Reflexões sobre o novo
modelo de pós-graduação das universidades públicas paulistas
Há algumas semanas circulou na grande imprensa e
nos veículos institucionais da USP um novo modelo de pós-graduação proposto
pelas universidades públicas paulistas com anuência das agências de fomento
(Capes e Fapesp); anúncio que foi recebido com aplausos nos editoriais dos
grandes jornais.
Um esboço do mesmo projeto já havia sido ventilado
no início do governo de Jair Bolsonaro, a partir de um acordo assinado pela USP
e pela Capes e posteriormente engavetado – ou assim se acreditava. Por isso,
não sem surpresa, a comunidade universitária ficou sabendo, majoritariamente
pela imprensa, que esse acordo foi retomado, incluindo agora todas as universidades
públicas paulistas e, além da Capes, também a Fapesp.
Ainda que a cúpula das universidades e suas
pró-reitorias de pós-graduação tenham discutido longamente o projeto, é preciso
destacar que a maior parte dos professores e alunos das universidades não
tomaram parte nesta discussão. Todas as motivações de tais mudanças foram
constatadas e elencadas pela cúpula, não pela base, da comunidade
universitária. E quais mudanças são essas?
Partindo da premissa de que o processo de formação
dos doutores no Brasil é mais longo do que nos países centrais (entenda-se:
América do Norte e Europa) e supostamente alheio às exigências do mercado de
trabalho, o projeto propõe, na prática, a supressão do mestrado como etapa
intermediária na formação de doutores. Se aderirem ao modelo, os programas de
pós-graduação, que hoje comportam três entradas independentes – o mestrado, o
doutorado direto e o doutorado simples (para quem já tem o mestrado) –,
passarão a ter uma única entrada. Inicialmente, todos os alunos seriam
selecionados para o primeiro ano de mestrado, sem um projeto de pesquisa e sem
orientador.
No decorrer desse primeiro ano, enquanto cursam
disciplinas de caráter interdisciplinar, incluindo estágios fora da
universidade, os alunos deverão “achar” um orientador e desenvolver um projeto
de pesquisa, sendo submetidos, ao final, a um exame de qualificação. Neste
exame, esses alunos, que a essa altura mal terão delineado seu projeto de
pesquisa, terão três destinos possíveis: a reprovação, a aprovação para continuar
o mestrado por no máximo mais um ano e, finalmente, para não mais do que 30%
dos candidatos, conforme previsto no novo modelo, a passagem para o doutorado
direto, que será concluído em quatro anos.
Ao todo, cinco anos de formação, sendo que apenas
quatro com projeto e orientador definidos. Os “eleitos” para seguir no
doutorado, se contemplados com bolsas da Capes, terão complementações da Fapesp
até equipararem os valores desta agência, mas (detalhe fundamental) haverá no
máximo 90 complementações para toda a USP (conforme a minuta do projeto
divulgada pela direção), o que deve corresponder a uma ou duas por programa de
pós-graduação.
Para as outras universidades que não a USP, ainda
menos. Em suma, teremos concentração de recursos num grupo de doutores que se
formará mais rapidamente, em contraste com o modelo atual, que prevê um
mestrado de três anos em média (com dois anos de bolsa) e o doutorado de quatro
anos. Ou seja, do ponto de vista dos formuladores do projeto, mais economia e
agilidade na formação de pesquisadores para o Brasil. O diabo, porém, mora nos
detalhes.
Dito isso, alguém poderia perguntar: por que dizer
que isso implicará a supressão do mestrado, se esse título continuará existindo
para 70% dos alunos de pós-graduação? E por que tal supressão seria um
problema?
Comecemos pela segunda pergunta. O mestrado é o
momento em que o jovem pesquisador se familiariza com as ferramentas de
pesquisa de sua área e experimenta a sua própria capacidade de formulação
conceitual, resultando em um trabalho que não se espera que seja radicalmente
original, mas que será novo na abordagem.
Independentemente do ineditismo da dissertação que
coroa o processo, o principal resultado do mestrado está no próprio
pesquisador, que se torna apto a se aventurar, no doutorado, em um projeto
realmente novo e relevante para sua área, o que seria impossível antes de ter o
domínio das técnicas de pesquisa e, sobretudo, a maturidade intelectual para
tanto. A autonomia do pesquisador não é um “dado”, mas precisa ser conquistada
no processo de formação, para o qual o mestrado tem papel essencial, a não ser
que se entenda a pesquisa dos doutorandos como mero apêndice do trabalho dos
orientadores.
É igualmente no mestrado que muitas deficiências de
formação básica de alunos oriundos de centros menos estabelecidos são sanadas,
tornando-os aptos a uma pesquisa de doutorado em condições de igualdade com
alunos dos grandes centros do Brasil e do mundo. Não por outra razão, com é
cristalino a quem quiser, os alunos de mestrado das grandes universidades
brasileiras têm sucesso quando vão fazer o doutorado (ou estágios durante o
doutorado brasileiro) em Roma ou na Sorbonne, mesmo sem ter saído de um liceu
clássico italiano ou de uma escola preparatória francesa.
Também é preciso lembrar que nesses grandes centros
americanos e europeus o mestrado continua existindo! Ele pode ter formatos
diversos, mais longos ou mais curtos, mais teóricos ou mais técnicos, mas
mantém o mesmo papel fundamental na formação de futuros doutorandos ou de profissionais
que decidam ir diretamente para o mercado de trabalho depois dessa primeira
experiência de pesquisa.
Vale lembrar que a importância formativa do
mestrado não elimina a possibilidade do doutorado direto, modalidade já
prevista no sistema atual, apenas não tornada regra para todo ingressante.
Porém a realização do doutorado direto, sem o
mestrado, só é viável se cumpridas algumas condições: (a) a originalidade e
complexidade do projeto proposto, que, por sua dificuldade de execução, demanda
um tempo mais longo do que o mestrado regular; (b) a posse, pelo pós-graduando,
do instrumental necessário para tal execução, o que pode envolver, por exemplo,
técnicas laboratoriais ultraespecializadas ou o conhecimento de línguas
clássicas, como grego e latim; (c) a comprovada maturidade intelectual do
pós-graduando, o que, em muitas áreas, é tão importante quanto raro em alunos
recém-formados.
Todos os orientadores conhecem casos bem-sucedidos
de doutorado direto feitos por alunos que reuniram as condições anteriores, mas
a excepcionalidade destas circunstâncias exige uma avaliação particular, não
podendo tornar-se regra geral.
Estabelecido que o mestrado não é uma perda de
tempo, nem uma jabuticaba brasileira, podemos voltar à primeira pergunta e
entender por que a proposta em tela coloca em risco o mestrado. Mesmo não
deixando de existir, o que representará o título de mestre nesse novo modelo?
Em vez de ser a comprovação de que o aluno está pronto para enfrentar uma
pesquisa inovadora de maneira autônoma, esse título será a marca do seu
fracasso na tentativa de se tornar um pesquisador.
Além disso, obrigado a executar em apenas um ano um
projeto que terminou de ser elaborado na altura do exame de qualificação, o
mestrando dificilmente produzirá algo melhor do que um bom trabalho de
conclusão de curso de graduação. Mais prêmio de consolação do que prova de
qualificação, o título de mestre persistirá no papel, mas o mestrado deixará de
existir enquanto etapa de formação do pesquisador.
Além disso, a proposta não diz como estabelecer os
30% vencedores da batalha fratricida da qualificação, considerando que as
dezenas de bancas terão membros diferentes que não poderão comparar os
trabalhos uns com os outros. Bem como não diz se terão acesso a bolsas de
estudo esses 70% perdedores que serão remanejados para o mestrado acelerado. E
tampouco diz se esses perdedores que concluíram o mestrado poderão ter bolsas
em um eventual doutorado simples feito na sequência.
Não nos enganemos: nas áreas de pesquisa básica, os
mestrandos e doutorandos não podem manter-se sem bolsa, portanto a não promoção
ao doutorado direto provavelmente significará a exclusão pura simples de um
contingente expressivo de jovens pesquisadores, expulsos do sistema antes de
alcançar as ferramentas necessárias para o trabalho de pesquisa. Os
pressupostos da reforma partem do diagnóstico de que o sistema atual é
excludente, por exigir um projeto de pesquisa para entrada no mestrado, e pouco
atrativo, por sua longa duração.
Ora, a exclusão de 70% dos candidatos aptos não é
muito mais excludente? A precariedade da formação acelerada não é muito menos
atrativa, visto que a função essencial do doutorado é produzir pesquisadores
autônomos? Também não devemos esquecer que os programas de pós-graduação do
Brasil têm incluído cada vez mais ações afirmativas nos seus processos
seletivos, entendidas como uma justa reivindicação em uma sociedade tão
desigual como a nossa. Tudo leva a crer que esses beneficiários estarão entre
os primeiros limados ao final do primeiro ano de pós-graduação.
Todas essas preocupações poderiam ser relativizadas
levando em conta que a adesão ao novo modelo é voluntária, de modo que cada
programa de pós-graduação pode decidir livremente, de acordo com suas
características próprias, se entrará ou não. É aí, porém, que a anuência das
agências (Capes e Fapesp) nos deixa a todos inseguros.
Nos corredores da universidade, o que se teme é que
a partir da implantação do modelo (já no início de 2025) os programas que não
aderirem terão dificuldades na atribuição de bolsas Capes para seus alunos de
mestrado e doutorado simples. No caso da Fapesp, em que os pedidos de bolsa são
individuais, teme-se uma priorização e concentração de recursos nos alunos de
programas que façam parte do novo modelo, em prejuízo dos pedidos de mestrados
e doutorados tradicionais. Enquanto essa preocupação pairar, não se poderá
falar em adesão livre ao projeto.
A discussão sobre a perda formativa do modelo,
amplamente reconhecida por colegas de várias áreas, fica prejudicada pela convicção
de que a decisão, ao fim e ao cabo, não será nossa, mas das agências, das quais
nossos alunos dependem. É delas, portanto, que esperamos esclarecimentos
precisos para que uma decisão tão importante para o futuro da pós-graduação na
USP possa vir de uma reflexão séria, ponderada e autônoma de cada programa, e
não com uma faca no pescoço.
Fonte: Por Marilena Chaui, Luís César Oliva e Homero Santiago em A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário