Não há saúde mental
sem direito à moradia digna
O aumento do número
de pessoas em situação de rua é evidente para aqueles que se recusam a
invisibilizar essas pessoas e as ruas. Nos últimos anos — especialmente após a
pandemia — o Brasil voltou a se deparar com cenas de famílias inteiras vivendo
em situação de rua. O que se observa ao circular pelas cidades é confirmado
pelos dados: segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos, do
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (ObservaDH), o número de pessoas em situação de rua
inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) praticamente dobrou entre 2018 e 2023,
passando de cerca de 116 mil para 221 mil. Estudo recente do Observatório de
Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal
de Minas Gerais (OBPopRua) aponta que, em
2024, o número já ultrapassa 300 mil.
Essa realidade se
concentra, sobretudo, nas capitais e grandes metrópoles brasileiras. Para se
ter uma ideia, segundo o OBPopRua, das 300 mil pessoas em situação de rua, 126
mil estão no estado de São Paulo, sendo que cerca de 80 mil vivem nas ruas do
município de São Paulo.
Saber-se bem, como
reitera o ObservaDH, que o perfil predominante das pessoas em situação de rua é
composto por homens (88%), negros (68%) e adultos (57%). Entre os principais
motivos que as levam a essa condição estão problemas familiares (44%),
desemprego (38%) e o uso de álcool e outras drogas (28%). A maioria (60%) está
em situação de rua há menos de dois anos.
Mas o que mais
sabemos sobre as pessoas? Especificamente, o que sabemos sobre a saúde mental
das pessoas que estão nas ruas?
Os dados variam. De
acordo com o ObservaDH, 18% delas têm problemas de saúde mental. Já o Censo Pop Rua 2022, realizado em Belo
Horizonte, indica que esse percentual é de 57%. Em São Paulo, o Censo de 2019 apontou que
29% das pessoas declararam ter “depressão” ou “alguma doença dos nervos” ao
serem questionadas sobre isso – o que, diga-se de passagem, é um número até
baixo, dada a forma genérica da questão: viver nas ruas, dormir pouco e em
constante estado de alerta, enfrentar longas filas para se alimentar ou
conseguir uma vaga em albergues, além de sofrer diversas formas de violência,
inevitavelmente mexe com os “nervos”. Os dados sobre uso de álcool e outras
drogas também são imprecisos, ainda que saibamos que, por variados motivos, o
consumo é expressivo.
Podemos levantar
várias hipóteses para tamanha divergência nos dados, que vão da negligência no
cuidado com essa população à elasticidade dos diagnósticos psiquiátricos como
explicação simplificada do sofrimento e complexidade da vida. Porém, mais
relevante do que a precisão estatística é o fato de que a moradia é um
determinante social essencial para a saúde mental — algo amplamente evidenciado
em pesquisas e que nos demanda dar uma resposta pela saúde mental para a
superação da situação de rua.
Moradia e saúde
mental
Em 2014, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um documento que discute a
relação entre determinantes sociais e saúde mental. Nele, a existência de
condições dignas de moradia é mencionada como fator-chave para promover saúde
mental. Em 2022, em novo documento, a OMS apresenta
evidências ainda mais concretas do nexo entre moradia e saúde mental. Para
citar algumas delas, estudos mostram que a estabilidade habitacional contribui
para maior organização pessoal, um importante indicador de saúde mental. Para
pessoas com problemas de saúde mental, assegurar a moradia revelou-se um fator
protetivo contra a mortalidade – precoce e por suicídio – mais eficaz do que
qualquer outro serviço prestado. Além disso, em países de diferentes níveis de
renda, a prevalência de problemas de saúde mental é consistentemente maior
entre pessoas em situação de rua em comparação com a população geral.
Portanto, há um
ciclo evidente entre moradia e saúde mental: moradias dignas promovem bem-estar
e saúde mental, enquanto condições precárias de moradia e a ausência de moradia
relacionam-se com o sofrimento.
A formulação dessa
questão nesses termos não é exatamente uma novidade. É preciso recordar que, na
história da saúde mental no Brasil, o reconhecimento de que a garantia do
direito à moradia é fundamental para o cuidado de pessoas em sofrimento está
posto, tendo sido estabelecido como uma necessidade a ser atendida pelas
políticas públicas. O exemplo mais notável que temos é da volta para casa de
pessoas internadas por longos períodos em hospitais psiquiátricos. Muitas vezes
chamadas de “moradores de hospitais psiquiátricos” – quando um hospital
psiquiátrico não é e nunca poderia ser moradia –, para essas pessoas foi
assegurado o direito a uma casa para a vida em liberdade, seja pela reinserção
familiar, seja pelo ingresso em um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), que
garante moradia digna na comunidade.
O fato é que o
fechamento de hospitais psiquiátricos e a substituição por serviços de saúde
mental abertos e comunitários – um eixo fundamental da reforma psiquiátrica
brasileira – exigem a garantia do direito à moradia.
Podemos ir além. Na
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foram inventados outros serviços, como as
Unidades de Acolhimento Adulto e Infantil (UAA e UAI), para buscar responder,
ainda que temporariamente, à necessidade de moradia – aqui das pessoas com
necessidades relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. E nas ações cotidianas
de serviços de saúde mental, o desenvolvimento de estratégias de reabilitação
psicossocial como cidadania, tal como formulado na proposta de Saraceno1,
envolve a construção de caminhos do cuidado e ampliação do poder nos contextos
de moradia e das relações sociais.
Portanto, a relação
entre moradia digna e cuidado em saúde mental é questão amplamente reconhecida:
reiterada por organismos internacionais, comprovada por pesquisas e abordada,
ainda que requeira melhorias, enquanto necessidade das pessoas pela criação de
serviços públicos. No entanto, talvez nem fossem necessárias tantas palavras e
dados para sustentar esse argumento. Qualquer trabalhador de saúde sabe, a
partir da prática cotidiana, que pode ser muito difícil e complexo cuidar de
pessoas em situação de rua ou que vivem em condições de moradia extremamente
precárias e indignas. Muitas vezes, o principal desafio não reside na
complexidade clínica de um problema de saúde mental ou de uso de álcool e
outras drogas, mas na ausência de um elemento básico: a garantia de moradia
para possibilitar um cuidado adequado e contínuo.
Saída das ruas,
entrada no cuidado: o direito à moradia
É justamente para
responder a esse desafio que são desenvolvidos programas do tipo “Moradia
Primeiro”. O Moradia Primeiro (ou Housing First) é uma estratégia criada
nos anos 1990 por Sam Tsemberis, em Nova Iorque, partindo da ideia de que é
preciso superar o desenho etapista de políticas públicas em que uma pessoa em
situação de rua precisaria, por exemplo, primeiro frequentar serviços de saúde
mental para depois ter acesso à moradia. O Moradia Primeiro é o que o nome
anuncia: primeiro, o direito à moradia – uma moradia permanente, segura e
integrada à comunidade. A partir desse direito assegurado constrói-se com a
pessoa o percurso de cuidado e de acesso a outros tantos direitos – e vale
mencionar que a OMS aponta essa estratégia como o caminho a seguir pelos seus
ótimos resultados.
No Brasil, o
Programa Moradia Cidadã, inspirado no Housing First, foi criado em 2023
como parte do Plano Ruas Visíveis, uma resposta à
ADPF 976 do Supremo Tribunal Federal. Em 2024, a Portaria nº 453 instituiu o
projeto-piloto do programa, com foco em pessoas em situação crônica de rua
(três anos ou mais vivendo nas ruas) e com problemas de saúde mental e/ou
necessidades relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. Apesar de
importante, a iniciativa ainda é tímida frente à realidade de 300 mil pessoas
em situação de rua no país.
Certamente é
preciso fazer mais – e dá para fazer.
Considerando o
vínculo entre saúde mental e moradia, é importante que a resposta para essa
necessidade envolva também as áreas da saúde e da saúde mental, além da
assistência social e justiça em uma ação intersetorial. A instauração, pela
Portaria nº 5453/2024, do Grupo de Trabalho no âmbito do Ministério da Saúde
para “qualificar o componente IV – Atenção Residencial de Caráter Transitório
da Rede de Atenção Psicossocial” é uma ótima oportunidade para isso, já que irá
tratar de residencialidade. Cruzar forças com a proposta do Moradia Primeiro
pode ser um bom caminho para garantir cuidado e direitos e, quem sabe, pode
gerar ideias para o desenho de uma estratégia de enfrentamento do problema
crescente das comunidades terapêuticas no Brasil que, tantas vezes, acabam se
apresentando no lugar de responder ao problema da falta de moradia – e se
hospital psiquiátrico não é um lugar de moradia, comunidade terapêutica
tampouco é.
Por fim, avançar na
construção dessas respostas desde a saúde mental faz sentido na história da
reforma psiquiátrica brasileira. A afirmação da liberdade primeiro, bandeira de
luta da saúde mental, demanda como resposta o direito à moradia primeiro.
Trata-se, então, de continuarmos de maneira inventiva essa história, fazendo
aquilo que a RAPS precisa fazer: inventar estratégias e serviços para responder
às necessidades reais das pessoas. Este pode ser um bom caminho para irmos além
das propostas de reabilitação psicossocial focada nas pessoas para, como vem
reformulando Saraceno2, reabilitarmos a cidade para que dela participem todos –
tendo uma casa para onde voltar.
Fonte:
Por Cláudia Braga, para a coluna Cuidar das pessoas. Cuidar das
cidades
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