Desistiremos de revogar as
contrarreformas?
Desde o início de outubro de 2024, o governo Lula (PT)
começou a discutir um novo pacote de ajuste fiscal, que foi anunciado pelo
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, somente em 27 de novembro. Desde o
anúncio o burburinho tem sido grande. De um lado, está o mercado que ficou
“nervoso” com a proposta de isenção do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF)
para quem recebe até R$ 5 mil por mês, como fica explícito nas manchetes:
“’Dúvida no mercado é se o pacote reduz risco fiscal’, diz ex-secretário do
Tesouro” (Portal O Globo, 29/11/2024); “Dólar renova máxima histórica e fecha a
R$ 5,99 após pacote fiscal e isenção do IR; bolsa afunda” (Portal CNN Brasil, 28/11/2024).
Do outro, estão os movimentos sociais sindicais e
populares, que inclusive compõem a base social de apoio do presidente, e que
embora reconheçam a isenção como positiva para uma parte dos trabalhadores, não
concordam com as alterações que atingem a política de salário mínimo e
benefícios sociais como abono salarial. Esse descontentamento foi pontuado nas
duas notas2 lançadas, uma pela Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e outra por três centrais sindicais – Força Sindical, União Geral dos
Trabalhadores (UGT) e NCST (Nova Central Sindical de Trabalhadores).
As manifestações das centrais sindicais expuseram as
contradições das medidas econômicas, e também sinalizaram a vigilância que os
segmentos de representação da classe trabalhadora têm quando o assunto é ajuste
fiscal, já que estes ainda têm pesadelos com o ajuste fiscal implementado
durante os governos de Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019 – 2022), o qual
impactou diversas questões do mundo do trabalho. A Emenda do Teto de Gastos (EC
Nº 95/2016), as reformas trabalhista (Lei 13.467/2017) e previdenciária (Emenda
Constitucional Nº 103/2019) podem ser citadas como algumas dessas políticas.
O fato da gestão Lula (PT) ter apresentado um novo
ajuste fiscal aponta uma contradição, inclusive com sua plataforma eleitoral –
na qual criticava iniciativas similares adotadas pelos governos anteriores e,
portanto, criou a expectativa que com um governo de perfil progressista medidas
como essas nem sequer seriam aventadas e até mesmo seria possível revogar as
reformas implementadas anteriormente.
A realidade não atendeu à expectativa e após dois anos
do governo Lula, a única reversão que ocorreu, e mesmo assim, alvo de muitas
críticas, foi a substituição da polêmica Emenda do Teto de Gastos – que
estabelecia um teto (limite) para os gastos públicos do executivo federal por
vinte anos a partir de 2017, adotando como parâmetro o orçamento de 2016, o que
ao longo do tempo reduziria os investimentos do governo em políticas públicas
essenciais como saúde e educação, pela Lei do Novo Arcabouço
Fiscal (Lei
Complementar Nº 200/233).
Em relação à revogação das reformas trabalhista e
previdenciária, o que se observa é um silêncio sepulcral, diferente do que
ocorria em 2022, durante o contexto eleitoral, quando se observaram ações
coletivas com esse intuito.
·
A construção da pauta da revogação das Reformas
Ainda em julho de 2017, após a aprovação da Reforma
Trabalhista pelo governo Temer, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) lançou
a Campanha
Nacional pela Anulação da Reforma Trabalhista, com o objetivo de
interditá-la antes mesmo que entrasse em vigor no mês de novembro. Para
alcançar o intento, foi disponibilizado um abaixo-assinado em apoio a um
Projeto de Lei de Iniciativa Popular que, além de propor a revogação da Reforma
Trabalhista, também lutava pela revogação da Lei das Terceirizações (Lei nº
13.429/20174) aprovada no mesmo ano.
Em 2018, outra intervenção advinda da sociedade civil
foi a Ideia Legislativa5 Nº 108.410 – “Revogação da Reforma
Trabalhista (Lei 13.467/2017)”, proposta via portal e-Cidadania do Senado, que
foi apresentada pelo professor universitário e pesquisador da temática, Renato
de Almeida Oliveira Mucoucah, e que posteriormente se transformou na Sugestão
Legislativa Nº13/2019 (SUG 13/2019). Esta proposta tramita no Senado com a
relatoria do senador Paulo Paim (PT-RS), mas desde 14 de março de 2023 ainda
encontra-se em análise pela relatoria.
Em 2022, outras ações foram iniciadas pelo movimento
social sindical, que estava inspirado pelo caso espanhol. Naquele ano, a
Espanha tinha aprovado o Real Decreto-Lei 32/20216 que revogou
as medidas danosas efetivadas pela Reforma Trabalhista de 2012, objetivando
coibir terceirizações e os abusos nas contratações temporárias, e reorganizar a
negociação coletiva, etc.
Nesse sentido, na Conferência Nacional da Classe
Trabalhadora foi aprovada a pauta da classe trabalhadora de 2022, na qual
destacava-se a necessidade de revogar “os marcos regressivos da legislação
trabalhista, previdenciária”, ao “implementar um marco regulatório de ampla
proteção social, trabalhista e previdenciária a todas as formas de ocupação e emprego
e de relação de trabalho” (CONCLAT, 2022, p.11).
Outra iniciativa foi a elaboração da Campanha Revoga Já – pela
Revogação da Reforma Trabalhista, lançada no Fórum Social Mundial em Porto
Alegre (RS), em abril de 2022. Esta Campanha de mobilização foi iniciada pelo
Sindicato dos Advogados e das Advogadas de São Paulo – SASP, e começou a
dialogar com outras entidades do trabalho. Embora a revogação não garanta o
retorno à Lei anterior, existindo a necessidade de que seja elaborada uma outra
normativa para colocar no lugar, o slogan estabeleceu-se no
campo simbólico e chamou a atenção para a construção de uma proposta que tenha
os trabalhadores e seus anseios como protagonistas.
Tais manifestações aconteceram de modo mais sistemático
justamente em 2022, momento em que movimentos sociais estiveram aquecidos pelo
período eleitoral, devido a candidatura de Lula (PT) – apontado pelas pesquisas
de intenção de voto como o favorito na disputa e que possuía uma biografia
alinhada à luta pelos direitos dos trabalhadores, o que criaria um ambiente
mais favorável para a discussão da revogação das reformas em um provável novo
governo.
Isto vai ao encontro do que refletem alguns teóricos
dos movimentos sociais, como os cientistas políticos Davi Mcadam, Sidney Tarrow
e Charles Tilly, quando apontam que a mudança na estrutura de oportunidades
políticas pode incentivar a ação coletiva dos movimentos sociais.
Lula, inclusive, contribuiu com a criação dessa
expectativa à medida que realizou acenos que indicavam que a revogação das
reformas estava em seu horizonte administrativo. Destaco três iniciativas que
explicitam isso:
- a Diretriz 13 do
seu programa de governo, aponta a importância de “uma nova legislação
trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de
emprego e de relação de trabalho (…) revogando os marcos regressivos da
atual legislação trabalhista, agravados pela última reforma …” (Vamos
Juntos pelo Brasil, 2022);
- a visita, em março de 2022, à Lula da
ministra do Trabalho da Espanha, Yolanda Díaz, que foi uma importante
articuladora da reforma anti-neoliberal espanhola aprovada naquele ano;
- o evento “Sindicalistas com Lula”, no
mês de abril, no qual representantes das principais centrais sindicais
brasileiras também discutiram a revogação das reformas, a partir da pauta
unificada dos trabalhadores, que havia sido debatida na Conferência da
Classe Trabalhadora (Conclat, 2022) no início daquele mesmo mês.
Com a eleição de Lula (PT) em 2022 e a possibilidade da
ampliação da interação dos movimentos sociais com o governo federal, a
discussão sobre a revogação das reformas apareceu no Relatório do Gabinete
de Transição7, cujo texto apontava para a necessidade da “revisão
dos marcos regressivos das reformas trabalhista e previdenciária” (Gabinete de
Transição Governamental, 2022, p.20).
Ainda no contexto da transição entre os governos
Bolsonaro e Lula, integrantes da campanha Revoga Já se reuniram com o
“Grupo Técnico do Trabalho” do governo de transição, após solicitação de
reunião, no qual explicitaram que o foco “(…) seria a importância da construção
de uma regulação pública efetivamente integradora para o mundo do trabalho,
apta a recuperar o que se perdeu em termos de direitos e garantias nestes
últimos anos de (des)governo, em especial pela reforma trabalhista de 2017”
(Página da Campanha Revoga Já no Facebook, 2023).
Por mais que parecesse que os passos da dança pela
revogação estivessem acertados entre governo e movimentos sociais sindicais,
logo no início da gestão de Lula o descompasso ficou evidente através de um
ruído entre membros do governo. Quando o ministro da Previdência, Carlos Luppi
(PDT), afirmou que criaria “uma comissão tripartite com representantes
patronais, de empregados e do governo para estudar uma possível revisão da
reforma da Previdência (…)” (Portal Poder 360, 01/01/ 2023), foi
contraditado pela declaração à imprensa de Rui Costa (PT), ministro da Casa
Civil: “Não tem nada em pauta, nenhum estudo sendo feito sobre reforma de
Previdência ou revisão de reforma. Não está nem sendo pensado nisso, muito
menos analisado em um documento” (Portal Uol, 04/01/2023).
Em outubro de 2023, durante uma participação em uma
sessão na Comissão de Assunto Sociais (CAS) do Senado Federal, Luppi voltou a
tocar no assunto, e afirmou que o Conselho Nacional da Previdência Social
(CNPS) analisaria, em 2024, a revisão da Reforma da Previdência (Portal CNN,
24/10/2023), sobre a qual ainda não se teve notícias.
Desse modo, dois anos após o início do atual governo, a
revogação das reformas parece não estar mais no horizonte das prioridades – nem
do governo, muito menos do Congresso Nacional. Pontuo dois fatores que podem
ser aventados como justificadores para isso.
O primeiro diz respeito à composição do Congresso
Nacional que continua, em sua maioria, alinhada aos interesses econômicos
patrocinadores de tais reformas. O grupo econômico, formado por aqueles
parlamentares que desempenham atividades de empresário, produtor rural ou
comerciante, é o maior com 186 parlamentares , sendo que a bancada sindical é composta
por apenas 41 congressistas (DIAP, 20238). Nesse sentido, há pouca
ou nenhuma intenção de propor qualquer projeto na direção de anulação dessas
reformas.
O segundo fator, relacionado ao primeiro, é que o
governo Lula também parece não querer mexer nesse vespeiro, já que não possui
maioria nas casas legislativas federais, tendo uma base de apoio bastante
flexível, que se posiciona a favor ou contra o governo a depender da pauta a
ser debatida.
Nos primeiros anos do Lula III, no que concerne aos
direitos dos trabalhadores, o foco esteve na elaboração de propostas de
legislação para regulamentar o trabalho por aplicativos, a igualdade salarial e
critérios remuneratórios entre mulheres e homens (Nº 14.611/2023), e a Política
de Cuidados (Lei Nº 2.762/2024).
·
Reaquecendo a pauta pela revogação nesse novo contexto
político
No campo dos movimentos sociais, tentando reaquecer
este debate, entidades sindicais filiadas à CUT organizadas no Comitê Nacional
de Sindicatos pela revogação das Reformas, lançaram em setembro a Carta Manifesto dos
1.0009,
como parte de um conjunto de ações da mobilização nacional para pressionar o
governo pela revogação do governo.
A carta direcionada ao presidente, ao Congresso
Nacional e ao STF, exige a revogação das reformas da previdência, trabalhista e
também da lei das terceirizações.
Nesta, explicitam as consequências que os trabalhadores
têm sofrido após anos de vigência das referidas reformas, com a redução de
salários, a retirada de direitos e os ataques às aposentadorias e pensões. No
documento, também sinalizam como novas legislações que estão tramitando (a
exemplo da PEC 66/23) podem aprofundar esse processo de negativa de direitos.
Na carta-manifesto, que até o dia 29 de novembro já
contava com 920 assinaturas de acordo com informações do perfil do Instagram
@revogareformas, também é lembrado que “a luta pela revogação dessas medidas
esteve presente na motivação do voto e no próprio discurso do candidato Lula
para derrotar nas eleições o bolsonarismo e sua política, mas até o agora, o
governo não apresentou nenhuma iniciativa para que estes retrocessos sejam
revogados” (Carta Manifesto dos 1.000, 2024).
Os manifestantes sinalizam, ainda, que esta resistência
havia sido retomada durante a Marcha da Classe Trabalhadora à Brasília,
realizada em 22 de maio de 2024 com o tema “Dignidade para quem faz o estado”.
Organizada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), a marcha reuniu 20 mil
trabalhadores na capital federal.
Além da marcha, entre as atividades da programação,
teve uma aula pública sobre a revogação das reformas trabalhistas e
previdenciárias, e o fim da lei das terceirizações, organizada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE).
Para 2025, o grupo de sindicalistas organizador da
carta-manifesto elenca algumas estratégias para a divulgação e debate da pauta,
tais como: a entrega da carta para o governo federal, Congresso e Tribunal
Superior Federal em março, a realização de um seminário e um ato político, além
da elaboração de material, ainda não especificado, no qual será apresentado à
população como os trabalhadores foram afetados pelas políticas de austeridade.
Diante dessa recente mobilização que ainda está muito
concentrada no movimento sindical, que tem apostado em estratégias de ação
coletiva tradicionais e numa interação colaborativa com o sistema político, é
importante acompanhar se a pauta da revogação das reformas se consolidará na
agenda pública seja no parlamento, no Supremo Tribunal Federal, e
principalmente no governo federal com a gestão de Lula, que havia assumido esse
compromisso durante a campanha.
O grande desafio para os movimentos sociais parece ser
que esta reivindicação saia das direções sindicais e ganhe aderência junto à
massa de trabalhadores, assim como consiga adesão de outros tipos de movimentos
sociais como o de mulheres, trabalhadores por aplicativo, negros. Entretanto,
sabe-se que o diálogo com as bases está cada vez mais complicado, porque com as
alterações feitas pela própria reforma trabalhista houve um enfraquecimento da
organização sindical.
Além de existir, a construção de um senso comum,
ideologicamente orientado e alimentado diariamente pelas mídias corporativas,
que difunde que os sindicatos não estariam conseguindo dialogar com as bases
por estarem demodê em relação às
bandeiras que defendem e aos anseios reais dos trabalhadores, pois segundo essa
narrativa, os trabalhadores do século XXI não teriam mais interesse em leis
garantidoras de direitos como a CLT e, sim, estariam mais afinados com a ideia
do empreendedorismo.
Nesse sentido, é urgente que os movimentos sociais
consigam retomar no âmbito social e entre a classe trabalhadora a narrativa dos
direitos trabalhistas, como sinônimo de dignidade humana, para que deixem de
ser vistos como privilégios, e portanto dispensáveis.
No Brasil, este talvez seja um momento fértil para
pautar a revisão das reformas, haja visto a forte discussão pelo fim da jornada
6×1 que surge a partir da mobilização social do movimento VAT (Vida Além do
Trabalho). Originalmente divulgado na rede social TikTok, a proposta ganhou
espaço na Câmara dos Deputados através de um Projeto de Emenda Constitucional10 que
visa reduzir a jornada de trabalho para quatro dias por semana no Brasil, de
iniciativa da deputada federal Erika Hilton (Psol). A pauta conseguiu coro nas
redes sociais e nas ruas, com a realização, inclusive, de protestos presenciais
a nível nacional no último dia 15 de novembro.
A repercussão dessa pauta se dá porque além da sua
incontestável importância, é a primeira vez, nos últimos oito anos, que os
trabalhadores conseguem se mobilizar por uma reivindicação pedindo avanço nos
direitos trabalhistas, já que desta vez não estão fomentados pela lógica
defensiva, na qual a luta é contra a ameaça de perder direitos conquistados,
mas sim de conquistá-los.
Fonte: Por Andressa
Brito Vieira, em Outras Palavras
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