Como o imperialismo alemão se
repaginou como feminista
O Ministério das Relações Exteriores da
Alemanha anunciou pela primeira vez suas diretrizes para uma “política externa feminista” em março de 2023,
mas o debate público sobre o significado dessa política nunca foi tão acalorado
quanto no mês passado. Em 21 de outubro, a organização internacional de
pesquisa responsável pelo desenvolvimento do conceito, o Centro de Política
Externa Feminista (CFFP), juntamente com a ONG de direitos humanos HÁWAR.help,
organizou uma coletiva de imprensa sobre o tópico “prevenção de feminicídios,
legalização de abortos”. A ministra das Relações Exteriores da Alemanha,
Annalena Baerbock, do Partido Verde, foi o centro das atenções na conferência,
juntamente com outras mulheres de destaque do mundo da política e da cultura.
Esses tipos de demandas são o principal denominador
comum de todos os movimentos feministas — e ainda assim a hostilidade estava se
agitando tanto dentro quanto fora do evento, principalmente devido à presença
de Baerbock. Alguém na plateia se levantou em protesto e gritou: “Parem o
genocídio das mulheres palestinas!” e acabou sendo removido pela segurança.
Fora da conferência, as mulheres protestaram com cartazes dizendo, por exemplo,
“Os direitos das mulheres não devem significar privilégio branco”. As imagens e
vídeos da conferência e os protestos associados desencadearam fortes respostas
nas mídias sociais: as fundadoras do CFFP foram acusadas de “feminismo branco”,
e feministas internacionais proeminentes renunciaram ao conselho consultivo da
organização.
Este debate trouxe à tona uma questão que vem fervendo
há algum tempo: embora o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha afirme
em suas diretrizes uma política externa feminista “focada nos direitos,
representação e recursos de mulheres e grupos marginalizados”, na prática ele
enfraquece exatamente esses direitos. Na prática, a política externa feminista
visa simplesmente dar ao governo alemão um verniz progressista. O fato de que,
em última análise, não há nada feminista na política de Baerbock fica
perfeitamente claro em sua política em relação a Gaza.
·
Baerbock não é uma militante feminista
Afundadora do CFFP, Kristina Lunz, tentou
justificar a participação da ministra das Relações Exteriores na coletiva de
imprensa para o jornal liberal de esquerda taz enfatizando
que Baerbock “é uma das poucas políticas que atualmente defendem o aborto”. De
fato, Baerbock faz campanha há muito tempo contra a criminalização do aborto. O
fato de o aborto ainda ser tecnicamente uma infração criminal na Alemanha está
“completamente fora de sintonia com os tempos atuais”, disse a principal
política dos verdes no meio do ano. É verdade que Baerbock tem um perfil claro
e reivindicações legítimas de credenciais feministas nesta questão. Mas ela só
pode ser considerada uma feminista de maneira ampla se você escolher ignorar
completamente suas ações em seu próprio ministério.
Depois dos Estados Unidos, a Alemanha é o fornecedor de
armas mais importante de Israel. Entre agosto e outubro de 2024, a Alemanha
aprovou mais de € 94 milhões em envios de
armas para Israel. O apoio quase incondicional da ministra das Relações
Exteriores a Israel, mesmo quando o exército israelense ataca escolas e outras
infraestruturas civis, ficou claro quando ela falsamente alegou no mês passado
que “locais civis poderiam perder seu status de proteção [sob a lei
internacional] se terroristas tirasse proveito disso”.
As palavras de Baerbock estão completamente em
desacordo com a realidade em Gaza e no Líbano. Um relatório da ONU divulgado há
apenas algumas semanas declarou que pode levar 350 anos para reconstruir Gaza se a faixa
costeira permanecer sob bloqueio. Em Gaza, mais de meio milhão de mulheres são
afetadas pela insegurança alimentar, e 175.000 estão expostas a riscos de saúde
fatais. Em nenhum outro conflito nas últimas duas décadas tantas mulheres e
meninas foram mortas em apenas um ano quanto em Gaza. Se esses fatos não forem
claros o suficiente, até mesmo o Centro Europeu de Direitos Constitucionais e
Humanos (ECCHR) recentemente começou a tomar medidas legais contra os envios de
armas da Alemanha para Israel.
Em 2023, a coalizão governamental de “centro-esquerda”
da Alemanha estabeleceu um recorde de exportação de armas, que pode ser
superado novamente este ano. Além de Israel, essas armas estão sendo enviadas
para países como Arábia Saudita, Catar e Turquia, mostrando que a retórica
sobre “a luta contra o islamismo” em nome da proteção dos direitos das mulheres
não precisa ser levada muito a sério se e quando perturbar os interesses
geopolíticos e financeiros da Alemanha. As armas enviadas para a Turquia também
estão sendo usadas, entre outras coisas, para esmagar o movimento de libertação
curdo e, portanto, a revolução das mulheres no nordeste da Síria. Ironicamente,
a política externa alemã provavelmente nunca foi tão antifeminista quanto
agora, mesmo que tenha escrito suas diretrizes feministas.
As feministas alemãs devem resistir à política desse
governo “feminista” em todas as oportunidades. Como uma organização
independente, o CFFP tentou fazer isso timidamente. Elas se manifestaram a
favor de um cessar-fogo em Gaza logo no início e disseram (provavelmente também
em resposta ao protesto na coletiva de imprensa) que a Alemanha deve parar de
exportar armas para Israel. O problema é: que credibilidade tem uma organização
que continua dividindo o palco com a ministra das Relações Exteriores?
Consciente ou inconscientemente, o CFFP faz pouco mais do que garantir que
políticos como Baerbock possam continuar a se revestir de um verniz feminista
superficial.
·
Críticas da esquerda
Feministas de esquerda têm formulado
críticas à política externa feminista do governo desde que o conceito entrou no
discurso político alemão. A socióloga política Rosa Burç explicou que a
política externa feminista corre o risco de “criar um novo espaço para
legitimar a política externa intervencionista”. A escritora feminista Hêlîn
Dirik escreveu que “um Estado capitalista
e imperialista não desafiará as condições que levam mulheres e pessoas queer em todo o mundo à pobreza, as
explora, as sujeita à violência e as marginaliza”. Conclui-se que não importa
se a política externa alemã se autodenomina feminista. Em última análise, os
interesses da política externa da Alemanha são interesses capitalistas, que se
baseiam na exploração dos oprimidos, que geralmente são mulheres e meninas.
Essa autoimagem torna impossível ser receptivo a
críticas que apontem as dimensões coloniais da política
externa feminista. Isso significaria levar em conta as mudanças econômicas e
sociais necessárias para alcançar a libertação das mulheres. Fazer isso
significaria, em princípio, dissolver ou pelo menos reestruturar o propósito do
CFFP tão drasticamente que ele não seria mais visto como adequado para um
assento na mesa do poder. O lugar do poder seria visto corretamente como o dos
oponentes políticos de uma visão genuína e universalmente feminista para o
mundo.
No entanto, as ações contraditórias de organizações
como o CFFP tornaram-se tão claras que às vezes as críticas são feitas até
mesmo por pessoas com laços institucionais com organizações internacionais ou
partidos políticos tradicionais. Uma delas é Kavita Nandini Ramdas,
ex-presidente do Fundo Global para Mulheres. Ao lado de Sanam Naraghi
Anderlini, diretora da Rede Internacional de Ação da Sociedade Civil (ICAN),
ela anunciou publicamente que estava deixando o conselho consultivo do CFFP, em
parte porque havia sido silenciada devido às suas posições sobre Gaza. O
conselho foi dissolvido desde então.
No entanto, o foco principal de sua declaração não foi
a crítica à política externa feminista em si, mas a crítica à ausência de Gaza
nessas discussões. Em uma declaração (já excluída), o CFFP negou ter
restringido os membros de seu conselho consultivo em expressar opiniões sobre
Gaza. Poucos dias depois, uma carta aberta também foi
publicada por ex-funcionários, que, entre outras coisas, acusam a organização
de discriminar sistematicamente funcionárias marginalizadas, especialmente
quando elas defendem os direitos das mulheres palestinas.
Nos dias seguintes ao evento, o CFFP primeiro descartou
as críticas como uma “besteirada” misógina. Mas eles não são os únicos que
estão errados: sempre que as ações das mulheres desencadeiam o discurso na
internet, pode-se sempre esperar que atraiam respostas genuinamente sexistas, e
os argumentos resultantes são regularmente descartados de forma misógina.
Queixas interpessoais e sociais abrem caminho para discussões online, e
críticas legítimas são misturadas com ataques desproporcionais e,
ocasionalmente, desinformação. Nem sempre é possível separar um do outro.
No entanto, tentativas de deixar de lado o
caráter político da
crítica fazem parte do clássico baluarte liberal-feminista contra críticas da
esquerda. Em nome da paz e da manutenção das aparências, as feministas são
convocadas a se conterem em criticar “umas às outras”. No final de outubro,
parecia que o CFFP poderia realmente estar aberto a algumas críticas,
declarando que pretendia abordar os questionamentos legítimss “em meio ao ódio
e às mentiras”, mas a postagem foi excluída logo depois, e o site do CFFP foi
retirado do ar para “manutenção”. É improvável que vejamos um debate político honesto que vá além de
abordar queixas pessoais e baseadas em identidade. Talvez o melhor que possamos
esperar é que da próxima vez que falarmos sobre “política externa feminista”,
uma mulher palestina tenha permissão para dividir o palco com Baerbock.
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