Brincar, contraponto à
educação-utilitarista
Inventar histórias, pintar, modelar, ouvir cantigas de
roda, pular amarelinha. Mais do que atividades nostálgicas, o brincar precisa
estar presente na vida das crianças de hoje, inclusive em espaços de sala de
aula e mesmo
em momentos de crise.
É o que defendem especialistas em educação infantil como Andrea Serpa, doutora
em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Com duas décadas nas salas de aula, a professora é
atualmente coordenadora do Laboratório de Brinquedos da UFF, programa que
desenvolve metodologias para trabalhar a aprendizagem e a alfabetização a
partir do brincar. Com materiais simples como itens recicláveis e ideias fáceis
de serem aplicadas, a iniciativa tem como foco o respeito à ludicidade e o
entendimento de que o brincar ajuda no desenvolvimento cognitivo durante a
infância.
“O brincar
realmente é um ansiolítico natural, se a gente brincasse mais a gente seria
muito menos estressado, teria um corpo muito mais funcional, então roubar isso
das crianças é uma temeridade. A criança não pode ser um investimento no
mercado futuro, a criança precisa ser feliz hoje, aqui e agora”, diz.
Para a educadora, é importante também que as famílias
respeitem o tempo de brincar das crianças, um direito que virou lei em março de
2024, quando o
governo Federal sancionou o PL que “institui a parentalidade
positiva e o direito ao brincar como estratégias intersetoriais de prevenção à
violência contra crianças”. Segundo o artigo 3º da lei, “é dever do
Estado, da família e da sociedade proteger, preservar e garantir o direito ao
brincar a todas as crianças”.
<><> Confira a entrevista:
·
Por que usar a brincadeira para trabalhar a
alfabetização?
Andrea Serpa – O brincar, o que
geralmente o leigo chama de brincar do ponto de vista do aprendizado é, na
verdade, um trabalho da criança. Quanto mais concentradas as crianças estão na
sua brincadeira, significa que mais aquele cérebro dela está produzindo
sinapses, está testando hipóteses, está construindo conhecimento. Então, a
gente tem no brincar todo um processo de desenvolvimento e aprendizado que
passa pelas questões cognitivas, uma série de conhecimentos que o cérebro
precisa desenvolver.
Por exemplo, você pega uma criança que nasceu em uma
família letrada, que já tem uma biblioteca em casa…A criança ainda nem nasceu,
mas já ganhou um livrinho de borracha para morder, a madrinha, a avó, todo
mundo compra livrinho pra criança, conta história para criança. Ela cria um
vínculo afetivo com esse momento, aquilo entra na tua memória como um momento
de encantamento. Então, a sua relação com a leitura e a escrita vai ser uma
relação de desejo, de vontade. Com a leitura, a gente pode ir para outro país,
para outra época, para outra dimensão. Então a criança é convidada, não é
obrigada. Não é pelo treino, pela caligrafia, é pelo caminho do encantamento
que a criança naturalmente começa a ter o desejo de aprender a ler e escrever.
Não é nenhum bicho de sete cabeças para uma criança de
5, 6 anos aprender a ler. Muitas vezes o adulto é que atrapalha o caminho da
criança. A partir dos 6 anos, a criança já tem uma maturidade e ela vai lidar
com esse universo da formalização da escrita, mas antes tem todo um processo de
desenho, de pintura, de criar uma história, e isso vai arando esse terreno para
que brote de uma forma muito mais natural para criança.
·
Um dos artigos que você escreveu que foi
publicado em 2022 falava da observação de uma criança com uma bolinha de sabão
e o brincar livre em contextos de pandemia. Você fala que as crianças que
vieram agora da pandemia talvez precisem de uma escuta mais sensível das
realidades que elas estão vivendo, porque passaram por muito tempo num
confinamento social. O que você tem observado agora? Em 2024 tem diferença
dessa geração pra outra?
Andrea – A gente vem
enfrentando uma dificuldade bastante grande. A criança não foi isolada só pela
pandemia. Eu sou de uma geração que com 11 anos eu ia para escola
sozinha, pegava dois ônibus sozinha. Hoje muitas famílias estão cada vez mais
aprisionando as crianças dentro de casa, porque é perigoso, a rua oferece muito
perigo.
Temos poucos espaços onde você vê a criança brincando
com outras crianças, e a escola muitas vezes também está roubando esse espaço
de brincadeira, porque no senso comum se acha que o espaço do brincar é o
espaço do perder tempo. Se escuta muito as famílias falando “eu vou mandar meu
filho pra escola só pra brincar?”, como se a criança tivesse outros espaços de
brincadeira, como se esse adulto tivesse tempo de brincar com essa criança e
como se o brincar não fizesse parte desse processo.
A pandemia agravou isso, mas nós temos também alguns
espaços que foram roubados. A questão do celular por exemplo, você deixa a
criança na frente do celular e na frente do tablet que ela fica
quietinha. Só que esse comportamento tem consequências, essa falta de
interação com outras crianças. O que chamamos hoje de dificuldade de
aprendizagem está sendo produzida pela vida que ofertamos: elas estão se
tornando espectadoras da vida.
Nós temos que olhar também para a escola: ela está
sendo um ambiente que permite às crianças viverem a infância sem pressa?
Atualmente, por exemplo, temos muitas crianças hiperativas. Elas são
hiperativas ou estão sendo hiperativadas por um mundo que hiperestimula essas
crianças com luz, cor, som?
O brincar realmente é um ansiolítico natural, se a
gente brincasse mais a gente era muito menos estressado, tinha um corpo muito
mais funcional, então roubar isso das crianças é uma temeridade. A criança não
pode ser um investimento no mercado futuro, a criança precisa ser feliz hoje,
aqui e agora.
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A importância do brincar na educação tem
sido mais falada e reconhecida nos últimos anos?
Andrea – Eu já
estou com 35 anos de magistério, e essa discussão sobre educação infantil
tem uns 40 anos. Hoje nós temos diretrizes curriculares, nós temos a BNCC,
temos todo um campo teórico. Mas nós temos um mercado muito forte, inclusive
das escolas privadas, que vive de vender apostila e esse mercado veio dando uma
uma ideia do que seria ideal para uma criança. É um mercado muito poderoso
porque é um mercado que move muito dinheiro. São empresas, então o objetivo não
necessariamente é o compromisso com a infância. É um compromisso com o
cliente.
Há tempos enfrentamos o que eu chamo de “currículos
inventados”. Por exemplo, está muito na moda aqui no Rio de Janeiro livrinho de
caligrafia para criança de 2 anos. Nenhum teórico das infâncias vai defender
que uma criança de 2 anos fique sentada numa sala de aula fazendo livrinho.
Nenhum professor alfabetizador que defende alfabetização, nem mesmo a Bárbara
Suárez que fala de alfabetização na educação infantil. Mas o que ela fala de
alfabetização na educação infantil passa por aquilo que eu te falei: vamos
contar histórias, vamos trabalhar o nome das crianças, mas não vamos
fazer cartilha.
E hoje há pessoas querendo pegar uma cartilha de 50
anos atrás, quando eu me alfabetizei, para dar para criança. Tenho um grupo de
pesquisa que chama-se “Alfabetização sem Cartilhas”. Fui professora
alfabetizadora durante minha vida de escola pública e eu estou há 13 anos na
universidade, mas os outros 22 anos eu estava no ensino básico. Nunca usei
cartilha para alfabetizar.
·
Você pode me dar um exemplo de metodologia
para alfabetização com brincadeira ?
Andrea – No Laboratório de
Brinquedos, em todo o processo de alfabetização, eu trabalho numa perspectiva
discursiva. Eu conheço meu aluno, sei quais são os animais favoritos, quais são
as histórias que ele gosta, quais são os brinquedos que ele prefere. A partir
desse material, eu posso construir uma série de jogos e brincadeiras com esses
materiais, eu faço cruzadinha com os nomes das crianças, eu faço dominó. Com o
nome dos animais eu faço jogo de memória. Eles constróem, não sou eu que
construo para eles. Eles recortam, montam e brincam.
Tem brincadeira de recontar história, de construir os
personagens da história, aí as crianças produzem seu próprio texto, vão sendo
convidadas, o nome da princesa é com letra maiúscula ou minúscula? A
criança vive aquela experiência afetiva, e a gente vai convidando ela a
registrar essa brincadeira, a pensar sobre as letras
Eu tenho um exemplo de um trabalho com letramento com
turma de crianças de 4 anos. Quando brinca, ela produz uma narrativa que
traz toda a referência social dela. Um dia eu falei “gente, hoje eu tenho uma
história engraçada pra contar pra vocês” aí comecei a ler, aí eles foram assim
“nossa mas é nossa brincadeira” e eles se reconheceram e acham mágico que
ficou registrado aquele momento que eles viveram. Elas começam a pensar que
estão produzindo uma narrativa, criando um texto.
Fonte: Por Andrea
Serpa em entrevista a Isabelle Rieger, no Nonada Jornalismo
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