Carlos Bocuhy: Trump inicia desmonte da
proteção ambiental e humanitária
O modelo constitucional do governo norte-americano
concede amplos poderes presidenciais. No momento atual, com Donald Trump
voltando à Casa Branca, é necessária uma ampla avaliação sobre os riscos e
impactos desse controle excessivo.
Trump ampliou seus poderes na área econômica com o
artifício da declaração de estado de emergência nas áreas de fronteiras e de
saúde.
Até no âmbito natural mais elementar, da segurança
alimentar, as propostas de Trump se distanciam da realidade. Por exemplo, sua
promessa de tarifaço a produtos estrangeiros inviabilizaria que o prato dos
americanos continuasse a contar com os nove quilos anuais habituais de abacaxi
per capita. Cerca de 90% do guacamole (abacate) e
de tantos outros produtos amplamente consumidos não são produzidos nos Estados
Unidos.
O atual presidente dos EUA pretende “fazer a América
cara de novo”, afirmou jocosamente Matt Devan, da rede americana ABC. Coagir
economicamente países que são parceiros naturais, fronteiriços, depois voltar
atrás por falta de razoabilidade nas propostas, demonstra ações erráticas,
incapacidade de gestão e de diplomacia.
Trump segue de forma agressiva. Alardeia o “America
First“, sem considerar a
ordem natural do mundo e regras naturais. Sequer avalia se a própria casa
ficaria sem guacamole e abacaxi.
O sistema de negociação agressivo testa limites de
resistência com falácias. Alardeia para atingir objetivos menores, sem
fundamentação jurídica, técnica ou científica. Para sustentar a bravataria e
propostas desarrazoadas, adota medidas de exceção.
As notícias são de arrepiar. A pilhagem da América
inicia seu curso, a partir de sua espoliação para além dos limites naturais. O
fato se agrava com a oligarquia de interesses econômicos inserida por Trump nos
altos escalões do poder.
Há inúmeros riscos e impactos ao dissociar ações
políticas da base natural-territorial. Sem reflexão humanística, Trump elimina
qualquer possibilidade de segurança social e ecológica.
Sem preocupações éticas, Trump avança com uso de
coerção para obter submissão interna do aparelho estatal. Visa neutralizar
mecanismos de reflexão e controle social. Sua ação leva ao obscurantismo,
reprimindo a ciência e aprisionando sua expressão.
Trump
decretou a suspensão das comunicações públicas para agências de saúde federais. A emissão de
documentos, orientações ou avisos fica suspensa até que tais documentos possam
ser aprovados por “um nomeado presidencial”. Em outras palavras, impõe-se da
figura de um censor!
“Confusão e ansiedade estão se espalhando pela
comunidade de pesquisa em saúde dos EUA”, afirmou a revista Nature. O
governo cancelou abruptamente as revisões de bolsas de pesquisa, viagens e
treinamento para cientistas dentro e fora dos Institutos Nacionais de Saúde
(NIH),
o maior financiador Público de pesquisa biomédica do mundo.
A Administração
Nacional Oceânica e Atmosférica (Noaa) está sendo intimidada por Elon
Musk e seu Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em
inglês). Houve
corte de pessoal com alegações de que a agência era “prejudicial à prosperidade
dos EUA” por seu papel na ciência climática.
Como consequência, agências europeias como a Copernicus suprirão a
necessidade de dados climáticos globais e os Estados Unidos perderão seu espaço
referencial e expertise tecnológica.
Na era da informação, a tentativa de abafar a Noaa será
como tentar represar um rio com falácias. Considerando o momento sensível da
emergência climática planetária, esse é o tipo de ação que corrói, internamente
e no exterior, qualquer sobrevida política.
A magistratura começa a agir firmemente. Uma juíza
federal suspendeu a ordem de Trump para congelar bilhões de dólares em ajudas
financeiras, que incluem socorro a desastres, compra de merenda escolar e
empréstimos a pequenas empresas. Trump imediatamente voltou atrás e revogou a
ordem.
“America First” representa a crença de que o mundo gira
em torno da América. Para convencer sua torcida, o governo fóssil de Trump
impõe atmosfera medieval, como a que tentou reprimir as ideias de Galileu.
Por puro interesse especulativo da base política, Trump
segue rumo à facilitação para combustíveis fósseis. As medidas tomadas até o
momento e as nomeações do secretariado revelam o perfil do governo e suas ações
setoriais.
O novo secretário do Interior Doug Burgum, em seu
primeiro dia de gestão, abriu milhões de acres em terras federais para
exploração e para perfuração de petróleo e gás, além de mineração.
Alan Zibel, diretor de pesquisa da Public Citizen, disse que o
Departamento do Interior “parece inclinado a encolher ou vender terras públicas
para interesses de combustíveis fósseis e empresas de mineração, atendendo
interesses que foram benfeitores generosos da campanha de Trump”.
A área governamental vocacionada ao controle de
poluição é a Environmental Protection Agency (EPA). Sofreu perda de 200
funcionários da área de justiça ambiental, colocados compulsoriamente em
“licença”. A divisão era encarregada de integrar equidade e direitos civis na
formulação de políticas ambientais. O Departamento de Justiça também sofreu
cortes para funcionários que exerciam funções assemelhadas.
“O
ataque caótico do governo Trump à EPA e ao Escritório de Justiça Ambiental e
Direitos Civis Externos exporá os americanos em todo o país a uma poluição mais
mortal”,
disse Jen Duggan, diretora executiva do Projeto de Integridade Ambiental.
Na política externa, os Estados Unidos experimentam
agora o isolamento e a decrepitude de multilateralismo, uma das poucas virtudes
que restava à nação de George Washington durante os últimos governos
progressistas.
O desmonte norte-americano da USAID, o maior doador
humanitário do mundo, vai de encontro ao perfil sociopata e isolacionista de
Trump. Com alegações infundadas de que organismos humanitários são dominados
pela esquerda e que o aporte de recursos é um roubo do orçamento americano,
Trump abandonou milhares de pessoas na doença e na miséria.
Durante décadas, a África Subsaariana foi um foco da
ajuda americana. O continente recebeu mais de US$ 8 bilhões por ano, equivalente
a menos de 0,03% do PIB americano (estimado em US$ 29 trilhões para 2025),
dinheiro usado para alimentar crianças famintas, fornecer medicamentos vitais e
fornecer assistência humanitária a centenas de milhares de pessoas em tempo de
guerra.
Em poucas semanas, Trump
e Elon Musk iniciaram a destruição desse trabalho humanitário que levará ao
sacrifício de vidas humanas. Só o programa em Moçambique oferece
tratamento essencial a 389 mil pessoas com HIV.
A consequência da paralisação dos funcionários da USAID
foi refeitórios sem distribuir alimentos, clínicas fechadas e entregas de
remédios suspensas.
A justiça interveio e suspendeu a decisão de Trump.
A USAID foi criada em 1961 pelo presidente John F.
Kennedy para prover ajuda humanitária internacional com o objetivo de combater
a pobreza, as doenças e responder à fome e às catástrofes naturais. Os EUA são
responsáveis por 47% dos gastos globais com assistência humanitária.
O equilíbrio
de Trump no Congresso pode
ser outro abacaxi: a margem é pequena, com diferença de apenas duas cadeiras na
Câmara e três no Senado. Na gestão anterior, Trump contava com maior
vantagem.
Além disso, Trump
rompeu com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o maior referencial global em
saúde pública. A
OMS é detentora dos mais atualizados estudos sobre efeitos adversos à saúde
provocada pelas disfunções do modelo civilizacional.
A organização se contrapõe cientificamente às políticas
poluentes. Produz estudos epidemiológicos robustos sobre substâncias químicas e
poluentes que alteram significativamente a qualidade de vida das populações,
além de tratar com profundidade a desnutrição e aspectos epidemiológicos como a
Covid. Com a saída dos Estados Unidos, a OMS perderá potencial econômico para
realizar pesquisas importantes para a área de saúde pública.
A posição totalitária de Trump chegou ao paroxismo com
sua retirada do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU. A negação da
perspectiva conceitual e orientativa do conselho sinaliza descompromisso com o
ideário global de direitos humanos que conta com longa tradição americana. O
conselho aprovou a Declaração de Direitos Humanos (DUDH) em 1948, considerada a
“Carta Magna da Humanidade”, com empenho pessoal de Eleanor Roosevelt, esposa
de Franklin Delano Roosevelt, 32º presidente dos EUA.
Trump
rompeu também com o Acordo de Paris, que tem por braço científico o Painel
Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), composto por centenas de
especialistas altamente qualificados de todo o mundo, que pesquisam
incessantemente os efeitos do aquecimento global com vista a orientar as nações
em políticas públicas preventivas e corretivas. Obviamente, essa imensa
força-tarefa é a maior orientadora científica para afastar o mundo da
continuidade do uso dos combustíveis fósseis.
A saída do Acordo alinha os Estados Unidos aos pouquíssimos
países não signatários: Irã, Líbia e Iêmen.
O Acordo de Paris aconteceu especialmente para trazer
os maiores poluidores, como os EUA, para dentro dos programas de redução de
Gases Efeito Estufa (GEE). Os Estados Unidos não haviam ratificado o Protocolo
de Kyoto.
Porém, a atual retirada do governo federal americano do Acordo
de Paris, não implica a perda de contribuição dos Estados americanos mais
progressistas, como a Califórnia e os Estados na Nova Inglaterra, nem da
miríade de metrópoles e cidades americanas já envolvidas no processo, assim
como setores econômicos e empresariais.
Trump colhe dissidências fortíssimas com a Califórnia, que realiza
plebiscito para sua independência. O presidente deverá ainda enfrentar
judicialização constante, uma vez que a prática de responsabilização do governo
e de empresas petrolíferas tem aumentado exponencialmente nos tribunais
norte-americanos.
Analistas especulam que o segundo governo Trump se
voltará a um ambiente permissivo para fusões
e aquisições na área de equipamentos militares. Os Estados Unidos
fazem enormes investimentos armamentistas para impressionar outros países, em
que pese as prioridades para manutenção da qualidade de vida dos americanos
serem outras. O dispêndio para manutenção do aparato militar espalhado pelo
mundo custou em 2024 perto de US$ 1 trilhão.
De outro lado, a inserção econômica global do país vem
decrescendo, pois não é mais a potência unipolar que era no fim da Guerra Fria.
Há visível ascendência da China no cenário econômico e político global.
O conjunto de valores e uma certa visão liberal do
mundo americano poderão entrar em colapso muito rapidamente sob Trump, pois ele
não acredita nesses valores, assim como as pessoas “selfish” que está
colocando em posições-chave.
É paradigmática a comparação
da atual postura arrogante com o governo de Bush, quando este
venceu as eleições em 2004. Assessores de Bush afirmavam: “Somos um império e
quando agimos criamos nossa própria realidade”. Uma das estratégias seria criar
realidades e mais realidades, fatos sobre fatos, e seria assim que “as coisas
iriam se resolver”.
As incursões fracassadas e dispendiosas no Iraque e no
Afeganistão convenceram muitos americanos serem impensáveis ao envolvimento em
um dos conflitos mais intratáveis do Oriente Médio. “Acho que a maioria dos
habitantes da Carolina do Sul provavelmente não ficaria animada em enviar
americanos para assumir Gaza”, afirmou o senador republicano Lindsey Graham, um
dos legisladores mais linha-dura do Congresso.
O
governo Trump carrega muitas das piores marcas da era Bush, como, por exemplo,
expurgar do governo federal funcionários competentes. Esse modelo
de presidência politizada, que age para engessar a máquina estatal, tem sofrido
reveses históricos, ao tentar substituir a racionalidade da tomada de decisões
por objetivos políticos de plantão.
Funcionários públicos graduados da área de informática
estão denunciando a escalada da crise diante da inserção de inexperientes
assessores de Elon Musk & DOGE ao acesso a operações estratégicas do
governo federal, que vão desde sistemas de pagamentos do Departamento do
Tesouro à manutenção de aviões no ar.
Um
juiz federal em Nova York restringiu a capacidade do DOGE de acessar o sistema
de pagamento do Departamento do Tesouro, afirmando que isso era necessário para
evitar a divulgação potencial de informações sensíveis e confidenciais.
Os mercados globais começam a se movimentar em
distanciamento ao feudo americano. Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá,
afirmou: “Estamos na mesa de negociações com os países do Sudeste Asiático”.
Há de se avaliar ainda o tecido social interno que dá
sustentação a Trump. Sua composição é tênue e conjuntural. A extrema direita
não poderá contar, na forma mais estratégica, com o apoio de representantes da
classe trabalhadora, que no momento apresenta dissenso passageiro com o setor
democrata por esse ter se tornado o partido do establishment, do
status quo,
das instituições. A classe trabalhadora que costumava ser a espinha dorsal do
Partido Democrata certamente não será a de Donald Trump.
De outro lado Trump continua sendo o
único presidente eleito com índices de aprovação inicial abaixo de 50%. Seu último índice
de desaprovação (48%) é três pontos percentuais maior do que em 2017, marcando
um novo recorde para os índices inaugurais, afirma a pesquisa Gallup realizada
em 21 e 27 de janeiro.
A natureza é implacável. Sem medidas efetivas de
adaptação, o Meio Oeste americano continuará a fritar em calor extremo, as
florestas do norte e a Califórnia continuarão a queimar com mais frequência e
os prejuízos econômicos para a América do Norte continuarão a crescer, abalando
ainda mais seu combalido setor imobiliário, sem sistemas de seguros por não
haver quem os queira bancar.
A política antiambiental de Trump, fantoche das big techs e dos
combustíveis fósseis, promete ser efêmera e destinada ao fracasso. Em que pese
as fortes evidências de declínio, a questão é quanto tempo durará essa crise
conjuntural que impulsiona o mundo para novos ajustes e articulações
multilaterais, esforços que ainda estão muito aquém do que se necessita para
alavancar sustentabilidade planetária.
Não bastassem as inúmeras demandas a superar, o
espernear do feudo americano poderá provocar danos irreversíveis no esgarçado
tecido civilizacional, especialmente para a contenção do aquecimento global.
¨
Trump - o último sintoma da
crise pós-moderna. Por Léo Peruzzo
Desde que a página da pós-modernidade passou a ser
escrita, particularmente nas últimas décadas do século XX, a “implosão”
tornou-se o novo jargão intelectual. Já não era suficiente desestabilizar as
estruturais sociais a partir de fora. Ao contrário, foi necessário minar a
confiabilidade e implantar o caos no campo das ideias. A insegurança tornou-se
um medo interno, agora estigmatizado, por um lado, pela própria fragilidade dos
conceitos e, por outro, pela vigilância algorítmica que transita em todas as
esferas do nosso cotidiano. É justamente este o último sintoma da crise
pós-moderna: colocar o sujeito contra o domínio do próprio pensamento e ofertar
oráculos onde possam depositar o pouco que ainda lhe resta.
A crise pós-moderna, como prenunciara Lyotard, na
década de 1970, é produto de uma série de transformações sobre o monopólio do
“saber”, isto é, o campo dos processos discursivos que foram esvaziando nossas
identidades históricas. Isso, por um lado, tornou a independência intelectual
um projeto robusto e ambicioso; mas, por outro lado, representou um risco
civilizatório ao adentrar nos projetos políticos e culturais desenhados sobre a
modernidade. É justamente ali que o risco da emancipação, portanto, emerge como
crise – um movimento capaz de coletar atos de resistência e violência.
Naturalmente, alguns atos de resistência até podem ser
benéficos por colocarem a crítica como instrumento de transformação social.
Contudo, muitos desses atos estão camuflados por pétalas de tirania, perfumes
de carnificinas e sabores de crueldade e violência. Mas é possível identificar
quais atos de resistência representam riscos à convivência social e podem ser
classificados como sintomas deste mal-estar global? Quais instrumentos
políticos possuem legitimidade para colocar fim ao monopólio de quem gerencia
este mal-estar? Ou, ainda: Sendo os sintomas deste mal-estar difusos e
dinâmicos, poderíamos combatê-los com os mesmos discursos?
Enquanto o projeto da singularidade está cada vez mais
próximo, como sustenta Ray Kurzweil, um dos principais futuristas do nosso
tempo, os sintomas da pós-modernidade cotidianamente assumem novos contornos. E
o primeiro deste sintoma é a crise instalada nas instituições, um espaço
destinado à organização da vida civil. Governos, religiões e sistemas
educacionais parecem ser incapazes de fomentar a credibilidade, minada sempre
por escândalos de corrupção, esvaziamento moral e impotência diante dos
recursos de aprendizagem. A razão dessa entropia das instituições púbicas
acompanha, em seu oposto, o crescimento de redes descentralizadas, monopólios
tecnológicos capazes de destruir a economia de países já marginalizados e,
ainda, suplantar ideais de estabilidade e justiça social. As instituições estão
repletas de pessoas, mas vazias de utopias. Tornaram-se locais incapazes de
dialogar com o seu exterior, uma massa homogeneizada pelo trabalho e carente de
um verdadeiro ócio criativo.
Um segundo sintoma da crise pós-moderna é o esgotamento
da ideia de representação democrática. Afinal, como é possível que o poder de
déspotas como Putin, Trump ou Maduro continuem ser legitimados pela vontade
popular? Aqui, obviamente, precisamos separar a água do vinho. Em sistemas
politicamente instáveis, ausentes de controle fiscalizatório, o jogo da farsa e
da encenação sustentam a ideia de soberania popular. Já em sistemas políticos
aparentemente estáveis, a legitimidade eclode da cristalização da estrutura de
acesso: o último filtro é, não raras vezes, o clã familiar ou ideológico que
sustenta o partido político. Os poucos mecanismos políticos e jurídicos de
fiscalização apenas demonstram o quadro de insuficiência diante da gestão da
vida pública: nos submetemos ao controle estatal sem minimamente termos
consciência do que e como se dará sua atuação.
A estabilidade de um modelo econômico pode ser
considerada um outro sintoma da crise pós-moderna. Desde que Marx implodiu, na
segunda metade do século XIX, a ideia de um sistema capitalista capaz de
garantir um equilíbrio duradouro, observamos uma sucessão de crises
financeiras, desigualdade crescente e uma constante reconfiguração das relações
de trabalho. Aliás, a própria ideia de trabalho tornou-se uma joia nas mãos da
burguesia: a nova escravidão, quiçá também chamada de ‘escravidão voluntária’,
permite instrumentalizar a mão-de-obra com baixíssimos salários. Enquanto
pobres recebem o “mínimo”, a elite suspira logo abaixo do “teto”. Ao mesmo
tempo, o efeito da bolha econômica, particularmente em alguns países da América
Latina, África e Ásia têm movimentado o maior fluxo migratório da história
humana. Mas como isso é possível? A inércia global diante deste quadro é
sutilmente pensada – “por que equilibrar o quebra-cabeças econômico se isso
implica perder privilégios e patrimônio?”.
Um quarto sintoma é expresso na crise ecológica. Não é
suficiente explorar os recursos naturais, destruir uma variedade de espécies e
acabar com as florestas. É preciso fazer tudo isso de forma imediata. A falta
de consciência sobre o nosso futuro impõe riscos graves à civilização, mas isso
é incapaz de deter a efígie do progresso, esta moeda podre da civilização
tecnológica, como alerta o professor Jelson Oliveira em seu livro Moeda
sem Efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso (2023). O incentivo de
Trump à indústria do petróleo, a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris
e o boicote aos acordos que pretendem limitar o aquecimento global são uma
expressão de sadismo que se prolifera sobre a crueldade do sofrimento e o
prazer da indiferença. Por isso, não deveríamos falar de uma crise ecológica,
mas de uma crise sobre a ecologia, isto é, o esquecimento do ambiente como
nossa “casa comum”.
E, por último, há o sintoma pós-moderno provocado pela
crise religiosa e moral. Enquanto o fenômeno religioso é mercantilizado,
substituindo a religiosidade pela barganha profética e pelos discursos
conservadores, a moral enterra sua última virtude: a vergonha. Tornamo-nos
indivíduos cada vez mais convictos das próprias crenças, mas órfãos no reconhecimento
dos próprios erros. A morte do inimigo tornou-se triunfo a ser celebrado, agora
sob o pretexto de que há apenas um lado da história – aquele contado e
controlado pelo “Ministério da Verdade”, como escreveu G. Orwell no
clássico 1984. Nesse novo mundo,
imigrantes, refugiados, indígenas, pretos e pobres representam conceitos
vazios, ofuscados pelo jargão de que ‘todos são iguais (…se forem iguais a
nós)’. Trata-se de um tipo de alteridade que reconhece nos outros apenas a
imagem dos próprios preconceitos, pois nesse mundo totalitário há vencedores e
vencidos, heróis e vilões, otimistas e pessimistas, santos e ateus.
Para todos os efeitos, uma simples digressão à história
das ideias deveria, por um lado, servir como antídoto ao mal-estar da agenda
neoliberal e, por outro, tornar-se um alerta para o modo como somos capazes de
colocar o nosso pensamento em certas armadilhas sem qualquer desconfiança. É
por isso que algumas utopias deveriam ser perseguidas pelo seu objeto, e não
pelo seu brilho. De todo modo, Trump representa, portanto, não o fim da
história, mas um sintoma latente de um momento de desencantamento (e terror).
Fonte: Le Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário