Por que ainda tem
tanta gente em manicômios judiciários 2 anos após Justiça mandar fechar todos
Manoel, de 54 anos,
comemora poder usar tênis com cadarços pela primeira vez em mais de uma década.
Internado por 14
anos e 7 meses, ele deixou as restrições do Complexo Médico Penal (CMP)
do Paraná, em Pinhais, para
viver em uma residência terapêutica em Curitiba.
Manoel, que teve o
nome real preservado assim como outros internos citados na reportagem, foi
diagnosticado com transtorno bipolar aos 19 anos.
Em 2009, ele recebeu uma medida de segurança após tentativa de homicídio de um
familiar.
Desde 2016, ele já
tinha um laudo psiquiátrico que indicava que poderia fazer acompanhamento sem
estar recluso, mas só foi transferido neste ano.
Ele ficou oito anos
em "condição asilar" — como se chama quando alguém permanece em uma
instituição psiquiátrica mesmo após ter indicação de alta — porque perdeu o
contato com a família e não tinha para onde ir.
Em 2021, a
Defensoria Pública do Paraná entrou com uma ação argumentando que ele estava
ilegalmente privado de sua liberdade.
Manoel ganhou o
processo e uma indenização de R$ 30 mil.
Outras 1,75 mil
pessoas continuam internadas em hospitais de custódia, também conhecidos como
"manicômios judiciários", no Brasil, mesmo após uma resolução do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) determinar
o fechamento deste tipo de instituição, em fevereiro de 2023.
A norma do CNJ
busca se alinhar à Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, que mudou o modelo de
assistência a pessoas com transtornos psiquiátricos no Brasil.
"Ou seja, o
Judiciário está tentando agora se adequar a uma lei que já tem duas
décadas", explica a psiquiatra forense Emi Mori.
Essa foi uma
conquista da mobilização que busca há algumas décadas acabar com a internação em
manicômios.
O movimento
antimanicomial defende direitos de pessoas em sofrimento mental e advoga pelo
fim da lógica de manicômios, com internações prolongadas e privação da
liberdade de pacientes, nos cuidados em saúde.
Hoje, pessoas nesta
situação que cometem crimes e são presas por isso, se são consideradas
inimputável pela Justiça — ou seja, incapazes de responder por seus atos —
recebem, em vez de uma pena, uma medida de segurança.
Ou seja, são
internadas nos hospitais de custódia, para receber tratamento.
A decisão do CNJ
determina que estas pessoas devem passar a ser atendidas em unidades da rede de
saúde pública em vez de manicômios, ressalta Mori.
A mudança busca
reduzir internações prolongadas e incentivar o acompanhamento ambulatorial
sempre que possível.
Mas o fim dos
manicômios judiciários no Brasil ainda está longe de ser atingido, passados
quase dois anos da decisão na Justiça.
O CNJ determinou
inicialmente um prazo de um ano para o fechamento de unidades penais com
características hospitalares.
Segundo dados do CNJ, só quatro Estados
cumpriram a determinação até agora — Ceará, Goiás, Mato Grosso e Piauí.
Alguns Estados,
como São Paulo, onde estão mais da metade de todos os internos, pediram o
adiamento do prazo do CNJ.
Um dos entraves
para o fim dos manicômios judiciários é o impasse sobre quem vai assumir o
cuidado destes internos, que perderam muitas vezes o vínculo com qualquer
pessoa do lado de fora.
O embate foi
capturado pela polarização política e acabou indo parar no Supremo Tribunal
Federal (STF).
Quem defende o fim
dos manicômios diz que o tratamento oferecido nestes lugares não ajudam os pacientes
e que eles vão ser melhor atendidos em unidades especializadas da rede de saúde
pública.
Aqueles que são
contra avaliam que o Sistema Único de
Saúde (SUS) não
vai dar conta de atender essa demanda.
Críticos da medida
também afirmam que, com o fim dos manicômios, os internos não vão receber o
tratamento que precisam e que "criminosos perigosos" vão ser
colocados nas ruas, o que colocaria outras pessoas em risco.
·
'Na
prática, pouca coisa mudou'
Hoje, ainda existem
28 manicômios judiciários em funcionamento no país.
O Paraná, por
exemplo, onde Manoel passou mais de um quarto da vida internado em um local
assim, tem 150 pessoas no Complexo Médico Penal, no momento.
Este é o único
hospital de custódia do Estado, que é o segundo com maior número de pessoas que
cumprem medida de segurança no país.
Pelo menos 16, já
receberam alta, mas continuam no manicômio. A Defensoria já protocolou por este
motivo 25 pedidos de indenização contra o Paraná, que foi condenado cinco vezes
— o caso de Manoel foi um deles.
"Essas pessoas
continuam detidas por falta de acolhimento adequado fora do sistema
prisional", relata a psicóloga Nayanne Costa Freire, que participa de um
programa da Defensoria Pública para reintegração de pessoas em condição asilar.
Freire aponta
problemas graves na assistência dentro do CMP do Paraná.
"As pessoas
ficam isoladas, sem acesso a familiares ou a tratamentos adequados. É um
sistema insalubre", diz Freire.
Desde 2020, o
programa da Defensoria retirou 97 pessoas do Complexo Médico Penal do Paraná.
"Conseguimos
localizar parentes de várias pessoas", explica Freire.
"Para aquelas
sem acolhimento familiar, buscamos alternativas em instituições de longa
permanência, residências inclusivas ou serviços de albergagem."
A psicóloga relata
que os pacientes recebem um tratamento padrão que desconsidera suas
necessidades particulares.
"É comum o uso
de medicamentos como o haloperidol, apelidado de 'injeção de entorta' pelos
internos. Esse remédio causa apatia severa, além de efeitos colaterais
debilitantes", diz Freire.
Segundo a
psicóloga, há ainda relatos de uso sistemático e abusivo da prometazina, um
antialérgico com propriedades sedativas.
"É uma
contenção química para facilitar o controle dos internos, em vez de oferecer um
tratamento digno", argumenta Freire.
Apesar da resolução
de fechar os manicômios judiciários, Freire diz que o sistema continua
recebendo pacientes: "Na prática, pouca coisa mudou".
Maurício Ferracini,
diretor-adjunto da Polícia Penal do Estado, que responde pelo CMP, nega que o
tratamento dado aos internos seja inadequado e diz que as instalações do
complexo passaram por reformas.
Ferracini
acrescenta que o CMP está hoje parcialmente interditado e que o prazo para que
seja totalmente fechado foi estendido até junho de 2025 pelo CNJ.
O complexo será
convertido em uma unidade básica de saúde horas para atender detentos,
administrada pela Secretaria de Saúde, e em um presídio, diz Ferracini.
"Criamos um
plano de trabalho que está sendo cumprido gradualmente", diz o diretor.
"Já
conseguimos reduzir o número de internos em medidas de segurança e internações
cautelares de aproximadamente 400, em 2023, para 150 casos atuais."
Ferracini também
nega que novos casos estejam sendo encaminhados à unidade.
Segundo ele, isso
não ocorre desde 2023. Os réus que são alvo de medidas de segurança por
questões psiquiátricas são direcionados diretamente às equipes da rede pública
de saúde.
Segundo ele, não
houve impacto negativo na segurança pública desde a implementação da medida.
"Esses casos
são questão de saúde pública e não de segurança. Quando encaminhados para a
equipe multidisciplinar, temos tido respostas adequadas", afirma
Ferracini.
·
Falta
de psiquiatras e avaliações atrasadas em SP
Com 898 pessoas em
hospitais de custódia, São Paulo tem o maior número de internados. Isso
representa 51,3% do total no país.
O Estado também é o
que tem a maior população encarcerada no país, com 200 mil presos.
Assim como o
Paraná, o Estado também pediu a prorrogação do prazo para cumprir a resolução
do CNJ.
Segundo Gilberto
Leme, desembargador do Tribunal de Justiça-SP e presidente do comitê que
acompanha a transição no Estado, o pedido ocorreu pela complexidade e a
resistências de alguns setores, como a Secretaria de Saúde.
"Esse modelo
está assim há décadas. A administração penitenciária faz a gestão dos hospitais
de custódia. Quando a Saúde percebeu que assumiria essa responsabilidade, houve
um choque inicial: 'Como vamos receber essa demanda?'", conta Leme.
São Paulo tem três
hospitais de custódia, dois no município de Franco da Rocha, na região
metropolitana; e um no interior do Estado, na cidade de Taubaté, para onde vão
os casos considerados mais graves.
A Defensoria
Pública do Estado realizou, em 2023, inspeções em dois deles, e os relatórios
também mostram uma série de problemas nas instituições.
A unidade de Franco
da Rocha I, por exemplo, tinha apenas um psiquiatra trabalhando na unidade
quando, na verdade, deveriam ter cerca de 30 profissionais se revezando na
escala.
A falta de
profissionais, pontua o relatório, causa atrasos nas avaliações de
"cessação de periculosidade", que são os laudos médicos que atestam
que a pessoa não representa mais riscos à sociedade.
Além disso, sem
profissionais de saúde nas unidades, os internos de Franco da Rocha são levados
para Taubaté, a mais de 170 quilômetros de distância, para a realização de
perícias.
"São
'hospitais' entre muitas aspas. Eles têm o nome de hospitais, mas estão com
equipes absolutamente defasadas", diz a defensora pública Camila Tourinho.
"Eles
funcionam da porta para dentro, sem fazer nenhuma interlocução com o sistema de
saúde, quem de fato teria que se responsabilizar pelos cuidados com essas
pessoas."
Tourinho diz que a
internação nos manicômios dificultam a reintegração social dos pacientes.
"Eles não
conseguem sair porque seus vínculos foram absolutamente rompidos. Não têm
família ou um equipamento municipal que possa recebê-los", diz a
defensora.
Diferentemente de
pena aplicada aos presos comuns, a medida de segurança não tem prazo
determinado.
Os internos
dependem do laudo psiquiátrico para atestar que eles não oferecem mais perigo.
"Mas, como
esses médicos são escassos, as avaliações demoram", diz Tourinho.
"Existem casos
de pacientes que cumprem mais tempo em hospitais de custódia do que a pena do
crime cometido."
Este é o caso de
Rafael, que foi preso pelo furto um botijão de gás em outubro de 2022.
Ele ficou na
Penitenciária III de Franco da Rocha até maio de 2024 para aguardar a realização
de exame psiquiátrico.
A pena mínima do
crime que ele cometeu é de um ano. Ele foi solto pouco mais de um ano e meio
depois, com a concessão de um habeas corpus pelo Supremo Tribunal de
Justiça (STJ).
A Secretaria da
Administração Penitenciária afirmou em nota que não há no Estado avaliações em
atraso.
Atualmente, existem
oito psiquiatras no quadro médico dos hospitais, que seriam suficientes para
atender todas as pessoas internadas, segundo a nota.
A pasta afirmou
ainda que a unidade de Franco da Rocha I oferece semanalmente a visita
presencial, visita virtual e a correspondência eletrônica para fortalecer o
vínculo familiar e o apoio emocional para os pacientes.
Já na segunda
unidade, focada na desinternação, os pacientes têm acesso livre ao telefone
público e chamada de vídeo com familiares, afirmou a Secretaria.
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Impasse
no STF
A resolução do CNJ
que determina o fim dos manicômios judiciários foi questionada no STF pela
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), pela Associação
Brasileira de Psiquiatria (ABP) e por dois partidos, o Podemos e o União
Brasil.
Em abril, o senador
Sérgio Moro (União Brasil-PR) pediu uma audiência pública sobre o tema. Na
época, ele disse ser preciso buscar saída que não traga riscos à sociedade.
"Li uma
notícia de jornal recentemente falando da preocupação com alguns internados no
Rio de Janeiro", disse Moro.
"Entre eles,
havia um indivíduo que era responsável por múltiplos assassinatos de crianças e
adolescentes", prosseguiu.
"Ao se colocar
um indivíduo desse num hospital normal, como vai ser? Vai ficar com vigilância
perpétua, com policiais ali presentes? Vai ficar acorrentado na cama?"
O promotor Tarcísio
Bonfim, presidente do Conamp, afirma que a entidade não é contra a política
antimanicomial e que, inclusive, "defende e trabalha para que ela seja
cumprida".
A discordância, diz
Bonfim, é com a falta de discussão do tema para se ouvir os diversos atores que
participam da política.
"Imagina que,
de uma hora para outra, pessoas sob tratamento são colocadas em
liberdade?", questiona o promotor.
"Há de se ter
critérios, observar a individualização da pena, a gravidade do delito, o tipo
de patologia que elas têm."
Existem pessoas
que, do ponto de vista clínico, precisam ter um tratamento continuado, argumenta
o promotor.
"O sistema de
saúde geral não tem condições de absolver todas essas pessoas sujeitas a medida
de segurança por praticarem crimes graves e cujas patologias elas demandam
muito tempo de tratamento."
STF começou a
julgar a ação em outubro no plenário, mas suspendeu o andamento após as
sustentações orais, antes dos votos dos ministros.
O relator, o
ministro Edson Fachin, será o primeiro a votar. Mas ainda não há data prevista
para a retomada do julgamento.
Antônio Geraldo da
Silva, presidente da ABP, critica a resolução por, ao seu ver, não ter sido
elaborada sem a consulta de médicos psiquiatras ou entidades representativas da
área, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a própria associação.
"Como você
quer falar de hospital psiquiátrico e não chama as instituições que cuidam
dessa área? É como discutir infarto agudo do miocárdio sem ouvir
cardiologistas", critica Silva.
"Negar
internação é negar tratamento. Estamos tratando de pessoas que podem ser
perigosas e precisam de cuidados adequados para cessar a periculosidade e
conviver em sociedade."
O psiquiatra
critica a mobilização por trás do avanço da política antimanicomial por, em sua
avaliação, minimizar a gravidade das doenças mentais e ignorar a necessidade de
internação em casos específicos.
"A luta
antimanicomial nega a existência da doença mental e coloca em risco a vida das
próprias pessoas e de outros", afirma Silva.
"Isso é
desumano e baseado em ideologia, não em ciência."
A psiquiatra
forense Emi Mori, no entanto, ressalta que não há doença psiquiátrica que
exija, de antemão, períodos tão longos de internação.
"O tempo
depende da evolução do tratamento, não de prazos fixos estabelecidos pela
lei", diz Mori.
"Nem todo
paciente com doença mental que comete um crime é intrinsecamente perigoso. O
conceito de periculosidade jurídica nem sempre está alinhado com a realidade
clínica."
Ela acredita que a
polarização política prejudica o debate sobre a questão, que tem apelo com quem
defende medidas mais duras de segurança pública.
"Propostas
extremas sugerem soluções simplistas para o problema, que é bastante complexo.
E quando entidades médicas endossam a ideia de que estamos 'soltando
criminosos', isso é alarmista e superficial", diz Mori.
"As unidades
carecem de estrutura terapêutica adequada. Não há equipes multiprofissionais
completas, como psicólogos e terapeutas ocupacionais."
A psiquiatra
defende que o modelo de assistência a pessoas com transtornos mentais que
cometem crimes precisa ser revisto.
"Hoje, o foco
está mais na contenção do que no tratamento. Os hospitais de custódia estão em
um limbo entre o cumprimento de pena e o tratamento médico", diz.
"É preciso
criar espaços que ofereçam assistência multiprofissional e um ambiente propício
à recuperação, mesmo nos casos em que a internação seja indispensável."
Mas ela pondera que
o fim dos manicômios deve ser acompanhado de alternativas eficazes, com suporte
psicológico, social e terapêutico.
"Sem isso, a
reforma se torna uma transferência de problema, não uma solução."
Para a transição
ser efetiva, o desembargador Gilberto Leme afirma que vai ser necessário criar
uma estrutura de saúde pública capaz de atender a nova demanda.
Segundo Leme, há a
possibilidade de reformar os hospitais de custódia para transformá-los em
centros de referência em saúde mental.
Apesar das
dificuldades, ele nota que a resolução do CNJ já começou a impactar em decisões
judiciais. O desembargador avalia que o Judiciário já adota uma postura mais
criteriosa ao determinar internações.
"Notamos que
os juízes têm sido mais parcimoniosos ao aplicar medidas de segurança",
afirma Leme.
"É uma mudança
que exige tempo, investimento e, acima de tudo, diálogo entre Justiça e Saúde
para podermos oferecer tratamento digno e eficaz às pessoas com transtornos
mentais em conflito com a lei."
Fonte: BBC News
Brasil
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