quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

O que acontece se houver um ataque cibernético do Ocidente no Brasil?

Com uma das maiores infraestruturas de Internet do mundo, o Brasil se destaca pela capilaridade e autonomia de sua rede. Mas, em um cenário hipotético de ataque vindo de grandes potências ocidentais, como ficariam a segurança e a soberania digitais do país?

A questão foi debatida por especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, que avaliaram os pontos fortes e vulnerabilidades do sistema brasileiro.

Daniel Damito, fundador e CEO da Sage Networks, destacou que o Brasil está à frente em proteção contra ataques digitais, especialmente os chamados DDoS (ataques de negação de serviço), que têm como objetivo sobrecarregar redes e deixá-las fora do ar.

"O Brasil já enfrentou problemas maiores que outros países, testou soluções avançadas e, sim, está bem protegido. Mas é importante lembrar que ataques à infraestrutura de Internet são complexos e exigem uma defesa igualmente robusta e descentralizada."

Damito explicou que o Brasil tem o maior número de ASNs (sigla em inglês para Números de Sistemas Autônomos) do mundo, com mais de 20 mil empresas controlando blocos próprios de IP e oferecendo conectividade em todo o território nacional.

Essa descentralização é uma das maiores forças do país em caso de ataques externos, mas também pode ser uma vulnerabilidade, dependendo da escala do ataque.

"Se houvesse uma ofensiva massiva de grandes potências, a capacidade de resposta dependeria de quão bem coordenadas estivessem as defesas e da integração entre as operadoras locais e as grandes empresas do setor."

Julio Sirota, gerente de infraestrutura do IX.br, apontou que o Brasil possui uma ampla autonomia no que diz respeito à infraestrutura, mas alertou para a dependência de serviços e conteúdos hospedados fora do país.

"A infraestrutura é sólida. Temos redes interligando todas as regiões e um mercado competitivo de provedores locais, algo raro no mundo. Mas os grandes serviços — como plataformas de nuvem, redes sociais e ferramentas de comunicação — estão sob domínio de multinacionais. Nesse ponto, um bloqueio ou ataque coordenado poderia afetar severamente o país", explica.

Sirota destacou que a força da Internet brasileira está na capilaridade, com pequenas operadoras fornecendo fibra óptica até mesmo em regiões remotas.

Brasil tem estrutura para resistir a um ataque à sua Internet?

Apesar de ter infraestrutura, Sirota reconhece que a soberania digital brasileira ainda é limitada em relação ao conteúdo e aos serviços. "Controlamos a entrega, mas não controlamos o que acontece fora do país."

"Se o Ocidente decidisse isolar ou atacar nossas redes, teríamos dificuldades em acessar serviços essenciais."

Segundo ele, isso mostra a necessidade de pensar em estratégias de autonomia também para conteúdos e plataformas.

<><> Teve ataque cibernético no Brasil?

O Brasil, em um período de 12 meses, registrou mais de 700 milhões de ataques cibernéticos, 1.379 por minuto, segundo o Panorama de Ameaças para a América Latina 2024, da empresa russa Kaspersky. Isso coloca o país na segunda posição em todo o mundo.

Ambos os especialistas concordam que, enquanto o Brasil lidera em conectividade e proteção de infraestrutura, há uma dependência preocupante de empresas estrangeiras para serviços digitais essenciais.

Essa questão se torna ainda mais relevante em um contexto de crescentes tensões geopolíticas e ataques cibernéticos como arma estratégica.

Para Damito, a solução passa por mais investimentos em tecnologias locais. "O Brasil precisa de grandes players nacionais que ofereçam serviços de nuvem e comunicação de forma independente. Sem isso, ficamos vulneráveis ao que acontece fora das nossas fronteiras."

Já Sirota acredita que eventos como a Semana de Infraestrutura, ocorrida em dezembro em São Paulo (SP), são essenciais para manter a comunidade técnica unida e preparada para desafios futuros.

"É aqui que discutimos melhores práticas, desenvolvemos soluções e fortalecemos redes. Mas é um trabalho constante. A soberania digital é um objetivo a longo prazo."

¨      Soberania digital é crucial, pois Internet é hoje um 'grande general' com visão de campo

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam por que a Internet, sobretudo por conta das redes sociais, se tornou um ponto nevrálgico para a segurança nacional de vários países, e analisam a capacidade do Brasil de se defender nessa nova modalidade digital de embate.

Em sua busca da soberania digital, a Rússia está empenhada em investir nos próximos cinco anos no aprimoramento de sua arquitetura de Internet, com a criação de provedores e plataformas próprias, sobretudo de redes sociais. O objetivo é blindar o país de ciberataques externos.

A medida vem na esteira da tendência global de aumentar a regulamentação sobre o ambiente digital, em especial as redes sociais. No início do ano, a Comssão Europeia aprovou uma lei que visa retirar o monopólio das big techs sobre o mercado digital, além de obrigar as empresas a tomarem medidas contra a desinformação e a viralização de conteúdos de ódio. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga a responsabilidade de plataformas de Internet sobre conteúdos postados.

Nos EUA, analistas acusam a Rússia de censura por conta das medidas tomadas para impedir ameaças externas no ambiente digital, ignorando, no entanto, o fato de que a empresa chinesa ByteDance, proprietária do TikTok, está sendo forçada a vender suas operações no país para uma empresa local sob o argumento de risco à segurança nacional. Ignoram também o fato de que o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, alçou dois empresários, tidos como titãs do setor de tecnologia, para compor cargos importantes de seu governo: o atual dono da rede social X (antigo Twitter), Elon Musk, como chefe do Departamento de Eficiência Governamental; e Devin Nunes, dono da rede Truth Social, como presidente do Conselho Consultivo de Inteligência da Presidência.

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam como a Internet deixou de ser vista como um ambiente inofensivo para se tornar a chamada nova fronteira da soberania dos países.

Héctor Saint-Pierre, especialista em segurança internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica que a Internet surgiu como uma arma de guerra, como uma ferramenta de comunicação de frente de combate.

"A Internet, inclusive o desenvolvimento da computação, se deu para decifrar códigos de guerra. Tudo isso foi produto do desenvolvimento da tecnologia, por isso alguns atores, alguns filósofos, dizem que a guerra promoveu o desenvolvimento [do ambiente digital]", afirma.

Ele explica que há três décadas o mundo imaginava que a Internet democratizaria todos os sistemas políticos, abrindo a possibilidade de a sociedade acompanhar e participar na tomada de decisões importantes pertinentes do Estado. "Imaginávamos naquela época uma democracia direta, mas que virou uma cilada."

Saint-Pierre afirma que hoje os dados constituem a mercadoria mais importante, pois é a partir deles que informações são coletadas e usadas para moldar visões e comportamentos. Isso porque os dados permitem entender como uma pessoa se comporta, o que busca nas redes sociais, quais são suas crenças e com o que gasta. Ao serem reunidas, essas informações são moldadas a partir de algoritmos.

"Nosso comportamento é codificado como um grupo de pessoas que atuam da mesma maneira, e são feitos discursos e narrativas específicos para esse grupo, para que ele tome determinadas decisões. Dessa forma, molda-se a percepção em função da capacidade que se utiliza: tenho que compreender um assunto, esse assunto é transmitido a mim através desses meios e vão moldando minha percepção da realidade, vão construindo uma nova realidade a partir dessas narrativas", destaca.

Ele acrescenta que, somada a isso, há a chamada Internet das coisas, que conecta diversos aparelhos em um único sistema, ampliando essa coleta de dados. Com isso, torna-se possível, para alguém com conhecimento, acessar dados de órgãos críticos para um país, como o Pentágono, por exemplo — assim como ocorreu com uma central nuclear do Irã, quando acessaram o sistema de refrigeração das turbinas no intuito de provocar um acidente.

Segundo Saint-Pierre, a Internet funciona como "uma máquina de visão", que possibilita "captar sinais e informações sobre inimigos".

"A máquina de visão é a possibilidade de observar todo o campo do inimigo. Ou seja, o grande general, aquele que vai vencer a próxima guerra, é quem tem o controle da visão do campo, não só do campo de batalha, mas do campo total. É capaz de observar o que o inimigo produz, suas fábricas, seu sistema político, como está seu sistema econômico, e, a partir daí, tirar lições que permitam utilizar essas informações como uma vantagem de guerra […]. Portanto se transformou em um instrumento perigosíssimo."

Outro aspecto apontado pelo especialista é que todo esse setor está nas mãos de empresas privadas, que utilizam as informações para enriquecimento ou para obter poder. "Portanto a precaução de governos em regulamentar essas áreas, esse ambiente digital de comunicação, é fundamental."

"Nesse momento, a juventude está socializando a partir de celulares, através do que [o filósofo] Byung-Chul Han chama de relação especular, porque os jovens acessam a Internet em bolhas, em ambientes que pensam o mesmo e que fazem as suas cabeças. Ou seja, uma relação especular, não com o outro, mas um comportamento de si mesmo. Por isso é importante o controle da Internet, porque está causando problemas, está causando óbitos, suicídios, porque é importante inclusive para evitar notícias falsas."

Ele afirma que tudo isso mostra a importância de "transformar a Internet em uma verdadeira fonte de informação, distinguindo claramente que informação não é conhecimento".

"Conhecimento é classificação e organização das informações. Excesso de informação não é excesso de conhecimento. Conhecimento é saber selecionar dentre todas essas informações a informação valiosa para o conhecimento. Portanto a regulamentação é absolutamente necessária. Não só a Rússia está preocupada, o Brasil e muitos países europeus também estão preocupados em regulamentar essa informação, esse mecanismo de informação social de um alcance assustador", explica.

Saint-Pierre frisa que a falta de regulamentação faz com que a Internet seja usada tanto para passar informação confiável quanto para desestabilização, provocando, por exemplo, as chamadas revoluções coloridas, quando um inimigo externo usa influência para incitar um levante popular contra um determinado governo, por vezes usando plataformas digitais. Segundo ele, foi o que ocorreu no Brasil em 2013.

"Um movimento que começou por 20 centavos na tarifa de ônibus e em menos de um mês se tornou uma manifestação social enorme pedindo o impeachment da presidente democraticamente eleita e o retorno dos militares ao poder, o retorno da ditadura. Isso não tem uma explicação lógica que não a manipulação da sociedade através das redes. Portanto, é fundamental para uma democracia plena o controle e regulamentação desses mecanismos de informação."

¨      Empresas dos EUA extraem dados de populações de todo o planeta

Por sua vez, Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), doutor em ciência política e pesquisador de redes digitais e das implicações da inteligência artificial, afirma que "os Estados-nação estão sendo cada vez mais transpassados, desafiados por infraestruturas computacionais que são globais ou transnacionais, e existe uma relação muito próxima entre essas grandes empresas de tecnologia norte-americanas e o Estado norte-americano".

"O Estado norte-americano utiliza essas corporações como trunfos, como agentes geopolíticos. O Edward Snowden nos mostrou isso em 2013. Então o que acontece é que cada vez mais a ideia da soberania sobre os elementos cruciais do digital ou das redes digitais é fundamental. Isso não quer dizer um bloqueio de sites ou de aplicações da Internet, exceto se essas aplicações violam as decisões e leis de um país. Mas, em geral, o problema está na localização e no controle dos dados, porque os norte-americanos, a partir dessas corporações, extraem dados das populações de todo o planeta e processam, analisam e criam produtos e serviços a partir desses dados extraídos", afirma.

Ele ressalta que desde os anos 1990, quando a Internet começou a se tornar comercial, ela é vista como uma rede que penetra na estrutura territorial e que pode ser um elemento de ataques cibernéticos. Segundo ele, a grande novidade é a apropriação dessa estratégia pela direita radical global para uso político, embalada por empresários neoliberais que têm muito dinheiro e resolveram "tomar conta da Internet".

Ele afirma que o Brasil ainda vive um momento de início da disputa e da luta pela soberania digital, mas pontua que o episódio de banimento temporário da rede social X neste ano mostra que o país tem condições de se defender.

"Quando Elon Musk achou que podia se confrontar com as decisões do Judiciário brasileiro para proteger golpistas no Brasil, proteger perfis e não retirar [do ar] conteúdos do antigo Twitter, ele teve que recuar, porque ele não consegue enfrentar os bloqueios que o país […] consegue fazer. Então a gente tem condição, sim, de se proteger. Agora, me preocupa que essa proteção seja feita de acordo com a Constituição do país, com a democracia, e não para retirar conteúdos conforme o interesse do governante de plantão", conclui o especialista.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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