Congresso atua como
sindicato dos ricos, diz especialista em desigualdade
Desde que o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote
de corte de gastos
públicos planejado
pelo governo, na última quarta-feira de novembro, o país vive as consequências
das reações à proposta. O dólar ultrapassou a casa
dos R$ 6 pela
primeira vez na história no dia seguinte ao anúncio e lá ficou como expressão
da insatisfação do mercado – que diz que esperava por medidas mais rígidas de
redução fiscal. Na segunda-feira (17), o dólar fechou em R$ 6,09. No Congresso, a bancada
governista também torceu o nariz, mas por outra razão: deputados estavam
preocupados com as implicações nos programas sociais, sobretudo no Benefício de
Prestação Continuada (BPC), mas também no salário mínimo. Ao final, o Planalto
precisou negociar com seu próprio partido, o PT, por votações
favoráveis aos projetos.
Um dos maiores
especialistas em desigualdades do país, o
sociólogo Marcelo Medeiros, evita fazer críticas diretas ao ministro e seu
pacote, mas deixa claro que, para ele, as medidas são ruins — e por vários
motivos. "É que é mais fácil cortar de quem é pobre do que de
quem é rico. Também é mais imoral", resume.
À BBC News Brasil,
Medeiros, que está pesquisando neste ano na Universidade Columbia, em Nova
York, nos Estados Unidos, e ainda é ligado
à Universidade de Brasília (UnB), argumenta que o ajuste fiscal deveria focar
em tributação no topo da renda, e não na base. Para ele, estendendo essa
análise, a decisão de isentar do Imposto de Renda
(IR) uma classe média que ganha até R$ 5 mil por mês é uma
"gotinha no oceano" perto do que deveria ser, para ele, realmente
feito: revisar o grosso dos subsídios fiscais para
diferentes setores produtivos. Por causa desses subsídios, em 2022, o país
renunciou a um montante de R$ 581 bilhões – ou mais de 5% do Produto Interno
Bruto (PIB) – em impostos, segundo dados oficiais. Mas esse ajuste fiscal, que
ele considera o pacote que deveria ser feito, de fato, não avança no Brasil por
causa do Congresso, "que está atuando como um empecilho à economia do
país" ao se comportar como um "sindicato dos ricos".
Porém, na leitura
de Medeiros, o erro político — e moral — mais grave está em mexer no salário mínimo, que terá um teto
de 2,5% de reajuste anual. "Do Plano Real para cá, o
principal mecanismo de redução de pobreza no Brasil tem sido o salário mínimo,
e não Bolsa Família ou qualquer outro programa de assistência", diz
Medeiros.
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Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
·
De
que forma esse pacote de corte de gastos pode impactar os indicadores sobre a
desigualdade?
Marcelo Medeiros
- É pouco provável que qualquer ajuste desse tipo tenha impacto relevante
sobre a desigualdade. Na verdade, foram os aumentos sistemáticos do salário
mínimo no passado que fizeram com que ela caísse — e freá-los significa
justamente frear as reduções da pobreza e da desigualdade. Por outro lado, a
preocupação fiscal não pode ser ignorada. Essa decisão [de cortar gastos] é
difícil de se tomar. É que qualquer ajuste fiscal no Brasil tem que passar
necessariamente por um aumento expressivo da arrecadação. Nessa circunstância,
diminuir gastos ou é muito difícil ou é imoral. Cortar gastos de assistência ou
fazer restrições desse tipo é imoral.
·
Mas
como aumentar a arrecadação em um cenário de pressão, justamente, por cortes?
Medeiros - O
Brasil tem, na verdade, que resolver o volume monstruoso de subsídios fiscais,
que hoje é da ordem de pelo menos R$ 500 bilhões, distribuídos entre inúmeros
setores, muitos deles sem razões claras para recebê-los, porque o retorno que
oferecem ao desenvolvimento do país é baixo. Não são justificáveis. Tudo isso
fora alguns problemas de natureza tributária, para os quais era preciso um
plano. Mas, ainda que muita gente queira discutir o papel do Executivo nisso, o
grande obstáculo desse ajuste fiscal [que deveria ser feito] é o Congresso. Ele
está se tornando uma barreira para as finanças públicas do país e para a boa
condução da economia. O Brasil precisa entender isso rapidamente.
·
Por
que o Congresso é um obstáculo?
Medeiros - Ele
tem que assumir tanto sua responsabilidade fiscal quanto social, e não se
comportar como um agente dos seus próprios interesses, financiando processos
políticos interiores que se tornarão campanhas eleitorais no futuro. O
Congresso é o grande problema do Brasil hoje ao não assumir esse papel e ficar
aprovando extensões de subsídios. Essa ênfase em aumentar arrecadação conflita
com setores que insistiam por um pacote de cortes de gastos, principalmente
aquele que todo mundo chama de "mercado". Por que essa exigência tem
sido tão intensa? Não é possível cortar gastos, muitos gastos, de maneira
simultaneamente rápida e responsável. Não dá. E, se a gente olhar para a
estrutura do orçamento, tirando os subsídios tributários, todo o resto a gente
não pode deixar de ter. É criminoso tirar recursos do SUS [Sistema Único
de Saúde] ou
do sistema educacional, por exemplo. A
principal demanda do orçamento é dada pelo sistema previdenciário, e há margem
para novas reformas previdenciárias. Isso terá que ser feito. Não é trivial,
mas vai depender do Congresso, que deixou janelas abertas na última reforma que
fez [em
2019]. Ele precisará fazer escolhas de natureza distributiva. Mas a pergunta
fundamental é: quem vai pagar pelo ajuste fiscal brasileiro?
·
E
quem terá que pagar, na opinião do senhor?
Medeiros - Por
que fazer um ajuste fiscal? Porque está gastando mais do que se arrecada. A
solução para isso é ou arrecadar mais ou gastar menos. Essa última opção é
bastante complicada, mas a primeira — aumentar arrecadação — é difícil do ponto
de vista político, embora seja viável a curto prazo. O Brasil terá que
enfrentar o fato de que terá que aumentar sua arrecadação. Não há alternativa.
Não tem um cenário bem desenhado hoje que garanta equilíbrio fiscal fazendo
cortes de forma irresponsável. O que temos são cortes que só vão fazer a
máquina — e por "máquina" eu me refiro ao sistema educacional, à
saúde, etc. — funcionar mal. Ninguém quer que isso aconteça. A solução, então,
é aumentar a arrecadação.
·
Como
isso poderia ser feito em curto prazo?
Medeiros - Nosso
sistema tributário é ruim em muitas dimensões. Um deles é justamente controlar
essa máquina gigantesca de subsídios — problema de ordem tributária. O Brasil
gasta muito mais dinheiro com ela do que com programas de assistência social,
como o Bolsa Família, por exemplo. Para
enfrentar isso, será necessário passar pelo Congresso, que é parte interessada
[nesse processo]. Eu entendo que essa é uma decisão politicamente delicada, mas
o Congresso deve assumir sua responsabilidade. Se ele quer ter poder de
governo, com mais comando sobre o orçamento público, então, precisa ter
responsabilidade correspondente a esse aumento de poder.
·
Se
é o arcabouço tributário quem estrutura a desigualdade, qual é o papel, então,
dos programas sociais nesse sistema?
Medeiros
- Precisamos nomear corretamente as diferentes desigualdades. Desigualdade
de renda é diferente de desigualdade de [acesso à] saúde, que é diferente, por
sua vez, da desigualdade educacional. O sistema tributário afeta a desigualdade
de renda por um lado e, por outro, gera mais recursos para o governo gastar com
saúde e educação. Programas de assistência social não são irrelevantes, mas têm
impacto pequeno sobre a desigualdade. O dinheiro gasto com educação como um
todo ou com saúde são determinantes nas desigualdades das suas duas respectivas
áreas. A massa da população não vive adequadamente sem SUS e sem um sistema de
ensino gratuito, sem o qual ela não chegaria ao ensino superior. E ela precisa
chegar nele.
·
Mas
e a Previdência Social nisso?
Medeiros - Ela
não é só um gasto como outro qualquer: é a combinação de uma poupança que as
pessoas fazem ao longo do tempo com um seguro e com mecanismos de assistência
social. Parte do que a Previdência está fazendo hoje equivale, do ponto de
vista contábil, a uma poupança que vai sendo acumulada e paga. Não estou
dizendo que não existem subsídios previdenciários. A ingenuidade é achar que a
Previdência é um gasto como qualquer outro. É claro que precisamos de reformas
previdenciárias, porque o sistema não vai aguentar mesmo. Temos que ter idades
mínimas mais altas. Tem grupos se aposentando com 55 anos! Eles podem fazer
isso desde que paguem mais. Assim como é óbvia a necessidade de um mecanismo de
proteção dos idosos, como vários outros países têm e que, no caso do Brasil,
funciona via BPC [Benefício de Prestação
Continuada].
·
Que
vai ser ajustado também agora.
Medeiros - Mas
é claro. É mais fácil cortar de quem é pobre do que de quem é rico. Mas também
é mais imoral.
·
O
ponto, então, não é a existência do corte, mas o objeto dele?
Medeiros
- Claro. O Brasil tem que ter responsabilidade fiscal. A pergunta é quem
paga por ela e quem deixa de pagar. O Congresso não está ajudando ao não fazer
os ricos pagarem pelo desenvolvimento do país. Ele precisar deixar de ser um
empecilho para a condução da política fiscal brasileira.
·
Em
meio a esse pacote, qual é o peso real dos gastos públicos sobre a
desigualdade? O Índice de Gini do Brasil, por exemplo, caiu muito (para 0,481,
segundo dados do Ipea) na metade de 2022, durante a pandemia, por causa do
Auxílio Emergencial.
Medeiros - Não
dá para medir muito bem, mas veja só: o Índice de Gini mede distribuição de
renda. Quando o país corta gastos do sistema de saúde, por exemplo, isso não se
mede pela desigualdade de renda, mas
pela desigualdade na saúde. É por isso que essa palavra deve ser sempre
conjugada no plural: desigualdades. O Brasil tem muitas delas: na saúde, na
educação e... na renda. Cada vez que há um corte de gastos, a área
correspondente é a mais impactada. Tirar dinheiro da assistência impacta na
pobreza, por exemplo. E é importante lembrar que o Estado não gera só efeitos
diretos [com a maneira como maneja os recursos], mas também indiretos — que nós
chamamos de efeitos de "segunda ordem". Quando ele cria um gasto no
presente para melhorar a qualificação da mão de obra, no futuro se espera uma
produtividade melhor, ou quando ele investe em algo para tornar a população
mais saudável, a expectativa é que a despesa com saúde caia lá na frente. É uma
equação complexa.
·
E
há alguma chance de o Congresso mudar sua atuação nesse sentido?
Medeiros
- Politicamente, eu não sei dizer, porque não sou analista político, mas
deveria ser, porque, sem colaboração dele, o Brasil continuará instável. Tem
coisas que não estão sendo sequer propostas, porque todo mundo já sabe que
serão barradas.
·
O
que, por exemplo?
Medeiros - A
reforma do Imposto de Renda que acaba com regimes especiais de tributação.
·
Haddad
tem tido certo sucesso em negociar os pontos do pacote de cortes com o
Congresso — especialmente no Senado. Um deles é justamente aumentar a faixa de
isenção do Imposto de Renda para até R$ 5 mil e tributar rendas maiores.
Medeiros - Mas
não é isso que a gente realmente precisa. É algo muito pequeno diante do
tamanho da reforma tributária que o Brasil tem que fazer, mudando brutalmente
os regimes do Simples Nacional e do Lucro Presumido para que todos paguem
impostos do mesmo jeito. Como está hoje, estamos criando condições para um
grupo pagar muito menos do que o resto da população. Não pode. Está errado.
·
A
isenção, aliás, foi criticada por beneficiar mais uma certa classe média, do
que quem está, de fato, em situação de pobreza. O recorte de renda (R$ 5 mil)
definido no pacote é socialmente efetivo?
Medeiros - Não
tenho cálculos para te responder melhor, mas o que posso insistir é que a
reforma tributária que o Brasil precisa não é para aliviar tributação na base,
mas para melhorar a tributação no topo, onde ela é muito baixa. Temos vários
mecanismos que sustentam essa estrutura. Falta, por exemplo, uma tributação
sobre lucros e dividendos de Pessoa Física (PF), que hoje é ruim. É fundamental
mexer nos regimes especiais. O próprio MEI
[Microempreendedor individual] é um problema que precisa ser
resolvido logo, assim como a série de investimentos subsidiários, como a Letra
de Crédito do Agronegócio (LCA), que não paga imposto algum, e o tributo sobre
aplicações financeiras, que pagam a menor alíquota possível (15%) e ainda não
entram como rendimento total [na declaração do IR]. Nosso Imposto de Renda está
fazendo tudo o que pode para não ser progressivo, para não cobrar dos mais
ricos.
Esse desenho é muito ruim.
·
Quais
as prioridades?
Medeiros
- Resolver os regimes especiais e acabar com o Simples [Nacional], com o
Lucro Presumido e com o MEI, além da tonelada de subsídios. Há muito subsídio
para o agronegócio, por exemplo, e
ele não precisa disso. É um setor estabelecido e nem é tão dinâmico assim. Tem
também tudo quanto é subsídio para mão de obra, como a própria exoneração da
folha de pagamentos, que passa ao largo do debate público porque a imprensa se
beneficia dele. Isentar quem ganha até R$ 5 mil por mês de declarar o Imposto
de Renda é só uma gotinha no oceano desses benefícios todos.
·
Por
essa lógica, a decisão de mudar a estrutura do IR, então, é paliativa.
Medeiros - A
isenção parece paliativa. O Brasil tem pouca progressividade. A alíquota
superior brasileira, de 27,5%, é baixa. Temos que ter alíquotas mais altas,
inclusive no topo, aumentando também a base tributária. Tem que tributar todos
os rendimentos de capital como renda, não de forma separada. Não tem por que
ser assim. Hoje, um advogado empresário paga
infinitamente menos imposto do que um advogado empregado. Isso está errado.
Sem contar que é ruim até para a Previdência, porque aumenta o déficit.
·
Esse
é o problema que o senhor enxerga no regime do MEI também?
Medeiros - O
MEI tem dois problemas. O primeiro é que ele está destruindo a proteção
trabalhista brasileira. Uma pessoa que trabalha [nesse regime] é um empregado contratado
sem proteções trabalhistas. É ruim para quem trabalha. Fora que essas proteções
são positivas para a própria dinâmica do mercado de trabalho. Até porque o
valor do MEI é muito alto: tem gente ganhando o limite dele [R$ 81 mil].
Segundo que ele não tem uma contribuição previdenciária adequada, e isso
significa que os trabalhadores que são MEI vão ter se aposentar apenas com um
salário mínimo. Isso também é muito ruim. O resultado são dois trabalhadores
idênticos no mercado: um pagando muito menos imposto e sem proteção, e um outro
cheio de proteções trabalhistas, mas custando caro. Tem que nivelar. Não há
nenhuma razão para que o MEI seja tolerado como ele é. Trata-se de uma forma
legal de subemprego. Não é à toa que cresce assustadoramente.
·
O
argumento contrário a esse diz que, como as proteções são muito altas, o MEI
dinamiza o mercado de trabalho.
Medeiros - Não
conheço ninguém que tenha feito uma conta séria sobre isso. Uma coisa é
justificar um pintor de parede, por exemplo, que virou MEI. Era um trabalhador
que prestava serviço sem ter empresa aberta e, agora, tem. Mas o MEI virou uma
relação trabalhista camuflada. Todo mundo que conheço concorda que as proteções
trabalhistas são boas para garantir o funcionamento do mercado do trabalho.
Agora, se custa caro ou não, é claro que tudo custa caro...
·
E
qual é o problema do Simples? Estão nele pequenas e médias empresas, por
exemplo, que ganharam outra dimensão discursiva dentro do debate sobre a
economia brasileira – como geradoras de trabalho e dinamizadoras das trocas
cotidianas.
Medeiros - Em
primeiro lugar, os valores do Simples Nacional são muito
altos. Há empresas ganhando muito dinheiro [dentro do regime]. Segundo: tem
gente abrindo duas, três, quatro empresas só para se manter dentro dos limites
[de faturamento]. Tem empresa do setor da construção civil, por exemplo,
abrindo uma empresa nova para cada edifício [construído] como forma de burlar a
tributação. Temos uma fiscalização ruim sobre isso, sem contar a falta de
clareza da legislação. Uma coisa é simplificar o mecanismo burocrático [de
arrecadação dos impostos]. O que não existe é razão para se tributar menos um
regime do que outro. O Simples é até mais fácil de se processar
burocraticamente, mas [quem está nele] paga menos imposto. Isso é péssimo. O
correto seria obrigar as pessoas donas dessas empresas a pagar para si mesmas
um salário correspondente à da função no mercado, como acontece em muitos
países. Caberia, então, à Receita Federal fiscalizar e multar quem não
estivesse cumprindo essa regra. O Simples virou uma forma legal de burlar
tributação.
·
Quais
seriam os ajustes necessários em ambos os regimes?
Medeiros - O
ajuste seria baixar tremendamente os valores autorizáveis [de faturamento]. O
MEI deveria se limitar a um salário mínimo por mês, e o Simples se limitar a um
pouco mais do que isso. Ou, então, acabar com eles.
·
Por
quê?
Medeiros - Não
tem motivo [de existirem]. No passado, fazia sentido simplificar a contabilidade,
mas hoje todas as empresas do Simples mantêm a contabilidade regular necessária
para estarem em outro regime tributário, enquanto processos eletrônicos atuais
tornaram a manutenção dessa contabilidade mais barata. Logo, não há razão, do
ponto de vista de simplificação burocrática, para ele existir mais. O ponto é
que ninguém entra no Simples porque ele é mais fácil. As empresas entram nele
porque ele é mais barato do ponto de vista tributário. Elas estão entrando nele
para não pagar impostos. E a questão não é nem essa, mas, novamente, o fato de
o pesar dos subsídios estar indo para os mais ricos. Eles estão na tributação
sobre insumos, basicamente utilizado pelo agro, ou sobre transportes, que o
agro também usa para exportar. O Brasil subsidia o petróleo do agronegócio, mas
não a gasolina do produtor de banana.
·
São
benefícios oriundos de políticas de industrialização.
Medeiros
- Políticas baseadas em reduções tributárias geralmente são ineficientes.
Se o objetivo for fazer política industrial, funciona melhor
gastando em infraestrutura, em transferência direta, em compra direta, e não em
subsídio tributário. É uma política antiga, que todo mundo já viu que não
funciona, porque [o excedente] é altamente apropriado. Vira lucro em vez de
investimento.
·
Voltando
ao pacote de gastos, o quanto aumentar impostos daqueles que ganham acima de R$
50 mil é efetivo, considerando que, como o senhor já escreveu, o grosso da
renda dos mais ricos no Brasil não vem do trabalho, mas do patrimônio?
Medeiros - Uma
boa medida para resolver esse problema da tributação dos mais ricos seria fazer
uma integração tributária. Funcionaria assim: o que se paga como Pessoa
Jurídica (PJ) é descontado do Imposto de Renda da Pessoa Física (PF). E o
contrário também: o que não for pago como Pessoa Jurídica vai para o IR. Na
verdade, é como se não existisse Pessoa Jurídica, mas só Pessoa Física.
Tudo fica tributado
do mesmo jeito. Nos Estados Unidos é assim. Não diferenciar renda é, inclusive,
a recomendação internacional. Renda é renda e deve ser tributada da mesma forma
sempre.
·
O
corte de gastos também estipulou um teto ao reajuste anual do salário mínimo.
Qual é a sua opinião do senhor sobre isso?
Medeiros
- Existe muito erro nesses cálculos sobre o impacto do salário mínimo nas
contas públicas. Primeiro que o único impacto ao governo está na Previdência,
porque quem paga boa parte dos efeitos do salário mínimo é o setor privado.
Segundo que uma parte grande do salário mínimo vira imposto automaticamente,
porque ao pagá-lo, o governo recolhe automaticamente a Previdência. A conta que
está sendo subestimada é essa: um quinto do salário mínimo vira previdência.
Além disso, cerca de 15 a 17% dele vira arrecadação tributária por meio do
consumo, porque as pessoas compram coisas com esse dinheiro e pagam impostos
sobre elas. Ao final, portanto, quase metade do salário mínimo vira imposto
antes do final do mês em que ele foi pago. Tudo isso não são erros triviais de
cálculo: eles são deliberados para não reajustar o salário mínimo. Mas o que a
gente não pode esquecer é que, do Plano Real [1994] para cá, o principal
mecanismo de redução de pobreza no Brasil tem sido o salário mínimo — e não o
Bolsa Família ou qualquer outro programa de assistência. A queda da pobreza
pós-Plano Real foi, em pelo menos metade dela da sua dimensão, derivada do
aumento do salário mínimo e, de lá para cá, vem sendo assim. Isso é algo
fundamental de se entender nesse debate.
·
A
limitação do reajuste, portanto, vai impactar na desigualdade.
Medeiros - Se
vamos limitar os aumentos do salário mínimo — o que não está fora da mesa de
discussão —, temos que fazer isso sabendo que se trata de uma decisão que
significa parar de reduzir pobreza e desigualdade. Se está escolhendo fazer
esse ajuste pelo lado dos mais pobres, o que é imoral, e não fazê-lo pelo lado
dos mais ricos, mexendo nas vantagens tributárias, o que, obviamente, é
moralmente aceitável. Agora, por que isso está sendo feito assim? Por uma série
de razões, mas parte delas é porque o Congresso atua como trava para fazer o
reajuste no lado dos mais ricos. Ao fazer isso, ele atua como sindicato dos
ricos. Isso é péssimo para a economia do país.
·
O
salário mínimo tem peso maior na conjuntura brasileira, considerando que ele
também nivela os salários de quem está na informalidade?
Medeiros
- Sim, porque afeta muita gente. No caso dos informais, ele serve como
referência. Mas não só: afeta também quem presta serviços para os mais pobres,
porque quando o salário mínimo aumenta, cresce também o consumo desses
serviços: quem planta comida para vender ao pobre, quem pinta a parede do
pobre, etc.
·
Mas
de que pobres estamos falando, já que há toda uma categoria de "não
pobres" na literatura sociológica para se referir à população que é
vulnerável, no sentido de estar a uma demissão da pobreza, por exemplo?
Medeiros - A
grande massa da população brasileira ganha um salário mínimo por mês. "Não
pobres" são pessoas muito parecidas aos "pobres", porque ganham
algo em torno disso também. A massa dos benefícios previdenciários, da mesma
forma, é composta por um salário mínimo. Ou seja, o grosso da população é
afetado por esses reajustes. É por isso que, politicamente, trata-se de um
grande erro restringir aumentos do salário mínimo ao invés de se pagar o preço
político de fazer o ajuste entre os mais ricos.
·
Há
um argumento comum de que, se um país cresce e o governo
possui mecanismos de distribuição justa da renda, a desigualdade cai ou se
estabiliza. Mas, em 2024, o Índice de Gini do Brasil foi bastante irregular:
subiu do primeiro trimestre para o segundo e, então, caiu no terceiro. Isso
tudo em uma economia que está indo bem...
Medeiros
- [Interrompe] ... Dizer que a economia está indo bem faz pouco sentido.
O PIB, em uma economia
de propriedade privada, não é apropriado pelo país. Alguém se apropria disso. A
economia pode estar indo muito bem para os ricos e muito mal para os pobres ou
vice-versa. São duas coisas completamente diferentes e que podem coexistir
dentro da mesma taxa de crescimento. A pergunta a se fazer é: quem está
ganhando? Quem está preocupado com desigualdade não olha para a taxa total do
crescimento, mas para a distribuição desse crescimento.
·
A
explicação para esse fenômeno do Gini é que a economia dos mais pobres não está
crescendo?
Medeiros - O
grande determinante do desempenho do mercado de trabalho dos mais pobres é
justamente o salário mínimo. Não é o único, obviamente, mas ele é muito
importante. A economia brasileira pode crescer, por exemplo, caso o câmbio alto
torne a venda da nossa soja mais favorável, mas isso teria pouco efeito
distributivo, porque soja não gera emprego, mobiliza pouca gente, etc. A mesma
coisa com petróleo: supondo que ele
suba de valor no mercado internacional e faça nosso PIB crescer, porque o
vendemos. Pouca gente seria beneficiada, especialmente porque o petróleo não é
tributado como deveria. Seria benéfico se ele estivesse pagando impostos sem
subsídios, mas como a gente faz essas renúncias, a alta no preço dele, ainda
que faça o PIB crescer, não se transforma em estabilidade econômica.
·
Outra
análise sua é que a riqueza dos 0,5% no topo da pirâmide social é muito
distante da do resto do país. Essa distância impede qualquer efeito, de
qualquer mecanismo, sobre a desigualdade?
Medeiros
- Não. Precisaríamos apenas explorar mecanismos técnicos e econômicos que
permitiriam fazer isso. O que impede são barreiras de natureza política, porque
esses grupos não aceitariam. Eles usariam todos os mecanismos disponíveis para
evitar que isso fosse mudado. É assim na própria história humana, não só no
Brasil. Essas pessoas tentam derrubar governos, subornar parlamentos, várias
coisas. E é claro que elas tomariam medidas radicais para garantir suas
vantagens.
Fonte: BBC News
Brasil
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