quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Nasce uma associação para ajudar vítimas de empresas cúmplices da ditadura

Em evento na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, marcado por diversos simbolismos, juristas, defensores de direitos humanos e pesquisadores lançaram a Associação de Ativistas por Reparação, uma entidade por meio da qual buscarão ajudar a organizar as vítimas de empresas investigadas por cumplicidade com o golpe militar de 1964 e a ditadura que se estabeleceu em seguida e representá-las juridicamente nos inquéritos abertos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e em eventuais ações ou acordos resultantes dessa atuação. 

A USP foi escolhida como sede do lançamento por dois motivos: para abordar a falta de enfoque na Justiça de Transição em cursos de graduação de Direito no Brasil, onde é mais comum em pós-graduações, e para aumentar o envolvimento da USP nesse tema, destacando a importância de juristas na defesa desse conhecimento na Justiça.

“A USP colaborou muito para o golpe e para o AI-5 e não levou adiante sua memória quanto a isso, então é um ato de insurgência importante começarmos essa associação aqui”, afirmou o professor de direito da USP Jorge Souto Maior, doutor em Direito do Trabalho, e anfitrião do evento. 

Para Sebastião Neto, coordenador do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), entidade que busca o resgate da memória política dos trabalhadores e luta por memória, verdade, justiça e reparação, organizadora do evento, “a associação fará representação jurídica, mas mais que isso, vai formar quadros, pois as pessoas do meio jurídico tem pouco conhecimento sobre Justiça de Transição. A gente não sabe quem vai fazer as audiências na Amazônia, por exemplo, e Justiça de Transição tem questões muito próprias, não é simplesmente indenizar e acabou”, diz. 

A Amazônia não foi citada aleatoriamente. Entre as empresas investigadas, PetrobrásParanapanema e Josapar tinham negócios na região, que violavam direitos de indígenas, ribeirinhos e trabalhadores, e as investigações têm desdobramentos no Pará e Amazonas, notadamente. 

No último dia 5 de dezembro, o Ministério Público do Trabalho (MPT), inclusive, anunciou que propôs uma ação civil pública contra a Volkswagen pelo emprego de trabalho escravo em uma fazenda mantida pela montadora em Santana do Araguaia, no Pará, nos anos 1970 e 1980. A companhia estava participando de discussões com o MPT sobre o caso, mas retirou-se das negociações e passou a alegar que as violações ocorridas no Pará estão cobertas pelo TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) de 2020.

·        Volks, o começo de tudo

O IIEP organizou e liderou o Grupo de Trabalho Sindical da Comissão Nacional da Verdade. Foi no GT Sindical, a partir de 2013, que se começou a pensar a busca por responsabilização de empresas por sua cumplicidade com a ditadura. O trabalho culminou no TAC assinado pela Volkswagen, em 2020, com o MPF, MPT e Ministério Público de São Paulo. 

O acordo, no valor total de R$ 36 milhões, foi de onde saíram os recursos com os quais foram financiadas pesquisas acadêmicas, coordenadas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), sobre mais 13 empresas brasileiras que também apoiaram o golpe e são acusadas de ligação com violações de direitos humanos sofridas por seus trabalhadores e pessoas impactadas por seus empreendimentos e negócios.

Até o momento, as apurações acadêmicas subsidiam investigações do MPF e do MPT sobre a Petrobras, Folha, Cobrasma, Docas, Paranapanema, Aracruz, Josapar, Itaipu, CSN, Fiat, Belgo-Mineira, Mannesmann e Embraer. Os principais achados dessas pesquisas foram contados pela Agência Pública na série de reportagens “Empresas Cúmplices da Ditadura”. 

Uma décima quarta investigação foi iniciada no final de 2023 pelo MPF em Minas Gerais sobre a Usiminas, palco do massacre de Ipatinga, no final de 1963, no qual a PM de Minas Gerais, no governo Magalhães Pinto, banqueiro e declarado apoiador do golpe, disparou rajadas de metralhadora contra trabalhadores que protestavam por melhores condições de trabalho e alojamento. 

O número oficial é de 8 mortos, mas investigações da Comissão Nacional da Verdade e de pesquisadores que estudaram o massacre apontam que o número pode ser de 30 a 80 pessoas. Não há, entretanto, recursos disponíveis, por enquanto, para financiar uma nova pesquisa acadêmica, nos moldes das realizadas até agora. 

·        Não é só indenização

O jurista Belisário dos Santos Júnior, ex-secretário de Justiça de São Paulo, e ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, citou peculiaridades dos processos de reparação na Justiça de Transição, que devem seguir o previsto na resolução 60 da ONU. 

“Não é para ficar em indenização somente. Tem várias outras coisas, como a construção de um sistema de educação diferenciado, pois quando se faz memória e verdade, temos que ter um olho na situação atual, pois ela reproduz e muito o que aconteceu na ditadura militar”, e fez uma analogia: “é como a história da câmara corporal. Tudo bem, o governador topou (que os PMs usem) mas não é só isso. É mudar a mentalidade, é mudar a educação”, explicou. 

A advogada Rosa Cardoso, que também foi coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, afirmou que a meta dela e do IIEP é colocar a associação em funcionamento ainda no primeiro bimestre de 2025 e confirmou seu compromisso com o grupo e que já vai começar a trabalhar em seu estatuto, que deve ser o menos formal possível, para estimular a participação dos interessados. Ela explicou como devem ser os próximos passos dos inquéritos das empresas e que a participação das vítimas e seus descendentes é fundamental. 

 “Temos todas aquelas provas contra eles e as empresas serão chamadas para fazer um acordo conosco. Nesse acordo, nós já queremos pedir aquelas reparações que cada grupo de pesquisa estimou, acordou e conversou com os vitimados daquela categoria. São indenizações materiais, mas há também um conjunto de outras reparações que devem ser diferenciadas, conforme sejam trabalhadores, quilombolas, populações indígenas, por exemplo. Mas nós sabemos se a população indígena vai se interessar por ser reparada através de uma bolsa de estudos ou de um museu de determinada forma? Isso tem que ser conversado com os vitimados”, explicou. 

“O desafio é termos um CNPJ que seja um instrumento de luta, mas a diferença é que tendo um instrumento jurídico nós podemos, entre outras coisas, nesses acordos que estão sendo feitos com as empresas pedir um valor gigante para ser aplicado em interesses coletivos”, afirmou Ney Strozake, advogado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sem organização, acredita o advogado, o dinheiro pode ir para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos – gerido por um conselho federal – e ter outras destinações não relacionadas aos casos concretos. 

Ouvida após o evento, Rosa Cardoso confirma que a associação terá CNPJ para poder atuar juridicamente nas ações e poder, inclusive, ser autora ou co-autora de petições. 

Neto afirma que a associação não muda em nada outras formas de organização das vítimas, que continuarão mantendo o Fórum por Verdade, Justiça e Reparação, que reúne não apenas vitimados, mas movimentos sociais, sindicatos, centros de memória e entidades de defesa dos direitos humanos, em campanha permanente pela responsabilização “dos patrões da ditadura”. 

·        Homenagem

O evento na USP foi também uma homenagem à Jair Krischke, líder do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), e um dos brasileiros com mais conhecimentos sobre a Operação Condor, associação político-militar das ditaduras do cone-sul nos anos 1970 e 1980, que se auxiliaram para perseguir, prender, matar e desaparecer com adversários. 

O evento começou com a exibição do documentário “Imprescindível”, de Milton Cougo, que busca apresentar o trabalho de Krischke e do MJDH que estabeleceu uma rota segura para exilar mais de 2000 pessoas perseguidas pelas ditaduras da região. “No Brasil dizem que defendo bandidos, no Uruguai recebo homenagens”, lamenta Krischke em trecho do documentário. 

Ex-presidente da Comissão da Verdade do Paraná, Ivete Maria Caribé da Rocha, ressaltou o papel de Krischke. “Jair arriscou sua vida em vários momentos, ao organizar a ida de várias pessoas que precisavam fugir da morte e da perseguição no cone-sul”, afirmou. 

Krischke foi convidado a ler o manifesto dos trabalhadores em que eles pedem a responsabilização de empresas por violações de direitos humanos. 

“A violência diária das polícias se manteve nas periferias desde a Ditadura. E permanece um ranço antidemocrático em nossa sociedade, especialmente entre os militares, como ficou demonstrado no 08 de janeiro de 2023. Pela falta de apuração e condenação dos crimes cometidos por empresas, predomina na sociedade uma cultura que vigora até hoje, quando os casos mais aberrantes são normalizados e corriqueiros. Se houve um avanço democrático na sociedade, após a Constituinte, ele não entrou nas fábricas, nos campos, nos locais de trabalho em geral”, afirma o manifesto. 

·        Memória e verdade

O jornalista e advogado Dojival Vieira, fundador do PT em Cubatão, milita há 40 anos em busca por Justiça para as vítimas do incêndio da Vila Socó, uma comunidade de palafitas, localizada num mangue e que foi praticamente destruída por um incêndio em 24 de fevereiro de 1984. O incêndio foi causado por vazamento de gasolina que teria começado nas tubulações da Petrobrás, que ligavam a refinaria da cidade ao Porto de Santos. Apesar de o mau cheiro ter sido sentido pela manhã e comunicado às autoridades, nem a Petrobrás, nem a prefeitura local fizeram algo para evacuar os moradores. 

Segundo dados oficiais, 93 pessoas morreram no incêndio, mas levantamentos independentes apontam que o total de vítimas pode ser de 508, uma vez que famílias inteiras desapareceram após a tragédia. O número inclui também as crianças que deixaram de frequentar a escola. 

“Essa associação é mais um instrumento para que a memória e a verdade não sejam apagadas, como há anos aconteceu na Vila Socó”, afirmou.

 

¨      Bolhas criadas pelas redes sociais alimentam extremismo, diz coordenadora do InternetLab. Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo

Impulsionados pelos algoritmos, os conteúdos das redes sociais que chegam pelas telas dos smartphones e computadores podem reforçar vieses preexistentes. Essa dinâmica dificulta o acesso a informações equilibradas e aprofunda tensões políticas e sociais, aponta a coordenadora do Internet Lab, Ester Borges.

Convidada do Pauta Pública da semana, Borges discutiu as consequências de viver nas chamadas “bolhas de informação” criadas pelos algoritmos e as implicações disso para a democracia. O InternetLab é um centro independente de pesquisa interdisciplinar que promove o debate acadêmico e a produção de conhecimento nas áreas de direito e tecnologia, com foco na internet.

Segundo Borges, “quanto mais um indivíduo fica preso na sua própria realidade, mais propenso está em acreditar em meias-verdades, desumanizar e invalidar as crenças de grupos com pontos de vista divergentes”. Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.

·        Estamos mesmo presos em bolhas?

Essa pergunta tem motivado muitas pesquisas aqui dentro do InternetLab, o centro de pesquisa que eu faço parte, mas é difícil responder. Por que é difícil responder? Porque a gente tem muitas variações do que as pessoas chamam de bolha.

Temos uma definição dentro da teoria da comunicação, uma definição muito relacionada a algoritmos que estariam direcionando as pessoas a verem só o que elas gostam de ver nas redes, só o que elas já concordam. Mas aqui dentro do InternetLab, como a gente sempre coloca o usuário como o ponto principal, e não a tecnologia, a gente também chama de bolhas outras coisas, que são, por exemplo, os grupos que a gente decide ativamente participar.

Então, falando desses grupos que a gente decide ativamente participar, eu acho que a gente pode entender pelas pesquisas do InternetLab que sim, nós estamos em bolhas, mas talvez não bolhas tão inconscientes quanto algumas pessoas imaginam ou argumentam.

·        Do que estamos falando concretamente quando falamos em bolhas? E como isso afeta do ponto de vista individual e coletivo? 

Eu penso muito em uma pesquisa sobre vetores da comunicação política online. É uma pesquisa grande que a gente faz já há quatro anos, então a gente tem quatro edições no ar, e nela a gente pergunta para as pessoas muito sobre como elas se relacionam com grupos de WhatsApp e outros aplicativos que têm mensageria. Não é uma rede social pública, mas você consegue falar com pessoas.

Quando a gente pergunta para as pessoas sobre que tipo de grupo elas procuram – onde elas se sentem à vontade para conversar sobre política principalmente, mas também assuntos da sociedade de maneira geral, desde notícias do bairro, a notícia sobre compra –,as pessoas sempre falam que elas têm preferido estar em grupos com afinidades semelhantes.

Cada vez mais elas estão em espaços em que elas retroalimentam os próprios valores, as próprias crenças, porque o divergente não é visto com bons olhos. As pessoas se sentem mais à vontade para conversar sobre assuntos da sociedade em espaços onde elas se sentem acolhidas, e esses espaços dificilmente são grupos como o grupo da família ou o grupo dos amigos. Porque ali existe a afinidade de um laço que não está vinculado ao interesse.

Agora, quando elas vão para um aplicativo como o Telegram, que elas procuram grupos de interesse e não necessariamente conhecem as pessoas ali, elas se sentem super mais à vontade. Parece que a sua vida privada, suas relações privadas, não necessariamente são as pessoas com quem você vai formar opinião.

Agora, as pessoas que vinculam de algum jeito a mesma ideologia política que você frequentam os mesmos fóruns da internet, esse tipo de coisa, aí sim, ali você consegue ser você mesmo, falar sobre sua opinião, principalmente quando se trata de política. Então, acho que se criam divisões muito grandes na sociedade a partir dessas bolhas. Acho que essa é a principal consequência.

·        Qual a relação entre comunicação digital, a lógica das redes sociais e a polarização política e o extremismo?

Quanto mais contato a gente tem só com reafirmações das nossas próprias crenças, dos nossos próprios valores, mais a gente se torna propício acreditar em meias-verdades ou teorias da conspiração, e eu acho que isso está super relacionado com esse extremismo político.

Porque o extremismo, na verdade, é você desumanizar um pouco o outro lado. Eu acredito que tenha essa ligação, assim, de você acabar se relacionando tanto com pessoas que pensam tão parecido com você que a pessoa que pensa diferente é quase desumanizada. E, quando ela é desumanizada, você acredita em teorias conspiratórias sobre ela, você acredita que ela não é um sujeito de direito tal qual você, você acredita que o discurso dela deveria ser cerceado de um jeito diferente do que o seu poderia ser cerceado ou não.

Então, acho que vai mais ou menos por aí, assim, quanto mais você está na sua própria realidade, preso na sua própria realidade, nas suas próprias crenças, menos você enxerga as crenças dos outros como válidas.

 

Fonte: Por Marcelo Oliveira, da Agencia Pública

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