Análise:
'A prisão de torturas de Assad é a pior que já vi'
A prisão de
Saydnaya fica em um morro ameaçador, a cerca de meia hora de carro do centro da
capital síria, Damasco.
Nos últimos dias, a
entrada foi pintada de verde, branco e preto – as cores da bandeira
revolucionária da Síria. Mas a nova pintura não dissipou a atmosfera sinistra
do local.
Enquanto entrava
pelos seus portões, pensei no desespero que devem ter sentido os milhares de
cidadãos sírios que fizeram o mesmo caminho.
Estima-se que mais
de 30 mil detentos tenham sido mortos em Saydnaya, desde o início da guerra da Síria, em 2011. Eles compõem
uma grande parte das mais de 100 mil pessoas que desapareceram sem deixar
pistas, durante o regime de Bashar al-Assad – quase
todos, homens, mas também milhares de mulheres e até crianças.
Outros setores do
sistema prisional de Assad eram menos cruéis. Eles permitiam chamadas
telefônicas para casa e visitas dos familiares.
Mas Saydnaya era o
coração do regime, obscuro e apodrecido. O medo de ser transferido para lá e
morto sem que ninguém ficasse sabendo era parte essencial do sistema de coerção
e repressão do regime de Assad.
As autoridades não
precisavam contar às famílias quem havia sido encarcerado ali. Deixá-las
temendo pelo pior era outra forma de pressão.
O regime mantinha
os sírios sob ameaça constante, com o poder, alcance e selvageria das suas
diversas agências de inteligência, sobrepostas umas às outras. E com o uso
rotineiro de tortura e execução.
Eu estive em outras
prisões terríveis nos dias que se seguiram à sua liberação. Como Abu Salim, a
famosa cadeia do antigo líder da Líbia, Muammar Gaddafi (c. 1942-2011), e Pul-e-Charkhi, perto de Cabul,
no Afeganistão.
Mas nenhuma delas
era tão suja e pestilenta quanto Saydnaya. Nas suas celas superlotadas, os
homens precisavam urinar em sacos plásticos, já que o acesso a latrinas era
limitado.
Quando os cadeados
foram arrombados, os prisioneiros deixaram para trás seus trapos imundos e
pedaços de cobertores. Era tudo o que eles tinham para se cobrirem quando
dormiam sobre o piso.
Já se documentou a
tortura e execução em Saydnaya. Nos próximos meses, certamente surgirão mais
informações sobre os horrores perpetrados dentro das suas paredes, nos relatos
dos antigos detentos.
Nos corredores de
Saydnaya, é possível ver como será difícil reparar o país que Assad destruiu
para tentar salvar seu regime.
Agora que a prisão
foi aberta, como o país, ela se tornou um microcosmo de todos os desafios que
aguardam a Síria, desde a derrocada do regime de Bashar al-Assad.
·
Registro
histórico
Um dos desafios é
elaborar um registro exato de tudo o que o regime fez para suas vítimas.
Em um sinal do
quanto a Síria avançou apenas na primeira semana após a queda de Assad,
voluntários foram até a prisão para tentar preservar os registros de Saydnaya.
A papelada está
espalhada pelos escritórios e até sobre o piso de concreto do jardim da prisão.
Famílias vasculham pastas e folhas de documentação esfarrapada, tentando
encontrar um nome, uma data ou um local que eles possam reconhecer.
A desordem dos
registros é tão grande que parece que alguém tentou destruir o que acontecia
aqui, em nome da Síria de Bashar al-Assad.
Quando os ditadores
e seus seguidores caem, garantir que eles não levem a verdade com eles é uma
medida importante para construir um futuro melhor.
A musicista Safana
Bakleh ofereceu ao seu grupo de voluntários máscaras faciais e luvas de
borracha azuis, com instruções sobre como fotografar e recolher documentos.
Bakleh admitiu que
eles são amadores e assumiram o trabalho porque os grupos internacionais de
direitos humanos não estavam ali – e as provas e documentos estavam
desaparecendo.
"Mesmo se uma
única família conseguir uma resposta, dizendo que seu ente querido não está
mais aqui, que foi morto ou morreu no hospital, é o suficiente para mim",
declarou ela.
"É muito
caótico. Não sabemos onde estão as organizações internacionais que deveriam
estar documentando todo este caos."
Não é apenas
questão de famílias receberem algum consolo, pelo menos por saberem o que
aconteceu com os desaparecidos.
A questão é que, um
dia, pode haver julgamentos dos perpetradores. E aqueles documentos são as
provas.
A verdade
descoberta pelos voluntários com seus próprios olhos é chocante. Todos os
sírios sabiam que as prisões eram ruins, mas Saydnaya era muito pior do que o
esperado.
Depois de cerca de
uma hora procurando evidências nos blocos da prisão, uma das voluntárias, Widad
Halabi, retirou sua máscara facial e desabou em lágrimas.
"O que vi aqui
não é uma vida humana", declarou ela. "Imagino como eles viviam, suas
roupas. Como eles respiravam? Como eles comiam? Como eles se sentiam?"
"É terrível...
terrível. Há sacos de urina no chão. Eles não podiam ir ao banheiro, então
precisavam colocar a urina em sacos. O cheiro. Não há sol, nem luz."
"Não consigo
acreditar que pessoas viviam aqui, enquanto nós vivíamos e respirávamos na
nossa vida normal."
·
Justiça
ou vingança?
Os sírios e seus
novos governantes enfrentarão dificuldades para encontrar as pessoas que
desejam punir.
Bashar
al-Assad fugiu para a Rússia com a
família. Acredita-se que seu irmão Maher, conhecido pela violência e corrupção,
como todos os demais da sua família estendida, esteja no Iraque.
Dois primos de
Assad encontraram combatentes rebeldes, enquanto tentavam escapar para o
Líbano. Um deles foi morto no tiroteio que se seguiu, segundo a agência de
notícias Reuters.
Quando entrei na
Síria, logo após a queda do regime, centenas de carros repletos de famílias
assustadas e desapontadas, que tinham alguma ligação com o governo deposto,
formavam fila para chegar à fronteira com o Líbano e sair do país. Elas
acreditavam que ficariam em perigo na nova Síria pós-Assad.
Ao mesmo tempo, centenas
de outras pessoas dirigiam na direção oposta, desesperadas para chegar em casa.
Poderá haver, algum
dia, um processo legal para julgar Bashar al-Assad, seus familiares e alguns
dos que se armaram pelo regime. A reunião de provas seria parte deste processo.
Mas o êxodo das
últimas horas do regime e dos confusos dias e noites que se seguiram faz crer
que será difícil chegar aos responsáveis.
Na prisão de
Saydnaya, famílias vagueiam pelo edifício, desesperadas em busca de
informações, procurando as pessoas que elas perderam, horrorizadas por tudo o
que veem.
O simples fato de
estar nas celas e corredores de Saydnaya, no frio congelante de dezembro no
país, reforça o desejo generalizado de ver a punição de todos os implicados nos
crimes cometidos pelo regime de Assad.
Um grupo de homens
reunidos no jardim da prisão fuma silenciosamente. Alguns folheiam arquivos que
haviam retirado do chão. Todos aqueles com quem conversei responderam que o
futuro precisa ser construído com base na justiça pelo passado.
Os homens do grupo,
todos procurando por filhos, irmãos e primos desaparecidos, chamaram Saydnaya
de túmulo em massa.
Eles querem a
cabeça de Bashar al-Assad – literalmente. E murmuram concordando, quando um
deles comenta que ele deveria ser decapitado.
Um deles – um jovem
chamado Ahmed – declarou que sabe que o irmão que ele procura está vivo, porque
ele pode vê-lo nos seus sonhos. O próprio Ahmed havia passado três anos em
Saydnaya.
"Era muito
ruim, a tortura, a comida, tudo", ele conta. "Estávamos sofrendo."
Um homem mais
velho, chamado Mohammed Khalaf, procura seu filho Jabr desde o dia em que ele
foi arrastado da mesa de café da manhã da família por bandidos de uma das
agências de inteligência do Estado, em 2014.
"Nós somos
muitos", segundo ele. "Vieram pessoas [das cidades sírias] de
Qamishli, Hasaka, Deir al-Zour e Al Raqqa, procurando pelos entes queridos.
Milhares ainda estão nas ruas buscando filhos. Não sou o único."
Dentro de um dos
blocos da prisão, jovens de Aleppo se aquecem perto de uma fogueira que eles
acenderam em uma lata de metal. Eles queimaram velhos uniformes prisionais, que
estão espalhados por todas as celas.
Eles procuravam
irmãos que haviam sido detidos e desapareceram.
Como muitos outros
que procuram informações ou corpos em Saydnaya, os homens não têm dinheiro para
o hotel. Por isso, eles acamparam na mesma prisão onde acreditam que seus
irmãos foram detidos e, muito provavelmente, mortos.
Um dos homens de
Aleppo, Ezzedine Khalil, quer notícias de um irmão tomado pelo regime em 1º de
setembro de 2015. Aliás, todos eles sabem as datas exatas dos desaparecimentos.
"Não sabemos
se ele está vivo ou morto", ele conta.
"Se estiver
morto, eles devem nos entregar seu corpo. Eles devem nos dizer se ele está
morto. Nós só queremos saber. Nós queremos saber o que fazer em seguida."
Seu amigo Mohammed
Radwan procura um irmão e um primo, que foram detidos em 2012.
Existem rumores de
que, na noite anterior à queda do regime, 22 caminhões frigoríficos foram
trazidos à prisão para retirar corpos. Os rumores não foram confirmados, mas
Khalil e Radwan estão convencidos de que foi verdade.
Radwan parece
exausto, até que sua raiva ressurgiu. "Para onde você levou os 22
caminhões frigoríficos, seu porco?" Sua questão era dirigida a Assad.
"Todos os que
participaram deste crime e todos os que trabalharam na prisão de Saydnaya
deveriam ser levados à justiça. Todos! Até os que trabalhavam na limpeza. Todos
eles deveriam ser responsabilizados."
"Porque, se
eles sabiam o que estava acontecendo, eles deveriam, pelo menos, ter contado às
famílias dos prisioneiros que seus entes queridos foram mortos, esquartejados,
enforcados ou torturados."
Os dois homens
encerram com uma oração islâmica: "Alá nos basta; e que excelente Guardião
Ele é!"
Sua ânsia por ver
Assad e seus homens punidos pode se tornar uma das forças que irão orientar os
eventos dos próximos meses. Os sírios querem ver seus algozes punidos.
·
Corrupção
O clã Assad
estendido usava a Síria como sua conta bancária. Eles se ajudavam mutuamente
para assumir participações em negócios que pudessem gerar lucros.
Eles controlavam o
lucrativo mercado de telecomunicações e telefonia celular. E, enquanto eles
acumulavam dinheiro, os sírios lutavam para ganhar a vida em uma economia
massacrada pela guerra e drenada pelos favoritos do regime, gananciosos e
corruptos.
Os novos
governantes da Síria herdaram grandes dívidas e uma moeda quase sem valor
nenhum. Duzentos dólares equivalem a um saco plástico de lixo repleto de fardos
de libras sírias.
A corrupção se
estendeu ao sistema prisional. Vítimas e seus familiares, desesperados para
evitar passar anos em um buraco no meio do inferno, estavam prontos para pagar
muito dinheiro para serem libertados.
Hassan Abu Shwarb
passou 11 anos aguardando sua sentença de morte por terrorismo – a palavra
usada pelo regime de Assad para designar rebelião.
Homem de fala
calma, agora com 31 anos, ele nega ter, um dia, entrado para um grupo armado.
Shwarb diz que foi detido em um escritório do governo, quando reunia os
documentos necessários para solicitar um passaporte e aceitar uma oferta de
estudos no Canadá.
Seu irmão conta que
a família pagou um total de US$ 50 mil (cerca de R$ 304 mil) em propinas, em
cinco ocasiões distintas, para tentar tirá-lo da prisão. Em todos os casos, as
autoridades corruptas que haviam oferecido ajuda em troca de dinheiro
embolsaram o pagamento, sem libertar Shwarb.
Duas semanas antes
do colapso do regime, mais um juiz corrupto se ofereceu para libertar Shwarb,
por mais US$ 50 mil.
Após sua prisão,
Hassan Abu Shwarb foi detido por 80 dias em um centro de interrogatório da
inteligência militar e torturado. Entre outras lesões, os torturadores
quebraram uma de suas pernas.
Ele conta que
estava com um dos colegas de cela, um homem de 49 anos, quando ele morreu após
três dias de tortura. Os carcereiros relataram que a morte se deveu a um AVC.
Shwarb ficou
extremamente feliz por voltar para casa.
"Quando minha
mãe me abraçou depois de 11 anos, não consigo descrever a sensação", ele
conta. "Não há nada como voltar para casa e para a vizinhança."
Mas, como muitos
sírios, o otimismo de Shwarb sobre o futuro começa pela certeza de que os
líderes do regime derrubado e seus auxiliares deveriam pagar pelos atos
cometidos.
"Eles deveriam
ser punidos. Somos almas humanas, não pedras, afinal. E os que mataram deveriam
ser executados em público. Do contrário, não iremos sair disso."
"Precisamos
esquecer e seguir adiante", prossegue ele. "Esta é uma felicidade
para todos os sírios. Precisamos retornar ao trabalho e às nossas responsabilidades
para continuar."
"Precisamos
esquecer. Viramos a página. Toda a tristeza ficou para trás."
O líder do
grupo Hayat Tahrir
al-Sham (HTS),
que tomou o poder na Síria, começou a usar seu nome real – Ahmed al-Sharaa – em
vez do seu pseudônimo do tempo de guerra, Abu Mohammed
al-Jawlani. A
mudança de nome é uma mensagem para que todos olhem para frente.
As evidências indicam
que Ahmed al-Sharaa precisará priorizar a justiça para o regime deposto, se não
quiser que o caos leve as pessoas a cuidar do assunto com as próprias mãos.
O futuro é difícil
e o passado é cheio de dor. Aqui em Damasco, parece que um peso coletivo foi retirado
dos ombros de toda uma nação.
Os sírios estão
conscientes da profundidade dos seus problemas. E, para preservar o otimismo
criado pela queda de Assad, eles querem ver progresso.
Fonte: BBC News
Mundo
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