O que acontece se
houver um ataque cibernético do Ocidente no Brasil?
Com uma das maiores
infraestruturas de Internet do mundo, o Brasil se destaca pela capilaridade e
autonomia de sua rede. Mas, em um cenário hipotético de ataque vindo de grandes
potências ocidentais, como ficariam a segurança e a soberania digitais do país?
A questão foi
debatida por especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, que avaliaram os
pontos fortes e vulnerabilidades do sistema brasileiro.
Daniel Damito,
fundador e CEO da Sage Networks, destacou que o Brasil está à frente em
proteção contra ataques digitais, especialmente os chamados DDoS (ataques de
negação de serviço), que têm como objetivo sobrecarregar redes e deixá-las fora
do ar.
"O Brasil já
enfrentou problemas maiores que outros países, testou soluções avançadas e,
sim, está bem protegido. Mas é importante lembrar que ataques
à infraestrutura de Internet são complexos e exigem uma defesa igualmente
robusta e descentralizada."
Damito explicou que
o Brasil tem o maior número de ASNs (sigla em inglês para Números de
Sistemas Autônomos) do mundo, com mais de 20 mil empresas controlando blocos
próprios de IP e oferecendo conectividade em todo o território nacional.
Essa
descentralização é uma
das maiores forças do país em caso de ataques externos, mas também pode ser
uma vulnerabilidade, dependendo da escala do ataque.
"Se houvesse
uma ofensiva massiva de grandes potências, a capacidade de resposta dependeria
de quão bem coordenadas estivessem as defesas e da integração entre as
operadoras locais e as grandes empresas do setor."
Julio Sirota,
gerente de infraestrutura do IX.br, apontou que o Brasil possui uma ampla
autonomia no que diz respeito à infraestrutura, mas alertou para
a dependência de serviços e conteúdos hospedados fora do país.
"A
infraestrutura é sólida. Temos redes interligando todas as regiões e um mercado
competitivo de provedores locais, algo raro no mundo. Mas os grandes serviços —
como plataformas de nuvem, redes sociais e ferramentas de comunicação
— estão sob domínio de multinacionais. Nesse ponto, um bloqueio ou ataque
coordenado poderia afetar severamente o país", explica.
Sirota destacou
que a força da Internet brasileira está na capilaridade, com pequenas
operadoras fornecendo fibra óptica até mesmo em regiões remotas.
Brasil tem
estrutura para resistir a um ataque à sua Internet?
Apesar de ter
infraestrutura, Sirota reconhece que a soberania digital brasileira ainda é
limitada em relação ao conteúdo e aos serviços. "Controlamos a entrega,
mas não controlamos o que acontece fora do país."
"Se o Ocidente
decidisse isolar ou atacar nossas redes, teríamos dificuldades em acessar
serviços essenciais."
Segundo ele, isso
mostra a necessidade de pensar em estratégias de autonomia também para
conteúdos e plataformas.
<><> Teve
ataque cibernético no Brasil?
O Brasil, em um
período de 12 meses, registrou mais de 700 milhões de ataques
cibernéticos, 1.379 por minuto, segundo o Panorama de Ameaças para a América
Latina 2024, da empresa russa Kaspersky. Isso
coloca o país na segunda posição em todo o mundo.
Ambos os
especialistas concordam que, enquanto o Brasil lidera em conectividade e
proteção de infraestrutura, há uma dependência preocupante de empresas
estrangeiras para serviços digitais essenciais.
Essa questão se
torna ainda mais relevante em um contexto de crescentes tensões geopolíticas
e ataques cibernéticos como arma estratégica.
Para Damito, a
solução passa por mais investimentos em tecnologias locais. "O Brasil
precisa de grandes players nacionais que ofereçam serviços de nuvem e
comunicação de forma independente. Sem isso, ficamos vulneráveis ao que
acontece fora das nossas fronteiras."
Já Sirota acredita
que eventos como a Semana de Infraestrutura, ocorrida em dezembro em São
Paulo (SP), são essenciais para manter a comunidade técnica unida e preparada
para desafios futuros.
"É aqui que
discutimos melhores práticas, desenvolvemos soluções e fortalecemos redes. Mas
é um trabalho constante. A soberania digital é um objetivo a longo
prazo."
¨ Soberania digital é crucial, pois Internet é hoje um
'grande general' com visão de campo
Em entrevista à
Sputnik Brasil, especialistas explicam por que a Internet, sobretudo por conta
das redes sociais, se tornou um ponto nevrálgico para a segurança nacional de
vários países, e analisam a capacidade do Brasil de se defender nessa nova
modalidade digital de embate.
Em sua busca da
soberania digital, a Rússia está empenhada em investir nos próximos cinco
anos no aprimoramento de sua arquitetura de Internet, com a criação de
provedores e plataformas próprias, sobretudo de redes sociais. O objetivo é
blindar o país de ciberataques externos.
A medida vem na
esteira da tendência global de aumentar a regulamentação sobre o ambiente
digital, em especial as redes sociais. No início do ano, a Comssão Europeia
aprovou uma lei que visa retirar o monopólio das big techs sobre o mercado
digital, além de obrigar as empresas a tomarem medidas contra
a desinformação e
a viralização de conteúdos de ódio. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal
(STF) julga
a responsabilidade de plataformas de Internet sobre conteúdos postados.
Nos EUA, analistas
acusam a Rússia de censura por conta das medidas tomadas para impedir ameaças
externas no ambiente digital, ignorando, no entanto, o fato de que a empresa
chinesa ByteDance, proprietária do TikTok, está sendo forçada a vender suas
operações no país para uma empresa local sob o argumento de risco à segurança
nacional. Ignoram também o fato de que o presidente eleito dos EUA, Donald
Trump, alçou dois empresários, tidos como titãs do setor de tecnologia, para
compor cargos importantes de seu governo: o atual dono da rede social X (antigo
Twitter), Elon Musk, como chefe do Departamento de Eficiência Governamental; e
Devin Nunes, dono da rede Truth Social, como presidente do Conselho Consultivo
de Inteligência da Presidência.
Em entrevista
à Sputnik Brasil, especialistas analisam como a Internet deixou de ser
vista como um ambiente inofensivo para se tornar a chamada nova fronteira da
soberania dos países.
Héctor
Saint-Pierre, especialista em segurança internacional da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), explica que a Internet surgiu como uma arma de guerra,
como uma ferramenta de comunicação de frente de combate.
"A Internet,
inclusive o desenvolvimento da computação, se deu para decifrar códigos de
guerra. Tudo isso foi produto do desenvolvimento da tecnologia, por isso alguns
atores, alguns filósofos, dizem que a guerra promoveu o desenvolvimento [do
ambiente digital]", afirma.
Ele explica
que há três décadas o mundo imaginava que a Internet democratizaria todos
os sistemas políticos, abrindo a possibilidade de a sociedade acompanhar e
participar na tomada de decisões importantes pertinentes do Estado.
"Imaginávamos naquela época uma democracia direta, mas que virou uma
cilada."
Saint-Pierre afirma
que hoje os dados constituem a mercadoria mais importante, pois é a partir
deles que informações são coletadas e usadas para moldar visões e
comportamentos. Isso porque os dados permitem entender como uma pessoa se
comporta, o que busca nas redes sociais, quais são suas crenças e com o que
gasta. Ao serem reunidas, essas informações são moldadas a partir de
algoritmos.
"Nosso comportamento
é codificado como um grupo de pessoas que atuam da mesma maneira, e são feitos
discursos e narrativas específicos para esse grupo, para que ele tome
determinadas decisões. Dessa forma, molda-se a percepção em função da
capacidade que se utiliza: tenho que compreender um assunto, esse assunto é
transmitido a mim através desses meios e vão moldando minha percepção da
realidade, vão construindo uma nova realidade a partir dessas narrativas",
destaca.
Ele acrescenta
que, somada a isso, há a chamada Internet das coisas, que conecta diversos
aparelhos em um único sistema, ampliando essa coleta de dados. Com isso,
torna-se possível, para alguém com conhecimento, acessar dados de órgãos
críticos para um país, como o Pentágono, por exemplo — assim como ocorreu com
uma central nuclear do Irã, quando acessaram o sistema de refrigeração das
turbinas no intuito de provocar um acidente.
Segundo
Saint-Pierre, a Internet funciona como "uma máquina de visão",
que possibilita "captar sinais e informações sobre inimigos".
"A máquina de
visão é a possibilidade de observar todo o campo do inimigo. Ou seja, o grande
general, aquele que vai vencer a próxima guerra, é quem tem o controle da visão
do campo, não só do campo de batalha, mas do campo total. É capaz de observar o
que o inimigo produz, suas fábricas, seu sistema político, como está seu
sistema econômico, e, a partir daí, tirar lições que permitam utilizar essas
informações como uma vantagem de guerra […]. Portanto se transformou em um
instrumento perigosíssimo."
Outro aspecto
apontado pelo especialista é que todo esse setor está nas mãos de empresas
privadas, que utilizam as informações para enriquecimento ou para obter
poder. "Portanto a precaução de governos em regulamentar essas áreas,
esse ambiente digital de comunicação, é fundamental."
"Nesse
momento, a juventude está socializando a partir de celulares, através do que [o
filósofo] Byung-Chul Han chama de relação especular, porque os jovens acessam a
Internet em bolhas, em ambientes que pensam o mesmo e que fazem as suas
cabeças. Ou seja, uma relação especular, não com o outro, mas um comportamento
de si mesmo. Por isso é importante o controle da Internet, porque está causando
problemas, está causando óbitos, suicídios, porque é importante inclusive para
evitar notícias falsas."
Ele afirma que tudo
isso mostra a importância de "transformar a Internet em uma
verdadeira fonte de informação, distinguindo claramente que informação não é
conhecimento".
"Conhecimento
é classificação e organização das informações. Excesso de informação não é
excesso de conhecimento. Conhecimento é saber selecionar dentre todas essas
informações a informação valiosa para o conhecimento. Portanto a regulamentação
é absolutamente necessária. Não só a Rússia está preocupada, o Brasil e muitos
países europeus também estão preocupados em regulamentar essa informação, esse
mecanismo de informação social de um alcance assustador", explica.
Saint-Pierre frisa
que a falta de regulamentação faz com que a Internet seja usada tanto para
passar informação confiável quanto para desestabilização, provocando, por
exemplo, as chamadas revoluções coloridas, quando um inimigo externo usa
influência para incitar um levante popular contra um determinado governo, por
vezes usando plataformas digitais. Segundo ele, foi o que ocorreu no
Brasil em 2013.
"Um movimento
que começou por 20 centavos na tarifa de ônibus e em menos de um mês se tornou
uma manifestação social enorme pedindo o impeachment da presidente
democraticamente eleita e o retorno dos militares ao poder, o retorno da
ditadura. Isso não tem uma explicação lógica que não a manipulação da sociedade
através das redes. Portanto, é fundamental para uma democracia plena o
controle e regulamentação desses mecanismos de informação."
¨ Empresas dos EUA extraem dados de populações de todo o
planeta
Por sua vez, Sérgio
Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), doutor em
ciência política e pesquisador de redes digitais e das implicações da
inteligência artificial, afirma que "os Estados-nação estão sendo
cada vez mais transpassados, desafiados por infraestruturas computacionais que
são globais ou transnacionais, e existe uma relação muito próxima entre essas
grandes empresas de tecnologia norte-americanas e o Estado
norte-americano".
"O Estado
norte-americano utiliza essas corporações como trunfos, como agentes
geopolíticos. O Edward Snowden nos mostrou isso em 2013. Então o que acontece é
que cada vez mais a ideia da soberania sobre os elementos cruciais do digital
ou das redes digitais é fundamental. Isso não quer dizer um bloqueio de sites
ou de aplicações da Internet, exceto se essas aplicações violam as decisões e
leis de um país. Mas, em geral, o problema está na localização e no controle
dos dados, porque os norte-americanos, a partir dessas corporações, extraem
dados das populações de todo o planeta e processam, analisam e criam produtos e
serviços a partir desses dados extraídos", afirma.
Ele ressalta que
desde os anos 1990, quando a Internet começou a se tornar comercial, ela é
vista como uma rede que penetra na estrutura territorial e que pode ser um
elemento de ataques
cibernéticos.
Segundo ele, a grande novidade é a apropriação dessa estratégia pela direita
radical global para uso político, embalada por empresários neoliberais que têm
muito dinheiro e resolveram "tomar conta da Internet".
Ele afirma que o
Brasil ainda vive um momento de início da disputa e da luta pela soberania
digital, mas pontua que o episódio de banimento temporário da rede social
X neste ano mostra que o país tem condições de se defender.
"Quando Elon
Musk achou que podia se confrontar com as decisões do Judiciário brasileiro
para proteger golpistas no Brasil, proteger perfis e não retirar [do ar]
conteúdos do antigo Twitter, ele teve que recuar, porque ele não consegue
enfrentar os bloqueios que o país […] consegue fazer. Então a gente tem condição,
sim, de se proteger. Agora, me preocupa que essa proteção seja feita de acordo
com a Constituição do país, com a democracia, e não para retirar conteúdos
conforme o interesse do governante de plantão", conclui o especialista.
Fonte: Sputnik
Brasil
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