Nasce uma
associação para ajudar vítimas de empresas cúmplices da ditadura
Em evento na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo,
marcado por diversos simbolismos, juristas, defensores de direitos humanos e
pesquisadores lançaram a Associação de Ativistas por Reparação, uma
entidade por meio da qual buscarão ajudar a organizar as vítimas de empresas
investigadas por cumplicidade com o golpe militar de 1964 e a ditadura que se
estabeleceu em seguida e representá-las juridicamente nos inquéritos
abertos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do
Trabalho (MPT) e em eventuais ações ou acordos resultantes dessa atuação.
A USP foi escolhida
como sede do lançamento por dois motivos: para abordar a falta de enfoque na
Justiça de Transição em cursos de graduação de Direito no Brasil, onde é mais
comum em pós-graduações, e para aumentar o envolvimento da USP nesse tema,
destacando a importância de juristas na defesa desse conhecimento na Justiça.
“A USP colaborou
muito para o golpe e para o AI-5 e não levou adiante sua memória quanto a isso,
então é um ato de insurgência importante começarmos essa associação aqui”,
afirmou o professor de direito da USP Jorge Souto Maior, doutor em Direito do
Trabalho, e anfitrião do evento.
Para Sebastião
Neto, coordenador do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas),
entidade que busca o resgate da memória política dos trabalhadores e luta por
memória, verdade, justiça e reparação, organizadora do evento, “a associação
fará representação jurídica, mas mais que isso, vai formar quadros, pois as
pessoas do meio jurídico tem pouco conhecimento sobre Justiça de Transição. A
gente não sabe quem vai fazer as audiências na Amazônia, por exemplo, e Justiça
de Transição tem questões muito próprias, não é simplesmente indenizar e
acabou”, diz.
A Amazônia não foi
citada aleatoriamente. Entre as empresas investigadas, Petrobrás, Paranapanema e Josapar tinham
negócios na região, que violavam direitos de indígenas, ribeirinhos e
trabalhadores, e as investigações têm desdobramentos no Pará e Amazonas,
notadamente.
No último dia 5 de
dezembro, o Ministério Público do Trabalho (MPT), inclusive, anunciou que
propôs uma ação civil pública contra a Volkswagen pelo emprego de trabalho
escravo em uma fazenda mantida pela montadora em Santana do Araguaia, no Pará,
nos anos 1970 e 1980. A companhia estava participando de discussões com o MPT
sobre o caso, mas retirou-se das negociações e passou a alegar que as violações
ocorridas no Pará estão cobertas pelo TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) de
2020.
·
Volks,
o começo de tudo
O IIEP organizou e
liderou o Grupo de Trabalho Sindical da Comissão Nacional da Verdade. Foi no GT
Sindical, a partir de 2013, que se começou a pensar a busca por
responsabilização de empresas por sua cumplicidade com a ditadura. O trabalho
culminou no TAC assinado pela Volkswagen, em 2020, com o MPF, MPT e Ministério
Público de São Paulo.
O acordo, no valor
total de R$ 36 milhões, foi de onde saíram os recursos com os quais foram
financiadas pesquisas acadêmicas, coordenadas pelo Centro de Antropologia e
Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), sobre
mais 13 empresas brasileiras que também apoiaram o golpe e são acusadas de
ligação com violações de direitos humanos sofridas por seus trabalhadores e
pessoas impactadas por seus empreendimentos e negócios.
Até o momento, as
apurações acadêmicas subsidiam investigações do MPF e do MPT sobre a Petrobras,
Folha, Cobrasma, Docas, Paranapanema, Aracruz, Josapar, Itaipu, CSN, Fiat,
Belgo-Mineira, Mannesmann e Embraer. Os principais achados dessas
pesquisas foram contados pela Agência Pública na série de reportagens
“Empresas Cúmplices
da Ditadura”.
Uma décima quarta
investigação foi iniciada no final de 2023 pelo MPF em Minas Gerais sobre a
Usiminas, palco do massacre de Ipatinga, no final de 1963, no qual a PM de
Minas Gerais, no governo Magalhães Pinto, banqueiro e declarado apoiador do
golpe, disparou rajadas de metralhadora contra trabalhadores que protestavam
por melhores condições de trabalho e alojamento.
O número oficial é
de 8 mortos, mas investigações da
Comissão Nacional da Verdade e de pesquisadores que estudaram o
massacre apontam que o número pode ser de 30 a 80 pessoas. Não há, entretanto,
recursos disponíveis, por enquanto, para financiar uma nova pesquisa acadêmica,
nos moldes das realizadas até agora.
·
Não
é só indenização
O jurista Belisário
dos Santos Júnior, ex-secretário de Justiça de São Paulo, e ex-integrante da
Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, citou peculiaridades dos
processos de reparação na Justiça de Transição, que devem seguir o previsto na
resolução 60 da ONU.
“Não é para ficar
em indenização somente. Tem várias outras coisas, como a construção de um
sistema de educação diferenciado, pois quando se faz memória e verdade, temos
que ter um olho na situação atual, pois ela reproduz e muito o que aconteceu na
ditadura militar”, e fez uma analogia: “é como a história da câmara corporal.
Tudo bem, o governador topou (que os PMs usem) mas não é só isso. É mudar a
mentalidade, é mudar a educação”, explicou.
A advogada Rosa
Cardoso, que também foi coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, afirmou
que a meta dela e do IIEP é colocar a associação em funcionamento ainda no primeiro
bimestre de 2025 e confirmou seu compromisso com o grupo e que já vai começar a
trabalhar em seu estatuto, que deve ser o menos formal possível, para estimular
a participação dos interessados. Ela explicou como devem ser os próximos passos
dos inquéritos das empresas e que a participação das vítimas e seus
descendentes é fundamental.
“Temos todas aquelas provas contra eles e as
empresas serão chamadas para fazer um acordo conosco. Nesse acordo, nós já
queremos pedir aquelas reparações que cada grupo de pesquisa estimou, acordou e
conversou com os vitimados daquela categoria. São indenizações materiais, mas
há também um conjunto de outras reparações que devem ser diferenciadas,
conforme sejam trabalhadores, quilombolas, populações indígenas, por exemplo.
Mas nós sabemos se a população indígena vai se interessar por ser reparada
através de uma bolsa de estudos ou de um museu de determinada forma? Isso tem
que ser conversado com os vitimados”, explicou.
“O desafio é termos
um CNPJ que seja um instrumento de luta, mas a diferença é que tendo um
instrumento jurídico nós podemos, entre outras coisas, nesses acordos que estão
sendo feitos com as empresas pedir um valor gigante para ser aplicado em
interesses coletivos”, afirmou Ney Strozake, advogado do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sem organização, acredita o advogado, o
dinheiro pode ir para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos – gerido por um
conselho federal – e ter outras destinações não relacionadas aos casos
concretos.
Ouvida após o
evento, Rosa Cardoso confirma que a associação terá CNPJ para poder atuar
juridicamente nas ações e poder, inclusive, ser autora ou co-autora de
petições.
Neto afirma que a
associação não muda em nada outras formas de organização das vítimas, que continuarão
mantendo o Fórum por Verdade, Justiça e Reparação, que reúne não apenas
vitimados, mas movimentos sociais, sindicatos, centros de memória e entidades
de defesa dos direitos humanos, em campanha permanente pela responsabilização
“dos patrões da ditadura”.
·
Homenagem
O evento na USP foi
também uma homenagem à Jair Krischke, líder do
Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), e um dos brasileiros com mais
conhecimentos sobre a Operação Condor, associação político-militar das
ditaduras do cone-sul nos anos 1970 e 1980, que se auxiliaram para perseguir,
prender, matar e desaparecer com adversários.
O evento começou
com a exibição do documentário “Imprescindível”, de Milton Cougo, que busca
apresentar o trabalho de Krischke e do MJDH que estabeleceu uma rota segura
para exilar mais de 2000 pessoas perseguidas pelas ditaduras da região. “No
Brasil dizem que defendo bandidos, no Uruguai recebo homenagens”, lamenta
Krischke em trecho do documentário.
Ex-presidente da
Comissão da Verdade do Paraná, Ivete Maria Caribé da Rocha, ressaltou o papel
de Krischke. “Jair arriscou sua vida em vários momentos, ao organizar a ida de
várias pessoas que precisavam fugir da morte e da perseguição no cone-sul”,
afirmou.
Krischke foi
convidado a ler o manifesto dos trabalhadores em que eles pedem a
responsabilização de empresas por violações de direitos humanos.
“A violência diária
das polícias se manteve nas periferias desde a Ditadura. E permanece um ranço
antidemocrático em nossa sociedade, especialmente entre os militares, como
ficou demonstrado no 08 de janeiro de 2023. Pela falta de apuração e condenação
dos crimes cometidos por empresas, predomina na sociedade uma cultura que
vigora até hoje, quando os casos mais aberrantes são normalizados e
corriqueiros. Se houve um avanço democrático na sociedade, após a Constituinte,
ele não entrou nas fábricas, nos campos, nos locais de trabalho em geral”,
afirma o manifesto.
·
Memória
e verdade
O jornalista e
advogado Dojival Vieira, fundador do PT em Cubatão, milita há 40 anos em busca
por Justiça para as vítimas do incêndio da Vila Socó, uma comunidade de
palafitas, localizada num mangue e que foi praticamente destruída por um
incêndio em 24 de fevereiro de 1984. O incêndio foi causado por vazamento de
gasolina que teria começado nas tubulações da Petrobrás, que ligavam a
refinaria da cidade ao Porto de Santos. Apesar de o mau cheiro ter sido sentido
pela manhã e comunicado às autoridades, nem a Petrobrás, nem a prefeitura
local fizeram algo para evacuar os moradores.
Segundo dados
oficiais, 93 pessoas morreram no incêndio, mas levantamentos independentes
apontam que o total de vítimas pode ser de 508, uma vez que famílias inteiras
desapareceram após a tragédia. O número inclui também as crianças que deixaram
de frequentar a escola.
“Essa associação é
mais um instrumento para que a memória e a verdade não sejam apagadas, como há
anos aconteceu na Vila Socó”, afirmou.
¨ Bolhas criadas pelas redes sociais alimentam
extremismo, diz coordenadora do InternetLab. Por Andrea DiP, Clarissa Levy,
Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo
Impulsionados pelos
algoritmos, os conteúdos das redes sociais que chegam pelas telas dos
smartphones e computadores podem reforçar vieses preexistentes. Essa dinâmica
dificulta o acesso a informações equilibradas e aprofunda tensões políticas e
sociais, aponta a coordenadora do Internet Lab, Ester Borges.
Convidada
do Pauta Pública da semana, Borges discutiu as consequências de viver
nas chamadas “bolhas de informação” criadas pelos algoritmos e as implicações
disso para a democracia. O InternetLab é um centro independente de pesquisa
interdisciplinar que promove o debate acadêmico e a produção de conhecimento
nas áreas de direito e tecnologia, com foco na internet.
Segundo Borges,
“quanto mais um indivíduo fica preso na sua própria realidade, mais propenso
está em acreditar em meias-verdades, desumanizar e invalidar as crenças de
grupos com pontos de vista divergentes”. Leia os principais pontos da
entrevista e ouça o podcast completo abaixo.
·
Estamos
mesmo presos em bolhas?
Essa pergunta tem
motivado muitas pesquisas aqui dentro do InternetLab, o centro de pesquisa que
eu faço parte, mas é difícil responder. Por que é difícil responder? Porque a
gente tem muitas variações do que as pessoas chamam de bolha.
Temos uma definição
dentro da teoria da comunicação, uma definição muito relacionada a algoritmos
que estariam direcionando as pessoas a verem só o que elas gostam de ver nas
redes, só o que elas já concordam. Mas aqui dentro do InternetLab, como a gente
sempre coloca o usuário como o ponto principal, e não a tecnologia, a gente
também chama de bolhas outras coisas, que são, por exemplo, os grupos que a
gente decide ativamente participar.
Então, falando
desses grupos que a gente decide ativamente participar, eu acho que a gente
pode entender pelas pesquisas do InternetLab que sim, nós estamos em bolhas,
mas talvez não bolhas tão inconscientes quanto algumas pessoas imaginam ou
argumentam.
·
Do
que estamos falando concretamente quando falamos em bolhas? E como isso afeta
do ponto de vista individual e coletivo?
Eu penso muito em
uma pesquisa sobre vetores da
comunicação política online. É uma pesquisa grande que a gente faz já há quatro
anos, então a gente tem quatro edições no ar, e nela a gente pergunta para as
pessoas muito sobre como elas se relacionam com grupos de WhatsApp e outros
aplicativos que têm mensageria. Não é uma rede social pública, mas você
consegue falar com pessoas.
Quando a gente
pergunta para as pessoas sobre que tipo de grupo elas procuram – onde elas se
sentem à vontade para conversar sobre política principalmente, mas também
assuntos da sociedade de maneira geral, desde notícias do bairro, a notícia
sobre compra –,as pessoas sempre falam que elas têm preferido estar em grupos
com afinidades semelhantes.
Cada vez mais elas
estão em espaços em que elas retroalimentam os próprios valores, as próprias
crenças, porque o divergente não é visto com bons olhos. As pessoas se sentem
mais à vontade para conversar sobre assuntos da sociedade em espaços onde elas
se sentem acolhidas, e esses espaços dificilmente são grupos como o grupo da
família ou o grupo dos amigos. Porque ali existe a afinidade de um laço que não
está vinculado ao interesse.
Agora, quando elas
vão para um aplicativo como o Telegram, que elas procuram grupos de interesse e
não necessariamente conhecem as pessoas ali, elas se sentem super mais à vontade.
Parece que a sua vida privada, suas relações privadas, não necessariamente são
as pessoas com quem você vai formar opinião.
Agora, as pessoas
que vinculam de algum jeito a mesma ideologia política que você frequentam os
mesmos fóruns da internet, esse tipo de coisa, aí sim, ali você consegue ser
você mesmo, falar sobre sua opinião, principalmente quando se trata de
política. Então, acho que se criam divisões muito grandes na sociedade a partir
dessas bolhas. Acho que essa é a principal consequência.
·
Qual
a relação entre comunicação digital, a lógica das redes sociais e a polarização
política e o extremismo?
Quanto mais contato
a gente tem só com reafirmações das nossas próprias crenças, dos nossos
próprios valores, mais a gente se torna propício acreditar em meias-verdades ou
teorias da conspiração, e eu acho que isso está super relacionado com esse
extremismo político.
Porque o
extremismo, na verdade, é você desumanizar um pouco o outro lado. Eu acredito
que tenha essa ligação, assim, de você acabar se relacionando tanto com pessoas
que pensam tão parecido com você que a pessoa que pensa diferente é quase
desumanizada. E, quando ela é desumanizada, você acredita em teorias
conspiratórias sobre ela, você acredita que ela não é um sujeito de direito tal
qual você, você acredita que o discurso dela deveria ser cerceado de um jeito
diferente do que o seu poderia ser cerceado ou não.
Então, acho que vai
mais ou menos por aí, assim, quanto mais você está na sua própria realidade,
preso na sua própria realidade, nas suas próprias crenças, menos você enxerga
as crenças dos outros como válidas.
Fonte: Por Marcelo Oliveira, da Agencia Pública
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