“A memória brasileira é uma memória branca”, diz Laurentino
Gomes
Se um extraterrestre pousasse no Brasil e se baseasse
apenas em livros escolares, filmes e livros clássicos, provavelmente pensaria
que o país é majoritariamente branco e que a escravidão aqui, diferentemente de
outros lugares, não teria sido tão ruim assim.
É o que se vê, por exemplo, em Orfeu negro, vencedor do Oscar
de melhor filme estrangeiro em 1960, a Palma de Ouro em Cannes e o Globo de
Ouro. Protagonizado por atores negros, o filme levou ao resto do mundo a ideia
de que o Brasil seria uma “democracia mestiça”. E no livro Casa-grande &
senzala,
provavelmente o mais influente sobre a escravidão no Brasil, Gilberto Freyre
defende que a sociedade brasileira é fundada na miscigenação entre brancos,
negros e indígenas.
Mas é só viver um pouquinho nestas terras para a imagem
de um país sem conflitos raciais cair por terra. Na verdade, a história
brasileira é fundada em conflitos e opressão, como mostram as reportagens
do Projeto Escravizadores, da Agência Pública. O Brasil teve o
maior contingente de escravizados das Américas (quase cinco milhões de pessoas)
e foi o último a abolir o sistema, sem nenhuma política de inclusão daquelas
pessoas à sociedade. O resultado é um dos países mais desiguais do mundo, no
qual o número de pretos vivendo na pobreza é o dobro do de brancos, e em que seis em cada dez negros
alegam ter sofrido racismo no ano passado.
O descompasso com a realidade se deve ao fato de a
história da escravidão no Brasil ter sido manipulada e romantizada, fruto de um
“projeto nacional de esquecimento”, defende o jornalista e escritor Laurentino
Gomes, autor da trilogia Escravidão. “Tem um ditado
africano que diz que, enquanto o leão não aprender a escrever, a história será
contada pelo caçador. E nós aprendemos a versão do colonizador branco”, afirma.
Para ele, o Brasil ainda não deu certo porque nunca
refletiu verdadeiramente sobre suas raízes escravocratas, e que é só discutindo
esse passado doloroso que, um dia, o Brasil poderá se tornar mais justo. “É um
chamado à realidade, para a gente não levar adiante esse projeto nacional de
autoengano, que só complica a construção do futuro do Brasil”, afirma.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Por que, na sua visão, a escravidão no
Brasil ainda é pouco estudada e vista como um assunto “menor”?
Eu acho que nós temos no Brasil um projeto nacional de
esquecimento. Não só de esquecimento, mas de manipulação deliberada da
história. A memória pode ser uma ferramenta de construção de um projeto de
poder, de justificar a submissão de um grupo de seres humanos pelo outro. O
Brasil formou o maior território escravista do hemisfério ocidental. Cerca de
40% de todos os africanos que vieram para a América tiveram como destino o
Brasil. E foi o último país a acabar com a escravidão.
Então, criou-se uma mitologia muito forte, segundo a
qual, primeiro, a nossa escravidão seria gentil, patriarcal. Uma escravidão em
que nós nos misturamos muito pela miscigenação. Então, a escravidão não seria
tão violenta quanto nos Estados Unidos, quanto no Caribe.
·
O que é uma balela, certo?
A escravidão brasileira foi violentíssima, tanto quanto
em qualquer outro território escravista. O meio de manter milhões e milhões de
pessoas submissas no cativeiro foi o chicote. O chicote ou aquela infinidade de
instrumentos de tortura, que incluíam correntes, argolas, torniquetes, uma
coisa absurda. Mas essa mitologia de que a escravidão brasileira foi boazinha e
patriarcal, que é muito forte no livro Casa-grande & senzala, do Gilberto
Freyre, tem origem em uma outra mitologia que é a chamada democracia racial
brasileira. Como se não tivéssemos um problema racial, o que não é verdade.
O Brasil é um dos países mais segregados do mundo. E
isso se reflete na escola. Até recentemente, nos currículos escolares, a
escravidão era um não assunto. Se eu passei pela Lei Áurea até o ensino médio,
foi muito. Eu só realmente entendi a escravidão quando comecei a trabalhar
profissionalmente nesse assunto, como pesquisador. A gente finge que não
aconteceu. Temos uma visão de “vamos olhar para o futuro, o passado já acabou”.
Acho que um dos frutos da democracia no Brasil é
justamente rever o passado. Mas isso, para mim, é uma grande notícia, porque
vai nos tornar um pouco mais maduros, um pouco menos infantilizados ao olhar as
nossas raízes e criar mitos a respeito do que nós gostaríamos de ter sido, mas
não fomos. A elite brasileira, com raríssimas exceções, de direita, a esquerda
e o centro, é de senhores de escravizados.
Todos nós, no Brasil, temos a ver com a escravidão,
porque ou somos descendentes de pessoas escravizadas, no caso dos indígenas e africanos,
ou somos descendentes de escravizadores, e aí a imensa maioria dos brancos, ou
descendentes de imigrantes, que é o meu caso, por exemplo, que chegaram ao
Brasil para substituir a mão de obra escravizada depois da abolição. Por isso
que eu fico feliz com essa série de vocês [Projeto Escravizadores]. É um chamado à realidade, para a gente
não levar adiante esse projeto nacional de autoengano, que só complica a
construção do futuro do Brasil.
·
Por que isso acontece?
A gente recebe a versão do caçador. No primeiro volume
de Escravidão, eu cito um ditado
africano que diz que, enquanto o leão não aprender a escrever, a história será
contada pelo caçador. Nós aprendemos a versão do colonizador branco, que não
conta a história da escravidão com todos os seus horrores, os seus números, a
sua extensão. Essa história foi sonegada até muito recentemente nos livros
escolares e nas salas de aula. E, quando foi contada, era romantizada pelo
olhar branco. Então, mesmo as obras abolicionistas mais importantes acabam
tendo um viés branco, um olhar do branco que tenta redimir, entre aspas, uma
raça oprimida.
O verdadeiro herói é o branco, não é o negro. O agente
da justiça, o agente da transformação, não é o negro, é o branco. O movimento
abolicionista tem esse viés. Nas obras do Joaquim Nabuco, por exemplo, tem uma
denúncia forte da escravidão, muito boa, uma documentação histórica muito preciosa.
Mas o protagonista é o branco. Dos quatro principais abolicionistas
brasileiros, três eram negros. São eles: Joaquim Nabuco, Luis Gama, André
Rebouças e José do Patrocínio. Hoje o Joaquim Nabuco, que era branco, tem uma
proeminência muito maior do que os outros três negros.
·
Desde que começamos a publicar as
reportagens do Projeto Escravizadores, uma das coisas que a gente mais escuta
é: “Mas por que mexer nisso? As pessoas de agora têm que pagar pelos erros do
passado?”
Existe um pacto que se associa a “eu não escravizei
ninguém”. Mas, se os seus antepassados escravizaram, você tem uma
responsabilidade de olhar para o passado, porque a escravidão tem consequências
no presente. Se o Brasil é hoje um dos países mais desiguais do mundo, e
pobreza no Brasil é sinônimo de negritude, significa que a escravidão não é um
assunto encerrado e congelado no passado, é uma realidade presente no Brasil de
hoje. E, se ela é hoje o nosso principal desafio, a nossa desigualdade social
resultante da segregação racial, nós temos que olhar para o passado e entender
que a elite brasileira tem uma licença no sistema escravista, fica mais fácil
entender o Brasil de hoje e melhor para construir o Brasil do futuro também.
Nós temos relações escravistas nas relações do Estado, no
comportamento do Estado, no comportamento privado. Nós somos um povo com raízes
escravistas, a nossa elite é, infelizmente o nosso povo também é. Então, a
melhor coisa que a gente faz é olhar para o passado e assumir que esse passado
não deixou de existir, não evaporou. É uma realidade presente hoje nas ruas, na
cidade, no campo. É só olhar e você vê a herança da escravidão.
·
O que o senhor acha sobre medidas de
reparação de justiça social? O que deveria ser feito?
Sou a favor. O Brasil teve uma ditadura militar durante
20 anos. Depois nós tivemos uma Comissão da Verdade que apurou os crimes
cometidos pela ditadura e recomendou uma série de medidas. Pouquíssimas foram
adotadas e, em razão disso, a impunidade no meio militar continua até hoje.
Isso explica o golpismo do meio militar durante o governo Bolsonaro, porque
nunca houve a devida responsabilização. Isso vale para a escravidão também.
As consequências da escravidão continuam presentes
entre nós e impedindo que o Brasil se torne um país democrático de fato, e rico
e desenvolvido e justo. Então, é muito importante que não apenas nós olhemos o
passado, tiremos lições, assumamos responsabilidades pelo que aconteceu, mas
que, na medida do possível, com políticas públicas adequadas, nós tomemos
providências. Existem inúmeras maneiras de fazer isso. Uma delas são as
chamadas políticas de reparação, especialmente a política de cotas.
Existe um nível de pobreza no Brasil que está
principalmente associado à cor da pele, em que a pessoa sozinha não consegue se
promover. A pessoa que está mergulhada na miséria, que faz parte de uma família
que não tem condições de moradia, educação, saúde e oportunidades adequadas,
ela não vai conseguir se promover sozinha. Nós temos que apoiar a lei de cotas
pelo seu aspecto simbólico – é a primeira vez que o Brasil tenta corrigir a sua
herança escravocrata –, mas também porque ela dá resultados. As estatísticas
mostram que tem aumentado o número de estudantes, mestres, doutores, diretores,
altos funcionários da organização pública, negros.
O correto seria que todos os brasileiros tivessem
condições iguais de competir pelas melhores oportunidades na vida adulta, mas
isso não existe. Então, a política de cotas e outras políticas de reparação,
como, por exemplo, o Bolsa Família, tentam corrigir no meio um processo que
está viciado na sua origem. Mas não pode ser permanente. Se daqui a 500 anos a
gente tiver ainda política de cotas e reparação, significa que nós falhamos
totalmente.
·
Então, o senhor acha que existe a
possibilidade de algum dia o Brasil ser uma nação mais igualitária, e a única
maneira de chegar nisso é por meio dessas políticas de cotas e reparação?
Eu acho que sim. Por incrível que pareça, sou otimista.
Embora tenha me debruçado sobre um período muito sombrio da história do Brasil,
eu acho que nós temos uma grande novidade em andamento, que são 40 anos de
democracia. Porque tudo o que nós vimos até o fim da ditadura militar foi uma
continuação de um projeto de submissão, de exploração de uma parte da imensa
maioria do povo brasileiro por uma elite muito pequena, muito branca, que
dominava todo o aparato do Estado, todas as oportunidades também na área
privada, e não permitia que os demais brasileiros sequer se manifestassem,
participassem politicamente na construção do futuro. A democracia está mudando
isso.
Não é à toa que esteja se tornando mais comum discutir
as nossas raízes, a corrupção, a violência, a escravidão, a misoginia
brasileira. Persistir na democracia é a única maneira de fazer com que esse
país, no futuro, seja mais justo e mais igualitário.
·
Para as matérias do projeto Escravizadores,
nós conseguimos traçar com certa tranquilidade a genealogia da elite branca.
Mas dos negros e indígenas não tem praticamente nada de registros oficiais.
Como você fez a sua pesquisa? Teve que se basear em relatos orais?
O Brasil é um país branco do ponto de vista da
documentação histórica. Se você quiser construir a minha árvore genealógica ou
a sua, é fácil. Tem registro em cartório, certidão de nascimento, casamento,
óbito. No caso da escravidão, não.
O africano era arrancado de suas raízes e passava por
um processo de morte social, como disse o pesquisador de Harvard Orlando
Patterson. Ele tinha que trocar de nome, religião, chegava até a ser marcado a
ferro quente, como um animal. Ele nunca mais tinha contato com a sua cultura,
sua família, sua língua, suas crenças religiosas. Um processo completo de
desenraizamento. Isso incluía a documentação, que não existia. E boa parte da
documentação que existiu foi mandada incinerar pelo Rui Barbosa, depois da
proclamação da República.
Para pesquisar sobre essas pessoas, você tem pouca
documentação, algumas certidões de batizado nas igrejas, nas irmandades
religiosas negras, em documentação de compra e venda de pessoas escravizadas,
inventários. Mas essa documentação está sempre corrompida. Porque, geralmente,
quando o africano chegava ao Brasil, era obrigado a adotar o nome do seu senhor
ou da região da África de onde ele vinha. Depois que eu terminei a trilogia,
recebi muitas mensagens de pessoas negras que me pedem ajuda para recuperar
suas raízes. Eu respondo que, infelizmente, não consigo ajudar. É muito difícil
recuperar essa memória. A memória brasileira é uma memória branca.
·
Nos últimos anos, a gente tem percebido que
muitas pessoas passaram a se identificar como negras, a procurar entender o seu
passado. E isso acontece em um momento de levante conservador em todo o mundo.
É um contrassenso?
Acho que o que nós estamos vendo hoje no Brasil e no
mundo é um tipo de pororoca. Tem uma onda que volta e tenta encobrir o rio, mas
o rio é bem grande. Há o nascimento de uma nova consciência de gênero, classe,
racial, um mundo mais conectado, com democratização da cultura, da informação,
do entretenimento. E há uma reação das elites conservadoras que não aceitam a
mudança em curso.
Hoje, há grupos sociais se posicionando e discutindo
abertamente e pressionando por políticas públicas novas, por comportamentos
novos. Isso no passado não era permitido. Mas eu acho que é impossível de
conter a mudança. Hoje nós vivemos num ambiente de muita pluralidade, de uma
transformação na consciência cívica das pessoas. Isso vai gerar mais resultados
no longo prazo do que uma reação conservadora, que eu acho que é conjuntural, é
momentânea.
·
Então não tem como a gente retroceder tanto
a ponto de perdermos a democracia?
Acho que não, mas esse processo não é linear. O
ex-presidente Barack Obama falou numa entrevista, logo depois da eleição do
primeiro mandato de Donald Trump, que a democracia é uma linha em zigue-zague.
A gente avança, retrocede, tenta de novo, erra, aí, depois, acerta. A Alemanha
nazista, por exemplo, aconteceu num dos países mais avançados da Europa em
termos de ciência e cultura. Podem haver retrocessos momentâneos, como está
havendo, mas, no longo prazo, a justiça e a democracia vão prevalecer.
Eu tenho 68 anos, o mundo que eu sonhava não aconteceu.
Mas, ainda assim, sou otimista. Não acho que o futuro do Brasil seja de
opressão e de ditadura. Acho que é o contrário. Acho que estamos caminhando e
persistindo na democracia.
Fonte: Por Amanda Audi, da Agência Pública
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