A prisão de Braga Netto e a relação com as instituições
militares no Brasil
Sábado pela manhã,
a caserna acordou petrificada. A prisão preventiva do General Braga Netto é um
marco na relação de imputação de militares de alta patente em ensaios golpistas.
A imunidade absoluta conquistada ao longo de toda república brasileira, nas
mais diversas intervenções na política realizadas no século XX, se desfez.
Militares só foram retaliados nas suas próprias disputas internas, mas nunca em
situações de governos civis. Ainda não significa a responsabilização pela
tentativa golpista do 8 de janeiro, pois apenas após o resultado do processo
teremos o deslinde da ação que corre no STF. No entanto, já representa um marco
político e jurídico na relação com os militares.
Além da ressalva de
que não representa a responsabilização de Braga Netto, porque ainda não há
condenação, é fundamental entendermos o percurso do general até o momento e
sobretudo, o que há de estrutural na sua atuação. A responsabilização é um passo
fundamental para o reconhecimento da violência exercida e da necessária
premissa democrática de que os militares podem ser responsabilizados.
No entanto, se a
responsabilização significa compartimentação, ou seja, se ela é a
individualização de condutas institucionais e grupais (apesar de ainda assim
ser um passo relevante, porque até então, os militares de alta patente gozavam
de imunidade na prática), ela não atinge um objetivo mais profundo, que é a
capacidade de apontar para mudanças estruturais que evitem novas situações da
mesma natureza.
Nesse sentido,
precisamos entender momentos chaves recentes do percurso de Braga Netto até sua
liderança golpista. Quais foram os principais passos da sua jornada e o que
representa a sua atuação individual e o que demanda reflexões sobre o espaço
que as instituições militares, em especial as Forças Armadas, tem na política
brasileira.
·
Braga
Netto e o Haiti
As operações da
Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti), iniciadas em
2004, durante o governo Lula, foram um ponto importante de
rearticulação de um grupo político de militares com intervenção na política. A dinâmica da
intervenção no Haiti atribuía ao comandante da operação a função de governança
do país, além de liderança militar e responsabilidade pela segurança pública. O
Brasil desempenhou um papel fundamental nessa operação, sendo um dos principais
países a assumir a tarefa de interventor e, portanto, responsável pela
indicação dos comandantes e outras atribuições centrais.
A geração principal
que será o núcleo do governo Bolsonaro participou dessa intervenção, que teve
um papel fundamental para a articulação desse grupo e, sobretudo, para uma nova
intervenção militar na política brasileira. Participaram dessa ação, além do
general Braga Netto, o general Heleno, Tarcísio de Freitas, general Fernando
Azevedo, general Santos Cruz, general Luiz Ramos, general Pujol e entre outros.
As ações externas
de militares em outros países, ocupando postos de intervenção política,
historicamente, costumam ser precedidas de novas articulações internas na
política brasileira. Não há uma separação, pelas atribuições que os militares
brasileiros possuem segundo a Constituição de 1988, que permita que esse tipo
de atribuição externa não resvale na tentativa de intervenção interna
(especialmente pelo papel na GLO). Isso foi evidente com o protagonismo desse
grupo durante o governo Bolsonaro.
Braga Netto e a
Intervenção Federal militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro
Após o golpe de
2016, com a assunção de Temer à presidência, houve um retorno de militares
ocupando papéis centrais no governo com funções políticas. É o caso, em
especial, do Ministério da Defesa (onde as Forças Armadas são alocadas), que,
desde a sua criação, nunca havia tido um titular militar na pasta. Isso porque,
ao ser criado, o ministério retirou o controle direto das Forças Armadas sobre
si, subordinando-as ao controle civil e extinguindo os Ministérios da
Aeronáutica, da Marinha e do Exército.
É nesse contexto de
golpe e da utilização das Garantias da Lei e da Ordem (GLO), que foi decretada
em fevereiro de 2018, que ocorreu uma Intervenção Federal Militar na Segurança
Pública do Rio de Janeiro, juntamente com uma GLO. Essas são operações diretas
das Forças Armadas na segurança pública, o que não deveria ocorrer, pois essa
função é atribuída à polícia.
Ressalta-se que, em
2017, houve uma alteração legal para que crimes contra a vida cometidos por militares
durante GLOs fossem julgados pela justiça militar e não mais pela justiça
comum. Um salvo-conduto foi aprovado no ano anterior a uma das principais GLOs,
que teve inúmeras denúncias de violações de direitos humanos no Complexo do
Alemão.
Braga Netto como
general do Exército do Leste é designado o interventor. Portanto, ainda na
ativa, ou seja, sem ter afastamento do Exército, ocupa uma posição
eminentemente política que dava a ele parcela dos poderes de governador.
Durante essa
intervenção é realizada a execução da vereadora Marielle Franco. A atuação de
agentes do estado, incluindo o delegado da polícia civil, e todo o processo de
tentativa de obstrução a nível estadual, colocam em xeque o papel do general
nesse enredo e sua atuação geral na intervenção.
Apesar disso, Braga
Netto sai desse processo como um grande nome entre os generais e é figura
central na candidatura de Bolsonaro. Sendo inclusive, um dos principais elos
entre os generais da ativa e da reserva e do projeto militar de intervenção
articulado em torno de ex-presidente.
·
Braga
Netto e a Casa Civil
Após a eleição de
Bolsonaro, o general assumiu a Casa Civil, o cargo mais relevante para a
articulação política do governo. Ele era considerado o ponto de mediação,
alguém com jogo de cintura para promover o diálogo político. Mais uma vez, vale
destacar que, nesse momento, ele ainda estava na ativa até fevereiro de 2020.
Portanto, a Casa Civil (leia-se CIVIL) foi ocupada por um militar da ativa. A
mistura entre Exército e governo, além das inúmeras nomeações de militares para
cargos civis, é notória.
Apesar de ocupar o
cargo por um breve período (inclusive também pela necessidade do centrão de
recuperar esse papel), sua atuação garantiu a aprovação da Reforma da
Previdência em 2019 (que deixou de fora os militares).
Braga Netto e o
Ministério da Defesa
Em um dos momentos
mais críticos do governo Bolsonaro, Braga Netto assumiu o Ministério da Defesa.
Foi no final de março de 2021, após a saída do general Fernando Azevedo e a
mudança na cadeia de comando da chefia das três Forças Armadas, com a renúncia
deles.
Essa crise, no
contexto da pandemia, das críticas à postura negacionista e à conduta de
Pazuello à frente do Ministério da Saúde, representou um primeiro momento
importante de controle desse grupo político dentro das Forças Armadas. Embora
essas fizessem parte do projeto bolsonarista como um todo, e o fato de nenhuma
outra força política ter de fato um grupo articulado nesse setor, isso não
significa que não haja disputas internas e que esses setores sejam homogêneos,
e muito menos que absolutamente todos os seus integrantes se disponham a ir às
últimas consequências desse projeto, especialmente do projeto golpista.
Portanto, em um dos
momentos de maior dificuldade na relação com as Forças Armadas e da necessidade
de controle delas pelo governo militar de Bolsonaro, o general assumiu o
Ministério e a liderança junto às Forças. Essa posição seria importante e
imprescindível para o processo de maior interconexão com as Forças Armadas
enquanto instituição. Vale lembrar dos feriados da Independência e da
República, em especial, o de 7 de setembro de 2021, quando o Exército
participou de mobilizações que buscavam ensaiar o processo golpista e a
eventual adesão das Forças Armadas e policiais. Além disso, poucas semanas
antes, em 10 de agosto, no dia da votação do voto impresso no Congresso, foi
deslocado um treinamento militar para a frente do Congresso como forma de
demonstração de força e evento teste para eventuais processos
intervencionistas.
·
Braga
Netto e a Vice-presidência
Em 2022, Braga
Netto deixou o cargo no Ministério da Defesa para assumir o lugar de vice na
chapa de Bolsonaro à reeleição à presidência da República. Portanto, todo papel
realizado até esse momento o consagra como a principal figura militar do
governo anterior (além do próprio Bolsonaro).
Essa chapa saiu
derrotada das eleições e buscou articular um golpe de Estado, conforme já
revelado pela PF e demonstrado no dia 8 de janeiro de 2023, além de todos os
seus atos preparatórios (acampamentos golpistas, tentativas de bombas, atos
golpistas etc.). No entanto, tendo em vista a fragilidade da articulação
golpista e buscando um acordo para a manutenção de parte do espaço conquistado
pelos militares durante o governo negacionista, não houve adesão generalizada
do alto escalão. Um setor que até hoje busca, por meio da mediação de Múcio, no
Ministério da Defesa de Lula, restringir e estancar as investigações no núcleo
mais duro de Bolsonaro, sem retaliações e mudanças estruturais nas instituições
militares.
Braga Netto também
se encontra inelegível por 8 anos, juntamente com Bolsonaro, após a chapa
presidencial ser condenada pelo TSE em 2023, por abuso político e econômico
durante as eleições pelas manifestações do 7 de setembro de 2022.
Braga Netto
articula o novo e o velho golpismo, mas representa um modelo de relações cívico
militares intervencionista
Por essa breve
retomada histórica dos principais momentos de avanço da figura do general Braga
Netto, é possível deixar evidente a liderança na sua posição militar e, ao
mesmo tempo, o quanto a sua construção é coletiva e institucional de um
processo intervencionista dos militares na política.
Ele articula o
velho e o novo porque faz parte de uma nova geração das Forças Armadas, não
aquela atuante durante a Ditadura Militar Empresarial, embora formada nela, e
que possui uma nova visão intervencionista, moldada nas formas de intervenção
da Nova República, especialmente pela utilização exagerada de GLOs e de todo o
aparato violento da segurança pública. Esse papel de manutenção do status quo,
por meio do extermínio da juventude negra, pobre e periférica, onde não há
respeito algum aos direitos e, portanto, longe da faceta liberal-democrática, é
essencial na construção política desses setores. Da mesma forma, é crucial para
as polícias militares desenvolverem seus projetos de poder eleitorais e
milicianos. O aparato policial militarizado e militar nas periferias, através
da GLO, é uma forma de intervenção política militar utilizada ao longo de toda
a Nova República. E não é circunstancial que ele se desenvolva ainda mais após
a Minustah.
Ao mesmo tempo,
essa forma de intervenção política institucionalizada dentro da dinâmica
eleitoral não é uma novidade no sistema político brasileiro. Ocorreram várias
situações semelhantes ao longo do século XX, com maior ou menor liberdade dos
militares em relação à institucionalidade e às elites civis. Isso porque os
militares sempre tiveram esse papel de garantir o status quo, ou seja, realizar
o controle social em uma sociedade profundamente desigual. No Brasil, para
manter essa agenda distributiva, sempre foi necessária a utilização das Forças
Armadas e da segurança pública.
Por outro lado,
percebemos que essa forma de participação só é possível por meio de um arranjo institucional
de aparelhos do Estado que permitem essas intervenções e que foram aprofundadas
desde o Golpe de 2016 (com mudanças legislativas e avanço da participação dos
militares). A possibilidade, por exemplo, de um militar da ativa ser
interventor federal e ministro de Estado é, por si só, um fato assombroso da
nossa institucionalidade. Assim como a competência ampliada da justiça militar,
o controle dos sistemas de inteligência pelos militares (conforme também
demonstrado após o 8 de janeiro), a Garantia da Lei e da Ordem, a polícia
militar, dentre outros.
Por essa razão, que
nesse momento histórico, onde um militar 4 estrelas é preso preventivamente no
Brasil por tentativa golpista, temos que nos atentar para três elementos
centrais que precisam ser considerados.
O primeiro deles é
que, para haver responsabilização, é necessária, além da prisão preventiva, a
condenação de Braga Netto, dos demais militares e do próprio Bolsonaro pela
tentativa golpista. O segundo é que não é razoável compartimentar esse processo
de responsabilização, excluindo as instituições militares. É condição basilar
que haja reformas profundas nessas instituições e que o controle seja tomado
por civis, afastando esses setores.
E, por fim, a
agenda da desmilitarização envolve o combate ao genocídio negro, à violência
policial nas periferias e à desigualdade social. O sentido, desde 2016, do
retorno dos militares à política é avançar na precarização da vida e do
trabalho e na concentração de renda. Portanto, a agenda econômica e a violência
policial são elementos estruturantes desse projeto, representado por Braga
Netto, mas consolidado na dinâmica da disputa de classes da sociedade
brasileira desde a Independência.
¨ Braga Netto, a trajetória do interventor. Por Pedro
Marin
O general Braga
Netto, ex-candidato a vice de Bolsonaro, foi preso neste sábado (14) por
supostamente ter
buscado interferir nas investigações da Polícia Federal acerca dos
planejamentos golpistas de 2022. De acordo com a investigação da PF,
reuniões golpistas foram realizadas na casa do general, e ele teria
entregado dinheiro a um tenente-coronel para a realização da operação voltada a
matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.
Como militar, a
trajetória de Braga Netto é profícua. Dentre os destaques, está o fato de ter
sido adido militar da embaixada do Brasil nos Estados Unidos – uma posição
tradicionalmente de relevo nas fileiras militares. Na volta dos EUA, seria
coordenador geral da assessoria especial das Olimpíadas no Rio, e depois
assumiria o comando da 1a Região Militar (Rio de Janeiro e Espírito Santo),
entre 2015 e 2016. Seria depois comandante Militar do Leste (2016-2019) e,
durante esse período, nomeado por Michel Temer como interventor federal no Rio
de Janeiro.
Segundo o
ex-comandante do Exército, general Villas Bôas, para a escolha de Braga Netto
como interventor não pesou só o fato de ser à época Comandante Militar do
Leste, “mas, principalmente, por ser um oficial eclético, profundo conhecedor
da geografia do Rio de Janeiro e dos personagens que estariam envolvidos”.
No seu relato, disponível no livro “General Villas Bôas: conversa com o
comandante”, de Celso Castro, o ex-comandante do Exército diz ainda: “Um fator
de êxito importante foi a escolha do general Richard [Nunes] para ocupar o
cargo de secretário de Segurança. Richard, logicamente que com apoio do Braga
Netto, conquistou o apoio das polícias civil e militar, promovendo a elevação
da autoestima dos policiais e o saneamento das estruturas administrativas
de ambas.”
A ascensão dos
militares à cena política nacional é indissociável da intervenção federal no
Rio de Janeiro. O mesmo Villas Bôas lembra que “a maneira de ser do Braga Netto
levou o presidente Bolsonaro a nomeá-lo para a chefia da Casa Civil” – um cargo
fundamental, responsável, dentre outras coisas, pela relação da presidência com
o Parlamento; o centro nevrálgico da negociação política do Governo Federal.
Se for verdade que
Braga Netto participou dos planejamentos golpistas e que chegou ao ponto de
entregar dinheiro a um militar para que se matasse a chapa vencedora e um juiz
do Supremo, e ainda que tentou interferir nas investigações, é justo investigar
também qual foi o papel do general durante a intervenção no Rio. Ele a
comandava, afinal; e foi ela a linha divisória entre o Brasil em que se supunha
que os militares se restringiriam às casernas e quartéis e o Brasil em que
atuam ostensivamente na política nacional.
Foi também sob a
intervenção, e portanto sob a batuta do general, que a vereadora Marielle
Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados a tiros de fuzil no
Rio de Janeiro. O general Richard Nunes, à época secretário de Segurança do Rio
sob intervenção, disse em novembro de 2018 que esperava
uma conclusão das investigações sobre a morte de Marielle e Anderson até o fim
da intervenção,
embora indicando que haviam de ser cuidadosos, para ter “provas cabais que não
venham a ser contestadas em juízo”. Em maio, disse que sob a
intervenção havia “muito mais condições para que o crime fosse elucidado do que
se não estivesse”. Nunes também foi
o responsável pela indicação do delegado Rivaldo Barbosa à chefia da Polícia
Civil do Rio de Janeiro, um dia antes da morte de Marielle. Rivaldo, por sua
vez, é acusado pela PF por ter participado na morte da vereadora. A
intervenção, ao menos de acordo com as apurações da PF, não dava melhores
condições para a elucidação do caso, e Nunes aparentemente não conseguiu
promover um “saneamento das estruturas administrativas das polícias”, como dissera
Villas Bôas.
Como viemos
insistindo, as investigações e eventuais punições a militares que tenham
cometido crimes, embora importantes, são insuficientes. O problema das Forças
Armadas e do golpismo não é fundamentalmente de ordem penal, mas político e estratégico:
diz respeito aos objetivos das organizações militares (para além das
Forças Armadas, diga-se), seus limites, estruturas e formas de atuação.
Qualquer balanço que demonstre que um determinado general era golpista e
criminoso quando candidato a vice, mas que se negue a avaliar a atuação deste
mesmo general nos momentos que antecederam este momento e o levaram a tal
posição, estará certamente incompleto: servirá, quando muito, para que se
alegue um “desvio individual” de um militar, como faz o ministro da Defesa,
José Múcio, enquanto se mantém as estruturas e procedimentos das Forças Armadas
intocados.
Uma prova cabal
disso é o fato de Braga Netto, na reserva desde 2020, estar hoje preso, mas
Richard Nunes, o então secretário de Segurança do Rio sob intervenção, ser hoje
chefe do Estado Maior do Exército; última posição de Braga Netto, aliás,
antes dele adentrar a política como ministro-chefe da Casa Civil de
Bolsonaro. Nunes
também é um dos militares sobre os quais se incensa a mística legalista. Uma investigação
profunda sobre o passado de Braga Netto que passasse pelo episódio decisivo da
quartelização da política que foi a intervenção no Rio de Janeiro certamente
esbarraria em muitos militares hoje na ativa e em cargos relevantes. Talvez
fosse um passo importante em matéria penal; certamente seria um passo
fundamental em matéria política, que é o que nos interessa, afinal, muito mais
do que as punições – a mudança.
Fonte: Por Julia
Almeida V. da Silva, em Le Monde/Revista Opera
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