quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Sobre o paradoxo do “pobre de direita”…

O pobre de direita é sem dúvida um fenômeno mundial, basta pensar no segundo mandato alcançado por Trump. E, mais, não se trata somente da Argentina governada por Milei ou do Brasil que elegeu Bolsonaro.

O conceito ou noção de pobre de direita surge da suposição ou premissa segundo a qual o ideário conservador e individualista (da direita) não corresponde aos interesses materiais das camadas pobres ou empobrecidas. Posta assim, essa hipótese certamente não explica a ascensão de uma nova direita protofascista, ou ultraliberal, nesses tempos recentes.

Nos Estados Unidos há algum tempo estudos investigam por que as pessoas votariam contra seus interesses materiais. Uma hipótese bastante ventilada é que a modernização fez os valores das elites e estratos superiores mais cosmopolita e universalista, o que por sua vez teria afastado os eleitores da classe trabalhadora e engendrado uma contrarrevolução de valores. Uma variante põe o foco no conflito moral ou cultural entre diferentes setores da elite. Este conflito entre as elites induziria uma polarização eleitoral e partidária que então se propaga e alcança o comportamento eleitoral entre os pobres. Parte desse esforço explicativo também considera o fato de na Europa a convergência entre os principais partidos políticos, em especial na Alemanha, produza um desencanto entre várias camadas da sociedade e a ascensão de uma direita abertamente racista e xenófoba,

No Brasil, entre os esforços de análise veio à luz recentemente o trabalho produzido por Jessé Souza. (O Pobre de Direita: a vingança dos bastardos: o que explica a adesão dos ressentidos à extrema direita, 14 de outubro de 2024, Editora Civilização Brasileira). Ele já é hoje um velho conhecido dos debates nacionais com suas várias obras sobre a ralé, as elites e as classe média brasileiras. Revelando sólida bagagem intelectual, o livro tem o mérito primeiro de ousar analisar um fenômeno a quente, enquanto ele acontece; e enquanto sua essência ainda não está totalmente constituída ou claramente perceptível.

No trabalho são configuradas e eleitas para reflexão, na medida em que tem papel emblemático, a figura do branco pobre e do negro evangélico. Historicamente, o autor situa o papel desses “personagens” no processo que levou Bolsonaro ao poder em 2018 e o processo que se seguiu.

A análise desse assim chamado paradoxo do pobre de direita é, então, efetuada a partir de duas chaves interpretativas centrais: a rejeição do economicismo e a “culturalização” do racismo.

A rejeição do economicismo. Na contramão do liberalismo, e também de certos marxismos, a premissa abraçada é de que a racionalidade econômica não é o critério ou móvel central do comportamento em sociedade. O ganho econômico, afirma, não é o elemento determinante na sociedade moderna. Com propriedade ele descarta o utilitarismo, onde o único que importa é o cálculo linear entre perder e ganhar, ter maior ou menor vantagem, como se a noção qualitativa, de conteúdo, de ganho inexistisse. E isso porque a própria economia também não é um território pacificado. Não existe a suposta neutralidade da economia, nem pode ela ser considerada a régua universal dos comportamentos sociais. É aqui que o texto nos brinda sua primeira premissa central: “o núcleo de qualquer produção e distribuição econômica é, […], uma questão e uma escolha moral.” Todo modelo econômico tem, então, embutida uma concepção de justiça, e um critério de distribuição da riqueza. Ou seja, por detrás da economia estão os valores e as escolhas morais.

A produção e repartição das riquezas, continua ele, está assentada em uma escolha moral. Chega-se então a uma das várias observações que não se conformam com o senso comum: “as pessoas pobres votaram em Bolsonaro [por] causas morais, e não econômicas”.

Se se diz isto, nada mais é para imediatamente efetuar um segundo giro na compreensão: o conteúdo dessas motivações não-econômicas não são o conservadorismo moral e a pauta de costumes.

O conservadorismo seria então decorrência de algo mais profundo: o desprestígio e a humilhação cotidiana a que essas camadas são submetidas na sociedade brasileira. Dizer, portanto, que Bolsonaro foi eleito porque os pobres são religiosos e conservadores é apontar mais um efeito do que uma causa, sem indagar a causa que leva os pobres a serem conservadores.

Para ganhar em compreensão a questão deveria ser formulada como segue: por que os pobres abraçam a religião e o conservadorismo?

Entra em cena então o segundo elemento do par de argumentos empregados na obra: o racismo brasileiro e, mais especificamente, o racismo culturalizado do século XX. Esse racismo teria uma característica muito própria, sendo um racismo territorializado ou regionalizado, e opondo um branco europeu imigrante ao sul, e um negro e mestiço ao norte. Esse fenômeno é, na narrativa da obra, epitomizado na figura do branco pobre e do negro evangélico. Na parte empírica do trabalho, essa caracterização é sustentada através da descrição e análise de 12 entrevistas realizadas com 6 representantes de cada um desses agregados sociais.

Ao caracterizar o pobre recorre-se a uma estratégia aparentemente ambígua, entretanto. Embora inicialmente se rejeite a explicação do voto na direita a partir da pouca inteligência do pobre, logo em seguida se afirma que são eles quem “menos compreendem como o mundo social funciona”, ainda que vítimas primeiras do preconceito a serviço da opressão. O fato, assim, é que o pobre está submetido a uma situação de precariedade, que é não só material como também simbólica (e cognitiva).

Vencidas essas em nada desimportantes premissas teóricas, o argumento seguinte é mobilizar os Estados Unidos como fator que serve para caracterizar a ordem mundial da atualidade, e também para afastar totalmente qualquer ilusão de que o Bolsonarismo seja uma jabuticaba, uma singularidade brasileira. Assim, diferente dos imperialismos conhecidos até então, o imperialismo americano combinaria de modo único hard e soft power. Essa produção de consentimento pela propaganda ganhou impulso inédito com o advento das big techs e dos novos gurus como Steve Bannon.

Entender a ascensão do extrema direita entre nós é o próximo desafio enfrentado. Parte-se da constatação que Bolsonaro não criou, mas despertou um racismo pré-existente e adormecido na sociedade brasileira. O giro efetuado é compreensível na medida em que trata das modificações que a “instituição” do racismo no Brasil sofreu, em especial, no século passado. Uma dessas transformações centrais foi paulatinamente opor uma região sul europeia a um norte mestiço; e por simetria e associação um polo civilizado, moderno, eficiente a um outro atrasado, impuro, mestiço e corrupto.

Essa culturalização do racismo opondo cultura do sul e cultura do norte é um processo que se opera gradativamente a partir da década de 30, quando é reconstruído o imaginário do homem brasileiro, resultando no homem cordial e na nação do samba e futebol.

Há, ademais, dois capítulos específicos que analisam as figuras, tal como propostas pelo autor, do branco pobre do sul expandido e o negro evangélico. As entrevistas realizadas são material de leitura que se justificam por si só e não podem ser dispensadas.

Jessé Souza, nos últimos anos, tem brindado o Brasil com uma série de análises corajosas, inconformistas, marcadas por originalidade, que esboçam um retrato do Brasil neste século e sua estrutura social.

Há um aspecto que merece especial atenção nas abordagens elaboradas por ele, não só pela sua dimensão teórica, mas principalmente pelos desdobramentos políticos relativamente imediatos que pode ensejar.

As classes sociais, objeto central de suas indagações teóricas, seriam constituídas não a partir de determinantes econômicas, mas de determinantes morais e subjetivas. Essa compreensão permitiria explicar porque o pobre vota no rico, e — ainda mais surpreendentemente, porque alguns ricos votariam no pobre, ou na defesa dos interesses dos pobres.

Nessa concepção, a autoestima e o reconhecimento social é que são a medida dessa determinante moral. De um só golpe se recusa a classificação das classes conforme a renda e tudo que isso tem de análogo com a economia como determinante das decisões individuais, como se adota paralelamente um critério de autoidentificação e consciência na conformação das classes sociais. O pobre que não quer ser humilhado teria encontrado essa valorização e dignificação na igreja, entre outros lugares.

Sua caracterização de classe parece bastante clara e simples para quem está usando a estrutura social como ponto de partida para entender a política e a história.

Os sujeitos são então os pobres, ou classes populares, a classe média, e por fim, a elite. Esses grupos são medidos como percentual da população. Se de um lado a elite e a classe média são quantitativamente minoritárias, por outro, elas são material e simbolicamente hegemônicas.

Se a elite é material, economicamente, dominante, traço típico da classe média é o monopólio do conhecimento legítimo. Por exclusão, as classes populares são definidas por essa dupla carência, material e simbólica, falta-lhe não só dinheiro como também dignidade.

Manejando a noção de capital cultural, o que Jessé constata é que esse capital (o conhecimento legítimo) no Brasil é historicamente controlado por uma classe média branca de origem europeia. A ideia de capital cultural que está longe de ser novidade apareceu para as ciências sociais na década de 60, combinando elementos do estruturalismo marxista francês com noções da sociologia norte-americana. O fundamental nessa visão é que ao fim e ao cabo todas as classes são detentoras em maior ou menor medida de algum capital, seja ele simbólico ou material, e as distinções entre as classes, por decorrência, são quantitativas. A consequência é que o trabalho como elemento de análise em sua oposição intrínseca ao capital é escamoteado ou simplesmente perde relevância. A mesma condição secundária ou de pouca relevância também é reservada ao fenômeno da exploração. A dinâmica social é vista como uma luta por distribuição e apropriação de capital nas suas distintas formas.

Há, ainda, um outro elemento nessa definição de classe. Derivada da legitima crítica a um reducionismo economicista, a noção de classe social é deslocada para o eixo das escolhas morais: “as pessoas têm como razão última de sua ação social a dimensão moral, ou seja, a luta por reconhecimento social que garante autoestima e autoconfiança para cada um de nós.” Uma vez que o reconhecimento pelo outro passa a determinar a conformação das classes e dos sujeitos sociais, abre-se a porta para um subjetivismo do discurso acarretador de graves consequências.

Quando se adota um critério homogeneizador, vale dizer, o capital material ou simbólico em suas várias formas, a consequência primeira é que o conflito, se não desaparece totalmente, deixa de ser elemento definidor e constitutivo das classes e das relações de classe, para ser um elemento secundário e eventual. De outro lado, o campo das decisões, da racionalidade é circunscrito a um ciclo autorreferente onde o reconhecimento social não tem substrato, mas mera reflexividade, reflexividade circular e vazia.

A combinação destes dois e únicos critérios, ou seja, a mobilização do capital simbólico contra a humilhação e a busca por reconhecimento, produz subjetivismo, o reino onde discurso impera.

Parece claro que a rejeição do economicismo não impõe nem autoriza que se ignore dimensão material e objetiva da vida em favor de um mundo guiado simplesmente pela busca de reconhecimento que conforma mentalidades. Sem a dimensão do trabalho, sem a perspectiva de como se produzem os objetos que se irão repartir e distribuir na sociedade, despencamos no abismo do relativismo e do voluntarismo. A luta contra a exploração e opressão fica para trás e o lema do reconhecimento social assume o palco.

O desdobramento perceptível desse enfoque teórico é a caracterização da questão social brasileira como um desafio para superar mentalidades arcaicas estranhas a nosso tempo.

“Essa divisão (a divisão regional entre os brancos do Sul e de São Paulo e o resto do Brasil) já está na cabeça das pessoas, seja do algoz, seja da vítima. E ela é arcaica e recalcada: um mero disfarce para o atávico racismo “racial””. Emblematicamente essa é a frase que fecha o livro de Jessé Souza.

Então de um certo modo o que se sugere é que a chaga que aflige o Brasil é o racismo, agora culturalizado e territorializado. Arcaico, portanto, obstáculo para a modernidade (ainda que injusta e capitalista), e instalado na cabeça das pessoas. Custa acreditar que a violência, a miséria, o preconceito, o machismo, o patrimonialismo, possam ser o resultado simplesmente do que está na cabeça das pessoas, produto de mentalidades.

As mentalidades não se conformam por si mesmas. Há uma política que se alimenta do ódio, mas o ódio não brota do nada. Ele é alimentado pela fome, pela brutalidade policial, pela violência contra a mulher, pelo trabalho precário. Nada nasce do nada. Como uma sombra o ódio acompanha um monstro.

Parece, entretanto, razoável supor que fosse a questão social um assunto essencialmente de mentalidades, boa vontade e inteligência seriam potencialmente capazes de resolvê-la. A persistência do capitalismo e sua natureza intrinsecamente injusta certamente se deve a fatores mais efetivos que simplesmente mentalidades. Ele se sustenta em condições materiais de carência e abuso. A precarização do trabalho, a escassez induzida, a fragmentação da vida social, a alienação, antes de ser uma percepção e uma compreensão é uma condição material intencional e sistematicamente reproduzida. E são essas condições materiais que devem ser modificadas.

Se não for assim estaremos repetidamente nos culpando porque nos falta eficiência na comunicação e uso eficaz das mídias sociais, ou, ainda, de modo mais genérico, continuaremos lamentando a falta de educação política, a falta de conscientização. Como esse modelo de análise centrado nas mentalidades abraçamos uma espécie de voluntarismo masoquista, como vítima que se pune pelos abusos do agressor. Esquece-se assim que fazer educa, que fatos falam. O racismo, a opressão, a exploração não são simplesmente discursos, percepções, consciência, que se determinem a si mesmos.

Porque quando há quase dois séculos se disse que a realidade determina a consciência, o propósito não era fazer crer que a consciência não fosse relevante, mas sim que ela não é independente da realidade. Então não nos serve falar em fim do racismo sem pôr um fim ao sistema policial que mais mata no mundo, vitimando majoritariamente negros e jovens. Não nos serve “pôr” na cabeça das pessoas que o SUS é ótimo quando elas têm que pagar preços exorbitantes por planos de saúde, ou que o ensino deve ser público quando a maioria tem que financiar seu curso universitário e se endividar. Fatos falam. Se a esquerda não usa o poder para alterar a realidade material então não irá convencer. Se a esquerda não discute e enfrenta a causa e origem da opressão racista e sua relação funcional e intrínseca com a exploração capitalista, continuaremos discutindo questões secundárias, e nos escondendo atrás de desculpas como “não utilizamos a tecnologia”, não nos comunicamos bem, não falamos a “linguagem do povo”.

 

Fonte: Por Everaldo Fernandez, em Outras Palavras

 

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