quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

A prisão de Braga Netto e a relação com as instituições militares no Brasil

Sábado pela manhã, a caserna acordou petrificada. A prisão preventiva do General Braga Netto é um marco na relação de imputação de militares de alta patente em ensaios golpistas. A imunidade absoluta conquistada ao longo de toda república brasileira, nas mais diversas intervenções na política realizadas no século XX, se desfez. Militares só foram retaliados nas suas próprias disputas internas, mas nunca em situações de governos civis. Ainda não significa a responsabilização pela tentativa golpista do 8 de janeiro, pois apenas após o resultado do processo teremos o deslinde da ação que corre no STF. No entanto, já representa um marco político e jurídico na relação com os militares.

Além da ressalva de que não representa a responsabilização de Braga Netto, porque ainda não há condenação, é fundamental entendermos o percurso do general até o momento e sobretudo, o que há de estrutural na sua atuação. A responsabilização é um passo fundamental para o reconhecimento da violência exercida e da necessária premissa democrática de que os militares podem ser responsabilizados.

No entanto, se a responsabilização significa compartimentação, ou seja, se ela é a individualização de condutas institucionais e grupais (apesar de ainda assim ser um passo relevante, porque até então, os militares de alta patente gozavam de imunidade na prática), ela não atinge um objetivo mais profundo, que é a capacidade de apontar para mudanças estruturais que evitem novas situações da mesma natureza.

Nesse sentido, precisamos entender momentos chaves recentes do percurso de Braga Netto até sua liderança golpista. Quais foram os principais passos da sua jornada e o que representa a sua atuação individual e o que demanda reflexões sobre o espaço que as instituições militares, em especial as Forças Armadas, tem na política brasileira.

·        Braga Netto e o Haiti

As operações da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti), iniciadas em 2004, durante o governo Lula, foram um ponto importante de rearticulação de um grupo político de militares com intervenção na política. A dinâmica da intervenção no Haiti atribuía ao comandante da operação a função de governança do país, além de liderança militar e responsabilidade pela segurança pública. O Brasil desempenhou um papel fundamental nessa operação, sendo um dos principais países a assumir a tarefa de interventor e, portanto, responsável pela indicação dos comandantes e outras atribuições centrais.

A geração principal que será o núcleo do governo Bolsonaro participou dessa intervenção, que teve um papel fundamental para a articulação desse grupo e, sobretudo, para uma nova intervenção militar na política brasileira. Participaram dessa ação, além do general Braga Netto, o general Heleno, Tarcísio de Freitas, general Fernando Azevedo, general Santos Cruz, general Luiz Ramos, general Pujol e entre outros.

As ações externas de militares em outros países, ocupando postos de intervenção política, historicamente, costumam ser precedidas de novas articulações internas na política brasileira. Não há uma separação, pelas atribuições que os militares brasileiros possuem segundo a Constituição de 1988, que permita que esse tipo de atribuição externa não resvale na tentativa de intervenção interna (especialmente pelo papel na GLO). Isso foi evidente com o protagonismo desse grupo durante o governo Bolsonaro.

Braga Netto e a Intervenção Federal militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro

Após o golpe de 2016, com a assunção de Temer à presidência, houve um retorno de militares ocupando papéis centrais no governo com funções políticas. É o caso, em especial, do Ministério da Defesa (onde as Forças Armadas são alocadas), que, desde a sua criação, nunca havia tido um titular militar na pasta. Isso porque, ao ser criado, o ministério retirou o controle direto das Forças Armadas sobre si, subordinando-as ao controle civil e extinguindo os Ministérios da Aeronáutica, da Marinha e do Exército.

É nesse contexto de golpe e da utilização das Garantias da Lei e da Ordem (GLO), que foi decretada em fevereiro de 2018, que ocorreu uma Intervenção Federal Militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro, juntamente com uma GLO. Essas são operações diretas das Forças Armadas na segurança pública, o que não deveria ocorrer, pois essa função é atribuída à polícia.

Ressalta-se que, em 2017, houve uma alteração legal para que crimes contra a vida cometidos por militares durante GLOs fossem julgados pela justiça militar e não mais pela justiça comum. Um salvo-conduto foi aprovado no ano anterior a uma das principais GLOs, que teve inúmeras denúncias de violações de direitos humanos no Complexo do Alemão.

Braga Netto como general do Exército do Leste é designado o interventor. Portanto, ainda na ativa, ou seja, sem ter afastamento do Exército, ocupa uma posição eminentemente política que dava a ele parcela dos poderes de governador.

Durante essa intervenção é realizada a execução da vereadora Marielle Franco. A atuação de agentes do estado, incluindo o delegado da polícia civil, e todo o processo de tentativa de obstrução a nível estadual, colocam em xeque o papel do general nesse enredo e sua atuação geral na intervenção.

Apesar disso, Braga Netto sai desse processo como um grande nome entre os generais e é figura central na candidatura de Bolsonaro. Sendo inclusive, um dos principais elos entre os generais da ativa e da reserva e do projeto militar de intervenção articulado em torno de ex-presidente.

·        Braga Netto e a Casa Civil

Após a eleição de Bolsonaro, o general assumiu a Casa Civil, o cargo mais relevante para a articulação política do governo. Ele era considerado o ponto de mediação, alguém com jogo de cintura para promover o diálogo político. Mais uma vez, vale destacar que, nesse momento, ele ainda estava na ativa até fevereiro de 2020. Portanto, a Casa Civil (leia-se CIVIL) foi ocupada por um militar da ativa. A mistura entre Exército e governo, além das inúmeras nomeações de militares para cargos civis, é notória.

Apesar de ocupar o cargo por um breve período (inclusive também pela necessidade do centrão de recuperar esse papel), sua atuação garantiu a aprovação da Reforma da Previdência em 2019 (que deixou de fora os militares).

Braga Netto e o Ministério da Defesa

Em um dos momentos mais críticos do governo Bolsonaro, Braga Netto assumiu o Ministério da Defesa. Foi no final de março de 2021, após a saída do general Fernando Azevedo e a mudança na cadeia de comando da chefia das três Forças Armadas, com a renúncia deles.

Essa crise, no contexto da pandemia, das críticas à postura negacionista e à conduta de Pazuello à frente do Ministério da Saúde, representou um primeiro momento importante de controle desse grupo político dentro das Forças Armadas. Embora essas fizessem parte do projeto bolsonarista como um todo, e o fato de nenhuma outra força política ter de fato um grupo articulado nesse setor, isso não significa que não haja disputas internas e que esses setores sejam homogêneos, e muito menos que absolutamente todos os seus integrantes se disponham a ir às últimas consequências desse projeto, especialmente do projeto golpista.

Portanto, em um dos momentos de maior dificuldade na relação com as Forças Armadas e da necessidade de controle delas pelo governo militar de Bolsonaro, o general assumiu o Ministério e a liderança junto às Forças. Essa posição seria importante e imprescindível para o processo de maior interconexão com as Forças Armadas enquanto instituição. Vale lembrar dos feriados da Independência e da República, em especial, o de 7 de setembro de 2021, quando o Exército participou de mobilizações que buscavam ensaiar o processo golpista e a eventual adesão das Forças Armadas e policiais. Além disso, poucas semanas antes, em 10 de agosto, no dia da votação do voto impresso no Congresso, foi deslocado um treinamento militar para a frente do Congresso como forma de demonstração de força e evento teste para eventuais processos intervencionistas.

·        Braga Netto e a Vice-presidência

Em 2022, Braga Netto deixou o cargo no Ministério da Defesa para assumir o lugar de vice na chapa de Bolsonaro à reeleição à presidência da República. Portanto, todo papel realizado até esse momento o consagra como a principal figura militar do governo anterior (além do próprio Bolsonaro).

Essa chapa saiu derrotada das eleições e buscou articular um golpe de Estado, conforme já revelado pela PF e demonstrado no dia 8 de janeiro de 2023, além de todos os seus atos preparatórios (acampamentos golpistas, tentativas de bombas, atos golpistas etc.). No entanto, tendo em vista a fragilidade da articulação golpista e buscando um acordo para a manutenção de parte do espaço conquistado pelos militares durante o governo negacionista, não houve adesão generalizada do alto escalão. Um setor que até hoje busca, por meio da mediação de Múcio, no Ministério da Defesa de Lula, restringir e estancar as investigações no núcleo mais duro de Bolsonaro, sem retaliações e mudanças estruturais nas instituições militares.

Braga Netto também se encontra inelegível por 8 anos, juntamente com Bolsonaro, após a chapa presidencial ser condenada pelo TSE em 2023, por abuso político e econômico durante as eleições pelas manifestações do 7 de setembro de 2022.

Braga Netto articula o novo e o velho golpismo, mas representa um modelo de relações cívico militares intervencionista

Por essa breve retomada histórica dos principais momentos de avanço da figura do general Braga Netto, é possível deixar evidente a liderança na sua posição militar e, ao mesmo tempo, o quanto a sua construção é coletiva e institucional de um processo intervencionista dos militares na política.

Ele articula o velho e o novo porque faz parte de uma nova geração das Forças Armadas, não aquela atuante durante a Ditadura Militar Empresarial, embora formada nela, e que possui uma nova visão intervencionista, moldada nas formas de intervenção da Nova República, especialmente pela utilização exagerada de GLOs e de todo o aparato violento da segurança pública. Esse papel de manutenção do status quo, por meio do extermínio da juventude negra, pobre e periférica, onde não há respeito algum aos direitos e, portanto, longe da faceta liberal-democrática, é essencial na construção política desses setores. Da mesma forma, é crucial para as polícias militares desenvolverem seus projetos de poder eleitorais e milicianos. O aparato policial militarizado e militar nas periferias, através da GLO, é uma forma de intervenção política militar utilizada ao longo de toda a Nova República. E não é circunstancial que ele se desenvolva ainda mais após a Minustah.

Ao mesmo tempo, essa forma de intervenção política institucionalizada dentro da dinâmica eleitoral não é uma novidade no sistema político brasileiro. Ocorreram várias situações semelhantes ao longo do século XX, com maior ou menor liberdade dos militares em relação à institucionalidade e às elites civis. Isso porque os militares sempre tiveram esse papel de garantir o status quo, ou seja, realizar o controle social em uma sociedade profundamente desigual. No Brasil, para manter essa agenda distributiva, sempre foi necessária a utilização das Forças Armadas e da segurança pública.

Por outro lado, percebemos que essa forma de participação só é possível por meio de um arranjo institucional de aparelhos do Estado que permitem essas intervenções e que foram aprofundadas desde o Golpe de 2016 (com mudanças legislativas e avanço da participação dos militares). A possibilidade, por exemplo, de um militar da ativa ser interventor federal e ministro de Estado é, por si só, um fato assombroso da nossa institucionalidade. Assim como a competência ampliada da justiça militar, o controle dos sistemas de inteligência pelos militares (conforme também demonstrado após o 8 de janeiro), a Garantia da Lei e da Ordem, a polícia militar, dentre outros.

Por essa razão, que nesse momento histórico, onde um militar 4 estrelas é preso preventivamente no Brasil por tentativa golpista, temos que nos atentar para três elementos centrais que precisam ser considerados.

O primeiro deles é que, para haver responsabilização, é necessária, além da prisão preventiva, a condenação de Braga Netto, dos demais militares e do próprio Bolsonaro pela tentativa golpista. O segundo é que não é razoável compartimentar esse processo de responsabilização, excluindo as instituições militares. É condição basilar que haja reformas profundas nessas instituições e que o controle seja tomado por civis, afastando esses setores.

E, por fim, a agenda da desmilitarização envolve o combate ao genocídio negro, à violência policial nas periferias e à desigualdade social. O sentido, desde 2016, do retorno dos militares à política é avançar na precarização da vida e do trabalho e na concentração de renda. Portanto, a agenda econômica e a violência policial são elementos estruturantes desse projeto, representado por Braga Netto, mas consolidado na dinâmica da disputa de classes da sociedade brasileira desde a Independência.

 

¨      Braga Netto, a trajetória do interventor. Por Pedro Marin

O general Braga Netto, ex-candidato a vice de Bolsonaro, foi preso neste sábado (14) por supostamente ter buscado interferir nas investigações da Polícia Federal acerca dos planejamentos golpistas de 2022. De acordo com a investigação da PF, reuniões golpistas foram realizadas na casa do general, e ele teria entregado dinheiro a um tenente-coronel para a realização da operação voltada a matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.

Como militar, a trajetória de Braga Netto é profícua. Dentre os destaques, está o fato de ter sido adido militar da embaixada do Brasil nos Estados Unidos – uma posição tradicionalmente de relevo nas fileiras militares. Na volta dos EUA, seria coordenador geral da assessoria especial das Olimpíadas no Rio, e depois assumiria o comando da 1a Região Militar (Rio de Janeiro e Espírito Santo), entre 2015 e 2016. Seria depois comandante Militar do Leste (2016-2019) e, durante esse período, nomeado por Michel Temer como interventor federal no Rio de Janeiro.

Segundo o ex-comandante do Exército, general Villas Bôas, para a escolha de Braga Netto como interventor não pesou só o fato de ser à época Comandante Militar do Leste, “mas, principalmente, por ser um oficial eclético, profundo conhecedor da geografia do Rio de Janeiro e dos personagens que estariam envolvidos”. No seu relato, disponível no livro “General Villas Bôas: conversa com o comandante”, de Celso Castro, o ex-comandante do Exército diz ainda: “Um fator de êxito importante foi a escolha do general Richard [Nunes] para ocupar o cargo de secretário de Segurança. Richard, logicamente que com apoio do Braga Netto, conquistou o apoio das polícias civil e militar, promovendo a elevação da autoestima dos policiais e o saneamento das estruturas administrativas de ambas.”

A ascensão dos militares à cena política nacional é indissociável da intervenção federal no Rio de Janeiro. O mesmo Villas Bôas lembra que “a maneira de ser do Braga Netto levou o presidente Bolsonaro a nomeá-lo para a chefia da Casa Civil” – um cargo fundamental, responsável, dentre outras coisas, pela relação da presidência com o Parlamento; o centro nevrálgico da negociação política do Governo Federal.

Se for verdade que Braga Netto participou dos planejamentos golpistas e que chegou ao ponto de entregar dinheiro a um militar para que se matasse a chapa vencedora e um juiz do Supremo, e ainda que tentou interferir nas investigações, é justo investigar também qual foi o papel do general durante a intervenção no Rio. Ele a comandava, afinal; e foi ela a linha divisória entre o Brasil em que se supunha que os militares se restringiriam às casernas e quartéis e o Brasil em que atuam ostensivamente na política nacional.

Foi também sob a intervenção, e portanto sob a batuta do general, que a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados a tiros de fuzil no Rio de Janeiro. O general Richard Nunes, à época secretário de Segurança do Rio sob intervenção, disse em novembro de 2018 que esperava uma conclusão das investigações sobre a morte de Marielle e Anderson até o fim da intervenção, embora indicando que haviam de ser cuidadosos, para ter “provas cabais que não venham a ser contestadas em juízo”. Em maio, disse que sob a intervenção havia “muito mais condições para que o crime fosse elucidado do que se não estivesse”. Nunes também foi o responsável pela indicação do delegado Rivaldo Barbosa à chefia da Polícia Civil do Rio de Janeiro, um dia antes da morte de Marielle. Rivaldo, por sua vez, é acusado pela PF por ter participado na morte da vereadora. A intervenção, ao menos de acordo com as apurações da PF, não dava melhores condições para a elucidação do caso, e Nunes aparentemente não conseguiu promover um “saneamento das estruturas administrativas das polícias”, como dissera Villas Bôas.

Como viemos insistindo, as investigações e eventuais punições a militares que tenham cometido crimes, embora importantes, são insuficientes. O problema das Forças Armadas e do golpismo não é fundamentalmente de ordem penal, mas político e estratégico: diz respeito aos objetivos das organizações militares (para além das Forças Armadas, diga-se), seus limites, estruturas e formas de atuação. Qualquer balanço que demonstre que um determinado general era golpista e criminoso quando candidato a vice, mas que se negue a avaliar a atuação deste mesmo general nos momentos que antecederam este momento e o levaram a tal posição, estará certamente incompleto: servirá, quando muito, para que se alegue um “desvio individual” de um militar, como faz o ministro da Defesa, José Múcio, enquanto se mantém as estruturas e procedimentos das Forças Armadas intocados.

Uma prova cabal disso é o fato de Braga Netto, na reserva desde 2020, estar hoje preso, mas Richard Nunes, o então secretário de Segurança do Rio sob intervenção, ser hoje chefe do Estado Maior do Exército; última posição de Braga Netto, aliás,  antes dele adentrar a política como ministro-chefe da Casa Civil de Bolsonaro. Nunes também é um dos militares sobre os quais se incensa a mística legalista. Uma investigação profunda sobre o passado de Braga Netto que passasse pelo episódio decisivo da quartelização da política que foi a intervenção no Rio de Janeiro certamente esbarraria em muitos militares hoje na ativa e em cargos relevantes. Talvez fosse um passo importante em matéria penal; certamente seria um passo fundamental em matéria política, que é o que nos interessa, afinal, muito mais do que as punições – a mudança. 

 

Fonte: Por Julia Almeida V. da Silva, em Le Monde/Revista Opera

 

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