quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Lucia Capuzzi: O protesto foi enterrado às portas de Damasco em dezenas de valas comuns

“Que vala comum está procurando? Temos muitas por aqui”. No deserto rochoso que liga o norte de Damasco a Homs, al-Qutaifa desponta um “pedaço” após o outro. Primeiro, os condomínios em construção como parte de um programa habitacional do antigo regime. Depois, no sopé da colina, a praça com um pedestal vazio no meio e, ao redor, os pedaços da estátua de Bashar al-Assad. Por fim, a delegacia de polícia.

É uma parada essencial para obter informações sobre a enorme vala comum - do tamanho de um campo de futebol - encontrada nas proximidades pelos repórteres da al-Jazeera há dois dias. Dentro da delegacia circula uma dúzia de homens vestindo jeans, tênis e camisas verde-oliva, estilo militar. “Mas não somos combatentes do Hayat Tahrir al-Sham (Hts)”, ressalta um deles. Ele não revela seu nome: diz apenas que nasceu em al-Qutaifa, tem 49 anos e passou onze meses de 2014 na Prisão 227, administrada em Damasco pela inteligência da ditadura. “Por que me soltaram? Minha família pagou, e muito. Era a única maneira de sair. Com vida. Mortos, muitos saíam. Todos os dias, levavam os corpos de onze ou doze presos, mortos por torturas ou assassinados. Alguém deve ter vindo parar aqui embaixo também”, diz ele, apontando o dedo indicador para baixo. A Síria de Assad era uma enorme vala comum. Durante treze anos, a ditadura enterrou incansavelmente a Primavera de 2011”.

A lista oficial de desaparecidos nas mãos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para em 35.000. Apenas um quarto do número estimado pelas principais organizações sírias de direitos humanos: entre 136.000 e 150.000. Menos de vinte mil foram encontrados desde domingo. O ex-prisioneiro está, portanto, feliz que aquela era cruel, que durou décadas, tenha chegado ao fim. “Mesmo que vivamos momentos difíceis. Aqui, as tropas do Hts e as forças do novo governo ainda não chegaram. No vácuo, houve saques e roubos. Então, nós nos organizamos”. Há dois dias, os pequenos empórios na entrada de al-Qutaifa foram destruídos, um após o outro. O proprietário, Mofak, 48 anos, originário de Idlib, em atividade desde 2020, decidiu continuar vendendo café, chá e biscoitos em uma banquinha improvisada colocada na beira da estrada.

Ahmad, 35 anos, que fugiu em 2019 de Deir ez-Zor no auge da batalha entre as forças curdas e pró-Ancara, aponta com ênfase para sua loja de autopeças reduzida a uma pilha de escombros. “Por favor, tire uma foto: o mundo precisa ver”. Diante da sucessão de saques, surgiu a milícia na cidade. As armas, após treze anos de guerra civil, existem dramaticamente aos montes. Os “policiais interinos” - como eles se autodenominam, pois afirmam estar prontos a sair quando a segurança for garantida – fizeram um estoque de kalashnikovs. “Mas não precisa ter medo, só queremos proteger os cidadãos”, acrescenta o mais idoso, com a cabeça envolta em um keffiyeh vermelho. Alguns saem para a rua para regular o trânsito e controlar as lojas, que ainda estão fechadas, exceto uma que vende camisas militares, o uniforme da “milícia”. Dentro do prédio, um deles está empenhado em colar na parede a bandeira de três estrelas da revolução que substituiu aquela da ditadura em todos os lugares. Enquanto decidem a quais cemitérios clandestinos vale a pena ir, distribuem sucos de fruta e sorrisos. “Bem-vindo, bem-vindo à Síria livre”, repetem.

Logo atrás da delegacia de polícia está a vala “menor”, como a chamam. Na verdade, trata-se de um pequeno cemitério em cujas sepulturas, no entanto, dezenas de pessoas desaparecidas foram enterradas anonimamente. Ald Bukia, por outro lado, é um enorme terreno baldio a cerca de dez minutos de carro. Até seis dias atrás, um posto de controle militar o tornava inacessível. Atrás de um alto muro branco, blindado por um portão de ferro, havia uma guarnição de soldados iranianos, especializados em telecomunicações, como pode ser visto pelas instalações deixadas para trás na fuga da semana passada, às vésperas da queda do regime.

Colunas de veículos blindados com tropas de Teerã e Moscou foram vistas deixando a capital às pressas no último sábado. Desde então, os russos se refugiaram na base aérea de Khmeimim e no porto de Tartus. Ontem, no entanto, até mesmo essas instalações pareciam estar prestes a ser desocupadas. Nesse meio tempo, a frota do Kremlin deixou Tartus. Um sinal de que os contatos de dois dias atrás entre Moscou e o novo governo não foram satisfatórios. “Antes da chegada dos iranianos, há cerca de três anos, Ald Bukia era uma maxi-vala comum. Eles a cavaram em 2014 para enterrar, sob quatro metros de terra, milhares de pessoas. Não posso dizer quantas, mas, entre 2021 e 2022, quando decidiram transferi-las - não se sabe se por medo de serem descobertas ou para abrir espaço para os Pasdaran -, levaram um mês, ao ritmo de quatro caminhões por dia”, enfatiza o agente encarregado. Assim, a vala foi transferida para as proximidades da Baghdad Bridge, onde os jornalistas da al-Jazeera a encontraram.

Mas a zona continua “proibida”. Menos de 24 horas após sua descoberta, outras duas apareceram, uma na Bridge 5, ao longo da estrada para o aeroporto da capital, e a outra no distrito de Tadamon. Além disso, há também as dezenas de corpos de detentos empilhados nos necrotérios de Damasco, para onde os rebeldes os levaram à medida em que as prisões eram abertas e esvaziadas. “E isso é apenas a ponta do iceberg - conclui o homem - levará anos para sabermos a verdade. E será mais dolorosa do que imaginamos”.

Agora, no entanto, é um momento de pausa para a Síria comemorar a saída do pesadelo, antes de acordar para uma realidade ainda inimaginável. Acolhendo o convite do líder do Hts, Abu Mohammed al-Jolani, o povo de Qutaifa embarca nos ônibus para Damasco para festejar o primeiro dia de oração desde o fim do regime na mesquita Umayyad, totalmente lotada. Depois, a multidão invadiu a praça de mesmo nome até tarde da noite. Música e tiros. O barulho, depois de meio século de silêncio, é uma revolução

 

¨      Os idosos de Gaza sofrem o impacto da impiedosa ofensiva. Por Maha Hussaini

Em uma pequena e desgastada tenda improvisada em Deir al-Balah, Om Tamer al-Nimnim está sentada ao lado de suas três filhas e três netos. Este frágil abrigo tem sido seu único lar por mais de um ano, desde que foram deslocados à força de sua casa em Jabalia, no norte de Gaza, em meio a intensos bombardeios israelenses.

Após 14 meses de ofensiva implacável e deslocamento, Nimnim passou de 78 quilos para menos de 50. Aos 65 anos, ela lamenta ter sobrevivido aos ataques contra o norte de Gaza e continuar sofrendo as consequências da violência. "Toda manhã, eu me levanto e digo: ‘Quem dera tivéssemos morrido no norte em vez de passar pelo que estamos passando agora’. Olhe para mim. Eu não era assim. Todos que me veem agora se surpreendem porque mudei muito nos últimos meses", explica Nimnim.

"Não é apenas a falta de comida que causa isso. Além da escassez de alimentos, é viver nesta tenda, suportar o calor e o frio, a preocupação constante, a ansiedade e a falta de cuidados médicos. Eu morava em uma casa de três andares. Hoje, vivo neste lugar que nem sequer é adequado para cães", lamenta a mulher, que descreve como uma morte lenta viver em Gaza além das bombas.

Durante meses, o acampamento de deslocados onde ela e sua família buscaram abrigo não tinha banheiros, então eles precisavam fazer suas necessidades em baldes.

"Quando chegamos aqui, e por vários meses, nem sequer havia um banheiro disponível no acampamento. Tínhamos que usar um balde. Você consegue imaginar isso? Passei duas semanas sem saber como lidar usando um balde. Tenho 65 anos; nunca imaginei nem vi algo como o que estamos vivendo hoje."

"A situação é ruim para todos, jovens e idosos, mas para os mais velhos é muito pior. Onde está o Ocidente, que se gaba de defender os direitos dos idosos? Estamos sendo punidos por algo que não fizemos."

A viúva deslocada, que perdeu uma filha e um genro em um bombardeio israelense no norte de Gaza, explicou que às vezes precisam repreender a neta de um ano quando ela acorda chorando por comida. "Não podemos fazer nada a respeito. Ela acorda e chora por horas, até que os vizinhos nas tendas próximas reclamam do barulho. E como não temos nem um pedaço de pão para dar a ela, recorremos dolorosamente a repreendê-la para que pare de chorar", contou Nimnim.

As noites frias de inverno e, anteriormente, o calor do verão impedem que ela consiga dormir normalmente. "Estou vivendo em tendas há mais de um ano e ainda não me acostumei. Tenho 65 anos e tudo o que queria nesta idade era viver em uma casa quente, sentindo-me segura. Nunca imaginei que, nesta idade, estaria vivendo em uma tenda, rezando apenas por um pedaço de pão."

No meio de 2023, os idosos representavam cerca de 3% da população da Faixa de Gaza, segundo o Escritório Central de Estatísticas da Palestina. Durante a ofensiva, esses idosos sobreviventes suportaram a pior parte da crise, enfrentando a fome, a grave escassez de atendimento médico e deslocamentos forçados constantes.

Tratamento médico é um "luxo"

Ao lado da tenda de Nimnim vive a família Eyadah, também deslocada à força do norte de Gaza. O avô, Husni Muhammed Eyadah, sofreu trombose venosa profunda nas pernas desde o início da ofensiva, uma das quais ocorreu após seu filho ser morto em um bombardeio israelense no norte.

"Estou percebendo como minha saúde está piorando dia após dia e não posso fazer nada a respeito. Da última vez que tive trombose, fui levado ao hospital al-Aqsa, em Deir al-Balah, e tivemos que esperar duas horas para ser atendido", explica Eyadah, de 68 anos. "Os hospitais já estão sobrecarregados pelo número crescente de vítimas, e, nessas situações, o tratamento médico crítico para os idosos se torna um luxo."

Até 5 de novembro, apenas 17 dos 36 hospitais da Faixa permaneciam parcialmente operacionais. Eyadah acrescentou que, por mais de um ano, só tem comido alimentos enlatados, o que agravou sua hipertensão e deteriorou sua saúde em geral.

"A ajuda internacional que recebemos consiste principalmente em alimentos enlatados, enquanto os refeitórios populares, dos quais dependemos principalmente para o almoço, servem sobretudo arroz ou feijão enlatado. É claro que não comemos carne há mais de um ano, o que nos deixa sem fontes essenciais para manter nossa saúde."

"Meu maior medo é ser forçado a fugir deste abrigo novamente. Eu mudei muito desde que fugi da minha casa em outubro de 2023. Naquela época, eu estava saudável e era mais capaz de correr ou andar longas distâncias em busca de refúgio. Mas agora mal consigo andar de uma tenda para outra neste acampamento; minha saúde piorou drasticamente. Sou velho demais para tudo isso."

 

¨      Sem abrigo, sem comida e sem combustível: o pesadelo do inverno paira sobre os deslocados em Gaza. Por Malak A Tantesh

Nas últimas semanas, o mau tempo forçou centenas de pessoas que vivem na faixa costeira de Gaza em torno de al-Mawasi a evacuar os seus abrigos, danificando utensílios de cozinha, roupas, reservas de alimentos e lenha preciosa. Al-Mawasi foi designada como “zona humanitária” pelas ofensivas militares israelenses e está repleta de pessoas que foram deslocadas durante 13 meses de combates, ataques aéreos e bombardeamentos de artilharia.

Hisham al-Haddad, de 30 anos, explica que uma súbita torrente de água do mar invadiu a sua tenda e a dos seus vizinhos na semana passada, apanhando-os completamente desprevenidos. No momento da tempestade, a sua família de oito pessoas vivia perto de Deir al Balah, numa parte da costa declarada zona humanitária, desde que fugiram da ofensiva israelense contra a cidade de Rafah, no sul, em maio.

“Não tivemos outra alternativa senão armar a nossa tenda na areia da praia por falta de espaço, mas havia duas filas de tendas em frente à nossa, de frente para o mar. Todos foram engolidos completamente pelo mar durante a tempestade e a maré alta. Foi como um tsunami. “Peguei nos meus filhos e fugi”, diz al-Haddad. “Estávamos todos tentando salvar nossas vidas. As ondas arrastaram algumas pessoas e crianças, mas foram resgatadas. Estávamos todos gritando e pedindo ajuda. Eu queria ajudar os outros, mas tive que salvar a minha vida e a da minha família”.

A ONU e outras organizações humanitárias alertaram para as graves dificuldades que a população enfrentará durante os meses de inverno, quando as temperaturas em Gaza podem descer até aos 5ºC, com uma temperatura mínima média de 10ºC. Mais de dois terços dos edifícios do território foram danificados e há zonas inabitáveis.

No mês passado, Philippe Lazzarini, comissário-geral da Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA), disse que os habitantes de Gaza foram forçados a queimar lixo plástico como último recurso para se manterem aquecidos. “O inverno em Gaza significa que as pessoas não morrerão apenas devido a ataques aéreos, doenças ou fome. O inverno em Gaza significa que mais pessoas morrerão tremendo de frio, especialmente os mais vulneráveis, como os idosos e as crianças”, postou Lazzarini no X (antigo Twitter).

As organizações humanitárias, a ONU e alguns governos apelaram a uma melhoria no fluxo de ajuda para Gaza, especialmente para o norte, onde cerca de 60.000 a 75.000 pessoas estão sem assistência humanitária há mais de dois meses devido ao bloqueio imposto pelo Exército israelense em vários bairros.

Também através de uma mensagem na plataforma de ajuda humanitária a Gaza através do Kerem Shalom e outras medidas. Ele também observou que a UNRWA coordenou menos de 10% da ajuda que entrou em Gaza em novembro.

Outubro de 2024 marcou o pior mês para a ajuda humanitária em Gaza desde o início do conflito, há treze meses. Segundo o COGAT, entraram em média 90 caminhões por dia em novembro, contra 60 caminhões por dia em outubro.

“Faz tanto frio que não temos roupas de inverno para nos aquecer, nem cobertores suficientes. Usei metade para construir a loja. Meus filhos têm duas peças de agasalho, colocam para se aquecer, mas não chega. Também não temos lenha para acender o fogo e nos aquecer um pouco”, explica Fida Eid, mulher de 26 anos e mãe de dois filhos. Eid, deslocado de Jabalia, cidade localizada a cinco quilômetros a norte de Gaza, sitiada por Israel e palco de violentos combates, afirma que cinco familiares próximos morreram no conflito.

A ofensiva de Israel em Gaza foi desencadeada após um ataque de militantes do Hamas contra o sul de Israel em 7 de outubro. Mais de 1.200 pessoas, a maioria civis, foram mortas no ataque transfronteiriço que apanhou de surpresa os serviços de segurança israelenses. Outras 250 pessoas foram sequestradas. Até à data, segundo as autoridades sanitárias de Gaza, a ofensiva israelense causou mais de 44.800 mortos e 106.300 feridos. A maioria são civis. Outros milhares estão desaparecidos.

<><> Sem acesso à ajuda humanitária

Nas últimas semanas, os preços dos alimentos dispararam e os produtos básicos são demasiado caros para grande parte da população civil. Um saco de farinha de 25 kg custa agora mais de 114 euros, mais de 10 vezes o preço que tinha antes do início da guerra.

“Recebemos muito pouca ajuda de ONGs. A última vez que recebi um pacote de foi há um mês. Como sempre, continha apenas comida enlatada, por isso dependíamos de refeições preparadas em refeitórios populares. Ficamos horas na fila para pegar água. “Esta é a nossa vida”, diz al-Haddad.

Sabreen al-Atout vive com o marido e seis filhas numa tenda improvisada em al-Mawasi. “O inverno está se aproximando... não temos nenhum abrigo adequado para nos proteger da chuva. Não temos cobertores suficientes, não temos roupas de inverno e não temos como nos aquecer com qualquer tipo de aquecimento”, lamenta. A filha de 12 anos de Al-Atout, Rahaf, foi morta num atentado bombista em novembro do ano passado e a sua irmã gêmea sofreu ferimentos graves na parte inferior de ambas as pernas. “Ela precisa sair de Gaza para o resto do tratamento, mas isso é impossível, e com esse frio congelante do inverno, ela sofre muito com o impacto do ferimento, e não temos roupas nem meias para aquecer os pés”, explica al-Atout.

 

Fonte: Avvenire/El Diário

 

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