Amazônia: Agrotecnologia há um milênio
Nos últimos vinte anos, estudos arqueológicos vêm
contribuindo para descortinar, um pouco mais, o passado ainda não revelado da
Amazônia antiga e seus habitantes. Uma dessas culturas, a Casarabe, viveu entre
500 e 1400 da Era Comum (E.C.) na região do sudoeste amazônico, mais
precisamente em Llanos de Moxos, no departamento de Beni, Bolívia. Ocupando
cerca de 4.500 mil quilômetros quadrados, os Casarabe modificaram
cuidadosamente a geografia do local com ações de terraplenagem e um complexo
assentamento que gerou centenas de montes monumentais – estruturas formadas por
plataformas retangulares compostas de quatro camadas e pirâmides cônicas que
chegavam a 22 metros de altura.
“Esses sítios são conhecidos desde o século passado,
mas começaram a ser escavados mais sistematicamente no final dos anos 1990 por
um grupo de alemães e bolivianos. A gente sabe sua cronologia, qual tipo de
cerâmica eles produziram, mas uma coisa que não estava clara ainda era o que
eles comiam, qual era o padrão de dieta”, conta Eduardo Góes Neves, arqueólogo
e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
Ele integra um grupo de pesquisadores que acaba de
confirmar a produção intensiva do milho no local, além de um sofisticado
sistema de engenharia paisagística para fazer a drenagem da água na cultura do
grão em savanas tropicais. O trabalho foi descrito em um artigo que acaba de
ser publicado na revista Nature.
O estudo combinou o uso do LiDAR, uma tecnologia de
sensoriamento remoto que usa feixes de laser para identificar locais potenciais
para escavação, com um programa de perfuração de poços para coleta de
sedimentos, datação por radiocarbono e análises de grãos de pólen e fitólitos –
estruturas minerais microscópicas feitas de sílica encontradas em tecidos
vegetais e que se preservam mesmo após a decomposição da planta.
De acordo com o artigo, o sistema criado pelos Casarabe
permitia que algumas áreas úmidas de Savana fossem convertidas em campos
drenados adequados para monocultura de milho na estação chuvosa. “Se você for
lá agora, vai ver que está tudo alagado”, diz Neves ao Jornal da USP. “Como todo ano oscila, não era possível
prever a precipitação, então essa estratégia permitia ‘amortecer’ a variação
sazonal muito drástica”.
Já a construção de conjuntos de lagoas agrícolas
fornecia um reservatório de água para irrigação em tanques, o que possibilitou
a continuação da agricultura de milho durante a estação seca, com até duas
colheitas por ano.
“A Savana é drenada muito lentamente no final da
estação chuvosa, então as pessoas escavaram canais de drenagem para acelerar
esse processo. Mas, quando a estação seca começa, a maior restrição à
agricultura se torna a falta de água, então eles escavaram os lagos, que retêm
água e permitem que a agricultura continue durante as estações secas também”,
completa Umberto Lombardo, geomorfólogo da Universitat Autònoma de Barcelona,
na Espanha, e primeiro autor do artigo.
Lombardo afirma que o cultivo intensivo do milho
provavelmente permitiu que a população crescesse. “Podemos assumir com
segurança que a densidade populacional da cultura Casarabe era maior do que
qualquer outra cultura na Amazônia, talvez exceto o Vale do Upano, no Equador,
e o Marajó, no Brasil”.
A hipótese que se coloca é que a alta disponibilidade
de proteína a partir do plantio do milho combinado com outras sementes, como a
abóbora e o feijão, está associada à emergência de sociedades hierarquizadas.
No entanto, o grupo não encontrou a presença de outros cultivos além do
milho.
“Eu sempre defendi a ideia da policultura na Amazônia.
Esses dados, de certo modo, contradizem um pouco as minhas hipóteses e mostram
que, ali na Bolívia, tem uma correlação muito forte entre a emergência desse padrão
de arquitetura monumental e o cultivo do milho”, diz Neves.
·
Revolução verde antes de Colombo
O tipo de sistema agrícola necessário para sustentar a
cultura Casarabe em seus quase mil anos de existência ainda era
desconhecido, mas o artigo destaca que a construção de canais de drenagem
permitiu o cultivo de sedimentos férteis das savanas sazonalmente inundadas na
região dos montes monumentais da Amazônia boliviana, sem a necessidade de
desmatamento da porção florestal.
Os pesquisadores não encontraram qualquer evidência de
cultivo e fogo nas áreas florestais próximas aos montes monumentais, sugerindo
que a agricultura de corte e queima não foi praticada pelos Casarabe. “Em vez
disso, essa cultura pré-colombiana provavelmente preservou o recurso florestal
espacialmente limitado e, portanto, altamente valioso para outros serviços
ecossistêmicos importantes, como lenha, materiais de construção, plantas
medicinais e provavelmente agrofloresta”, destacam no artigo.
“A Amazônia é um berço de agrobiodiversidade,
muita planta foi cultivada primeiro lá. Isso é importante porque a Savana é que
nem o Cerrado, um bioma que pode ser interpretado como um local que não serve
para nada. Não acho que o artigo irá resolver o problema do mundo, mas mostra
que não houve apenas uma estratégia agrícola e apenas um modo de vida no
passado” (Eduardo Neves)
Para os pesquisadores, a combinação desses dois tipos
de engenharia paisagística — canais de drenagem e lagoas agrícolas — é
exclusiva da região dos montes monumentais, e revela uma “revolução verde
pré-colombiana”, além de “uma estratégia agrícola altamente inovadora que
permitiu à cultura Casarabe aumentar substancialmente o período de cultivo do
milho, além de fornecer acesso fácil a peixes, pássaros e caça”.
·
Cultura Casarabe
A cultura Casarabe recebeu o nome de uma vila próxima
aos sítios arqueológicos encontrados por pesquisadores, que identificaram, em
2022, vestígios de assentamentos com mais de 300 hectares. O local contava com
grande estrutura de gestão de água, espaços de ocupação humana, cerimonial e de
sepultamento.
Existem registros da presença humana nesta região da
Amazônia há dez mil anos, mas não se sabe como a cultura Casarabe começou – nem
por que passaram de construtores de pequenos montes para megaestruturas. Também
não se sabe quando deixaram de praticar a monocultura. “Se a gente olhar para
os dados isotópicos (átomos de um mesmo elemento), nos sepultamentos mais
recentes o sinal para o milho vai ficando menos marcado. Então, precisamos
entender se esse milho foi abandonado, se eles vão ficando mais policultores e
mais florestais”, explica Neves.
Ele menciona o recente trabalho do arqueólogo
brasileiro Tiago Hermenegildo, formado pela USP e atualmente doutorando no
Instituto Max Planck, na Alemanha. A pesquisa extraiu isótopos de carbono e
nitrogênio dos ossos de 86 restos mortais de humanos de ambos os sexos e
idades, identificando o milho como elemento central da dieta Casarabe.
“Eu, particularmente, acho que essa cultura Casarabe
começa com as mudanças na região do Altiplano, a emergência de Tiahuanaco, que
é um importante centro político e religioso, próximo ao lago Titicaca, e é uma
grande cidade dos Andes”, afirma Neves. “Eu acho que a demanda por comércio de
penas, folhas de coca, essas coisas todas devem ter uma conexão com a
emergência dessas formas mais centralizadas de organização política aqui na
região das terras baixas”.
Fonte: Jornal da
USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário