na doença e na miséria.

Durante décadas, a África Subsaariana foi um foco da ajuda americana. O continente recebeu mais de US$ 8 bilhões por ano, equivalente a menos de 0,03% do PIB americano (estimado em US$ 29 trilhões para 2025), dinheiro usado para alimentar crianças famintas, fornecer medicamentos vitais e fornecer assistência humanitária a centenas de milhares de pessoas em tempo de guerra.

Em poucas semanas, Trump e Elon Musk iniciaram a destruição desse trabalho humanitário que levará ao sacrifício de vidas humanas. Só o programa em Moçambique oferece tratamento essencial a 389 mil pessoas com HIV.

A consequência da paralisação dos funcionários da USAID foi refeitórios sem distribuir alimentos, clínicas fechadas e entregas de remédios suspensas. A justiça interveio e suspendeu a decisão de Trump.

A USAID foi criada em 1961 pelo presidente John F. Kennedy para prover ajuda humanitária internacional com o objetivo de combater a pobreza, as doenças e responder à fome e às catástrofes naturais. Os EUA são responsáveis por 47% dos gastos globais com assistência humanitária.

equilíbrio de Trump no Congresso pode ser outro abacaxi: a margem é pequena, com diferença de apenas duas cadeiras na Câmara e três no Senado.  Na gestão anterior, Trump contava com maior vantagem.

Além disso, Trump rompeu com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o maior referencial global em saúde pública. A OMS é detentora dos mais atualizados estudos sobre efeitos adversos à saúde provocada pelas disfunções do modelo civilizacional.

A organização se contrapõe cientificamente às políticas poluentes. Produz estudos epidemiológicos robustos sobre substâncias químicas e poluentes que alteram significativamente a qualidade de vida das populações, além de tratar com profundidade a desnutrição e aspectos epidemiológicos como a Covid. Com a saída dos Estados Unidos, a OMS perderá potencial econômico para realizar pesquisas importantes para a área de saúde pública.

A posição totalitária de Trump chegou ao paroxismo com sua retirada do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU. A negação da perspectiva conceitual e orientativa do conselho sinaliza descompromisso com o ideário global de direitos humanos que conta com longa tradição americana. O conselho aprovou a Declaração de Direitos Humanos (DUDH) em 1948, considerada a “Carta Magna da Humanidade”, com empenho pessoal de Eleanor Roosevelt, esposa de Franklin Delano Roosevelt, 32º presidente dos EUA.

Trump rompeu também com o Acordo de Paris, que tem por braço científico o Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), composto por centenas de especialistas altamente qualificados de todo o mundo, que pesquisam incessantemente os efeitos do aquecimento global com vista a orientar as nações em políticas públicas preventivas e corretivas. Obviamente, essa imensa força-tarefa é a maior orientadora científica para afastar o mundo da continuidade do uso dos combustíveis fósseis.

A saída do Acordo alinha os Estados Unidos aos pouquíssimos países não signatários: Irã, Líbia e Iêmen.

O Acordo de Paris aconteceu especialmente para trazer os maiores poluidores, como os EUA, para dentro dos programas de redução de Gases Efeito Estufa (GEE). Os Estados Unidos não haviam ratificado o Protocolo de Kyoto.

Porém, a atual retirada do governo federal americano do Acordo de Paris, não implica a perda de contribuição dos Estados americanos mais progressistas, como a Califórnia e os Estados na Nova Inglaterra, nem da miríade de metrópoles e cidades americanas já envolvidas no processo, assim como setores econômicos e empresariais.

Trump colhe dissidências fortíssimas com a Califórnia, que realiza plebiscito para sua independência. O presidente deverá ainda enfrentar judicialização constante, uma vez que a prática de responsabilização do governo e de empresas petrolíferas tem aumentado exponencialmente nos tribunais norte-americanos.    

Analistas especulam que o segundo governo Trump se voltará a um ambiente permissivo para fusões e aquisições na área de equipamentos militares. Os Estados Unidos fazem enormes investimentos armamentistas para impressionar outros países, em que pese as prioridades para manutenção da qualidade de vida dos americanos serem outras. O dispêndio para manutenção do aparato militar espalhado pelo mundo custou em 2024 perto de US$ 1 trilhão.

De outro lado, a inserção econômica global do país vem decrescendo, pois não é mais a potência unipolar que era no fim da Guerra Fria. Há visível ascendência da China no cenário econômico e político global.

O conjunto de valores e uma certa visão liberal do mundo americano poderão entrar em colapso muito rapidamente sob Trump, pois ele não acredita nesses valores, assim como as pessoas “selfish” que está colocando em posições-chave.

É paradigmática a comparação da atual postura arrogante com o governo de Bush, quando este venceu as eleições em 2004. Assessores de Bush afirmavam: “Somos um império e quando agimos criamos nossa própria realidade”. Uma das estratégias seria criar realidades e mais realidades, fatos sobre fatos, e seria assim que “as coisas iriam se resolver”.

As incursões fracassadas e dispendiosas no Iraque e no Afeganistão convenceram muitos americanos serem impensáveis ao envolvimento em um dos conflitos mais intratáveis do Oriente Médio. “Acho que a maioria dos habitantes da Carolina do Sul provavelmente não ficaria animada em enviar americanos para assumir Gaza”, afirmou o senador republicano Lindsey Graham, um dos legisladores mais linha-dura do Congresso.

O governo Trump carrega muitas das piores marcas da era Bush, como, por exemplo, expurgar do governo federal funcionários competentes. Esse modelo de presidência politizada, que age para engessar a máquina estatal, tem sofrido reveses históricos, ao tentar substituir a racionalidade da tomada de decisões por objetivos políticos de plantão.

Funcionários públicos graduados da área de informática estão denunciando a escalada da crise diante da inserção de inexperientes assessores de Elon Musk & DOGE ao acesso a operações estratégicas do governo federal, que vão desde sistemas de pagamentos do Departamento do Tesouro à manutenção de aviões no ar.

Um juiz federal em Nova York restringiu a capacidade do DOGE de acessar o sistema de pagamento do Departamento do Tesouro, afirmando que isso era necessário para evitar a divulgação potencial de informações sensíveis e confidenciais.

Os mercados globais começam a se movimentar em distanciamento ao feudo americano. Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, afirmou: “Estamos na mesa de negociações com os países do Sudeste Asiático”.

Há de se avaliar ainda o tecido social interno que dá sustentação a Trump. Sua composição é tênue e conjuntural. A extrema direita não poderá contar, na forma mais estratégica, com o apoio de representantes da classe trabalhadora, que no momento apresenta dissenso passageiro com o setor democrata por esse ter se tornado o partido do establishment, do status quo, das instituições. A classe trabalhadora que costumava ser a espinha dorsal do Partido Democrata certamente não será a de Donald Trump.

De outro lado Trump continua sendo o único presidente eleito com índices de aprovação inicial abaixo de 50%. Seu último índice de desaprovação (48%) é três pontos percentuais maior do que em 2017, marcando um novo recorde para os índices inaugurais, afirma a pesquisa Gallup realizada em 21 e 27 de janeiro.

A natureza é implacável. Sem medidas efetivas de adaptação, o Meio Oeste americano continuará a fritar em calor extremo, as florestas do norte e a Califórnia continuarão a queimar com mais frequência e os prejuízos econômicos para a América do Norte continuarão a crescer, abalando ainda mais seu combalido setor imobiliário, sem sistemas de seguros por não haver quem os queira bancar.

A política antiambiental de Trump, fantoche das big techs e dos combustíveis fósseis, promete ser efêmera e destinada ao fracasso. Em que pese as fortes evidências de declínio, a questão é quanto tempo durará essa crise conjuntural que impulsiona o mundo para novos ajustes e articulações multilaterais, esforços que ainda estão muito aquém do que se necessita para alavancar sustentabilidade planetária.

Não bastassem as inúmeras demandas a superar, o espernear do feudo americano poderá provocar danos irreversíveis no esgarçado tecido civilizacional, especialmente para a contenção do aquecimento global.

 

¨         Trump - o último sintoma da crise pós-moderna. Por Léo Peruzzo

Desde que a página da pós-modernidade passou a ser escrita, particularmente nas últimas décadas do século XX, a “implosão” tornou-se o novo jargão intelectual. Já não era suficiente desestabilizar as estruturais sociais a partir de fora. Ao contrário, foi necessário minar a confiabilidade e implantar o caos no campo das ideias. A insegurança tornou-se um medo interno, agora estigmatizado, por um lado, pela própria fragilidade dos conceitos e, por outro, pela vigilância algorítmica que transita em todas as esferas do nosso cotidiano. É justamente este o último sintoma da crise pós-moderna: colocar o sujeito contra o domínio do próprio pensamento e ofertar oráculos onde possam depositar o pouco que ainda lhe resta.

A crise pós-moderna, como prenunciara Lyotard, na década de 1970, é produto de uma série de transformações sobre o monopólio do “saber”, isto é, o campo dos processos discursivos que foram esvaziando nossas identidades históricas. Isso, por um lado, tornou a independência intelectual um projeto robusto e ambicioso; mas, por outro lado, representou um risco civilizatório ao adentrar nos projetos políticos e culturais desenhados sobre a modernidade. É justamente ali que o risco da emancipação, portanto, emerge como crise – um movimento capaz de coletar atos de resistência e violência.

Naturalmente, alguns atos de resistência até podem ser benéficos por colocarem a crítica como instrumento de transformação social. Contudo, muitos desses atos estão camuflados por pétalas de tirania, perfumes de carnificinas e sabores de crueldade e violência. Mas é possível identificar quais atos de resistência representam riscos à convivência social e podem ser classificados como sintomas deste mal-estar global? Quais instrumentos políticos possuem legitimidade para colocar fim ao monopólio de quem gerencia este mal-estar? Ou, ainda: Sendo os sintomas deste mal-estar difusos e dinâmicos, poderíamos combatê-los com os mesmos discursos?

Enquanto o projeto da singularidade está cada vez mais próximo, como sustenta Ray Kurzweil, um dos principais futuristas do nosso tempo, os sintomas da pós-modernidade cotidianamente assumem novos contornos. E o primeiro deste sintoma é a crise instalada nas instituições, um espaço destinado à organização da vida civil. Governos, religiões e sistemas educacionais parecem ser incapazes de fomentar a credibilidade, minada sempre por escândalos de corrupção, esvaziamento moral e impotência diante dos recursos de aprendizagem. A razão dessa entropia das instituições púbicas acompanha, em seu oposto, o crescimento de redes descentralizadas, monopólios tecnológicos capazes de destruir a economia de países já marginalizados e, ainda, suplantar ideais de estabilidade e justiça social. As instituições estão repletas de pessoas, mas vazias de utopias. Tornaram-se locais incapazes de dialogar com o seu exterior, uma massa homogeneizada pelo trabalho e carente de um verdadeiro ócio criativo.

Um segundo sintoma da crise pós-moderna é o esgotamento da ideia de representação democrática. Afinal, como é possível que o poder de déspotas como Putin, Trump ou Maduro continuem ser legitimados pela vontade popular? Aqui, obviamente, precisamos separar a água do vinho. Em sistemas politicamente instáveis, ausentes de controle fiscalizatório, o jogo da farsa e da encenação sustentam a ideia de soberania popular. Já em sistemas políticos aparentemente estáveis, a legitimidade eclode da cristalização da estrutura de acesso: o último filtro é, não raras vezes, o clã familiar ou ideológico que sustenta o partido político. Os poucos mecanismos políticos e jurídicos de fiscalização apenas demonstram o quadro de insuficiência diante da gestão da vida pública: nos submetemos ao controle estatal sem minimamente termos consciência do que e como se dará sua atuação.

A estabilidade de um modelo econômico pode ser considerada um outro sintoma da crise pós-moderna. Desde que Marx implodiu, na segunda metade do século XIX, a ideia de um sistema capitalista capaz de garantir um equilíbrio duradouro, observamos uma sucessão de crises financeiras, desigualdade crescente e uma constante reconfiguração das relações de trabalho. Aliás, a própria ideia de trabalho tornou-se uma joia nas mãos da burguesia: a nova escravidão, quiçá também chamada de ‘escravidão voluntária’, permite instrumentalizar a mão-de-obra com baixíssimos salários. Enquanto pobres recebem o “mínimo”, a elite suspira logo abaixo do “teto”. Ao mesmo tempo, o efeito da bolha econômica, particularmente em alguns países da América Latina, África e Ásia têm movimentado o maior fluxo migratório da história humana. Mas como isso é possível? A inércia global diante deste quadro é sutilmente pensada – “por que equilibrar o quebra-cabeças econômico se isso implica perder privilégios e patrimônio?”.

Um quarto sintoma é expresso na crise ecológica. Não é suficiente explorar os recursos naturais, destruir uma variedade de espécies e acabar com as florestas. É preciso fazer tudo isso de forma imediata. A falta de consciência sobre o nosso futuro impõe riscos graves à civilização, mas isso é incapaz de deter a efígie do progresso, esta moeda podre da civilização tecnológica, como alerta o professor Jelson Oliveira em seu livro Moeda sem Efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso (2023). O incentivo de Trump à indústria do petróleo, a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e o boicote aos acordos que pretendem limitar o aquecimento global são uma expressão de sadismo que se prolifera sobre a crueldade do sofrimento e o prazer da indiferença. Por isso, não deveríamos falar de uma crise ecológica, mas de uma crise sobre a ecologia, isto é, o esquecimento do ambiente como nossa “casa comum”.

E, por último, há o sintoma pós-moderno provocado pela crise religiosa e moral. Enquanto o fenômeno religioso é mercantilizado, substituindo a religiosidade pela barganha profética e pelos discursos conservadores, a moral enterra sua última virtude: a vergonha. Tornamo-nos indivíduos cada vez mais convictos das próprias crenças, mas órfãos no reconhecimento dos próprios erros. A morte do inimigo tornou-se triunfo a ser celebrado, agora sob o pretexto de que há apenas um lado da história – aquele contado e controlado pelo “Ministério da Verdade”, como escreveu G. Orwell no clássico 1984. Nesse novo mundo, imigrantes, refugiados, indígenas, pretos e pobres representam conceitos vazios, ofuscados pelo jargão de que ‘todos são iguais (…se forem iguais a nós)’. Trata-se de um tipo de alteridade que reconhece nos outros apenas a imagem dos próprios preconceitos, pois nesse mundo totalitário há vencedores e vencidos, heróis e vilões, otimistas e pessimistas, santos e ateus.

Para todos os efeitos, uma simples digressão à história das ideias deveria, por um lado, servir como antídoto ao mal-estar da agenda neoliberal e, por outro, tornar-se um alerta para o modo como somos capazes de colocar o nosso pensamento em certas armadilhas sem qualquer desconfiança. É por isso que algumas utopias deveriam ser perseguidas pelo seu objeto, e não pelo seu brilho. De todo modo, Trump representa, portanto, não o fim da história, mas um sintoma latente de um momento de desencantamento (e terror).

 

Fonte: Le Monde

 

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