PA: Agricultura orgânica contra o colapso climático
Da lama amarela do garimpo à terra preta da horta,
Sebastião Heraldo Lira Gomes já fez de tudo um pouco. Aos 45 anos, trabalhou
como pedreiro, em empresas de pavimentação e de produção de tijolos, e já foi
até garimpeiro. No garimpo, viu sua vida por um fio enquanto catava galhos na
lama para fazer a limpeza do material a ser minerado. Um colega de trabalho
avisou, preocupado, apontando para uma
montanha de rejeitos: “Essa barreira vai desabar”. De
fato desabou, e Sebastião escapou por pouco. Ele contou o “causo” enquanto
plantava mudas de alface em uma das aleias na sua horta orgânica em Altamira,
no sudoeste do Pará, uma cidade marcada por dois monumentos de destruição da
floresta: o marco inaugural da Transamazônica e a Usina Hidrelétrica de Belo
Monte.
“Garimpo é uma aventura, você vai, não sabe nem se
volta”, comenta Sebastião. Ele sobreviveu ao perigo, mas não voltou mais para a
mineração. Filho de agricultor, nascido na Ilha do Bacabal, no Xingu, cresceu
ajudando sua família a plantar arroz, feijão, milho e mandioca. Até os 25 anos,
seguiu o mesmo ofício dos pais, depois foi viver em Altamira, onde fez de tudo
um pouco. Em 2021, por sugestão da esposa, Alderene, de 51 anos, deixou o
garimpo e apostou na agricultura como fonte de renda, pela segurança de
trabalhar em algo seu e próximo da família.
Procurou a Empresa de Assistência Técnica e Extensão
Rural do Estado do Pará (Emater) e ouviu do técnico Joabe dos Santos: “Por que
o senhor não planta orgânicos?”. Sebastião nem sabia o que eram alimentos
orgânicos. Na sua experiência familiar como agricultor, não usavam agrotóxicos.
Na Amazônia, indígenas, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais sempre
plantaram sem o uso desses venenos.
O interesse pela agricultura orgânica surgiu em
contraposição ao uso crescente de pesticidas e fertilizantes nas plantações na
Europa após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). É uma agricultura que busca
o equilíbrio com a natureza, associada a técnicas modernas de produção e ao uso
responsável da água e do solo. Recusa adubos químicos e sementes transgênicas
(modificadas para serem resistentes a secas, pragas ou agrotóxicos). E busca um
ambiente de justiça social e respeito ao trabalho humano.
Sebastião aceitou a proposta do técnico da Emater, e os
orgânicos se transformaram em fonte de renda para ele e sua família. Em uma
área de 3 mil metros quadrados, parte própria e parte cedida por um vizinho,
planta abobrinha, rúcula, espinafre, couve, salsa, coentro, cebolinha,
macaxeira, pimenta-morena, entre outros vegetais. Tudo cultivado em solo
cuidadosamente preparado por ele com uma diversidade de técnicas. Sebastião
busca a serrapilheira da floresta entranhada de fungos, responsáveis pela
decomposição da matéria orgânica e pela saúde do solo, e a utiliza em seus
adubos.
Para afastar os insetos, a receita é sabão neutro com
um pouquinho de óleo misturado, que combate os pulgões e a mosca-branca. Outra
opção para deter as pragas é um óleo extraído das sementes de amêndoa. O
tucupi, líquido amarelo ofertado pela mandioca-brava, serve como inseticida e
fertilizante para o solo. Assim como o biopeixe, uma mistura feita de sobras de
peixe cru com açúcar e fermento biológico – “tudo natural”, ele ressalta.
Sebastião foi aprendendo aos poucos. Teve auxílio da
Emater, de professores da Universidade Federal do Pará, a UFPA, e de outros
colaboradores. Sua horta esbanja saúde e beleza, e ele diz não entender por que
as pessoas usam agrotóxicos. “O governo bate tanto na tecla: vamos preservar o
meio ambiente. Aí vem um fazendeiro e joga agrotóxico, mata os peixes, polui a
água do igarapé, do rio. Então pra que falam em proteger o meio ambiente? Se
eles abrem as porteiras…”
Em 2023, o Senado brasileiro aprovou a nova lei dos
agrotóxicos, que facilita o uso desse tipo de veneno. Por essa lei, substâncias
cancerígenas ou que causem deformações, mutações e distúrbios hormonais, entre
outros, deixam de ser especificadas como inaceitáveis na composição dos
agrotóxicos. É mais ou menos como se a lei dissesse: há risco, mas há também
confiança nas práticas de segurança e na aplicação correta das substâncias, com
técnicas adequadas para reduzir os impactos. Como se essas técnicas estivessem
sempre presentes. A realidade mostra que não estão.
·
Agricultores sentem na saúde
o efeito dos agrotóxicos
De 2019 a 2021, Altamira foi o município que mais
desmatou no país, segundo o MapBiomas. A exploração predatória da floresta,
aprofundada desde a construção da rodovia Transamazônica, empurra o bioma para
o ponto de não retorno, o momento em que a floresta é tão reduzida que perde a
capacidade de criar chuvas e manter o clima úmido. Deixa de ser lar de milhares
de espécies de plantas, animais, fungos e micro-organismos.
Quem se desloca pela rodovia no auge do verão
amazônico, entre julho e setembro, depara com uma paisagem quilométrica de
monocultura de capim seco com fragmentos de floresta aqui e ali. Foi o setembro
mais quente do Brasil em 63 anos, e em Altamira não foi diferente: de acordo
com dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a temperatura máxima
registrada na cidade ficou em torno de 35 ºC, 2 ºC acima da média histórica
para o período. O desmatamento intensifica os fenômenos naturais de seca e o
aumento de temperatura na região. Tudo isso, somado às mudanças climáticas
associadas ao aquecimento global, ameaça a paisagem amazônica e a vida dos
amazônidas.
No sudoeste do Pará, a floresta não é mais a mesma. Agricultores,
ribeirinhos e indígenas enfrentam secas prolongadas a cada ano. Com o avanço do
agronegócio, zonas de mata cederam espaço a monoculturas de capim, soja e
milho. As plantações intensificaram o despejo de toneladas de agrotóxicos no
ambiente. O Pará, segundo o Ibama, tem aumentado o uso de pesticidas ano após
ano. O Brasil é o país que mais usa venenos por área cultivada no mundo, devido
a suas condições climáticas, que proporcionam mais de uma safra anual: em 2021,
ficou em primeiro lugar no ranking, segundo levantamento da Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.
Na zona rural do município de Vitória do Xingu, próximo
da Belo Monte, a 60 quilômetros de Altamira, a reportagem presenciou um jovem
aplicando agrotóxico numa fazenda sem nenhum equipamento de segurança, assim
como uma mulher utilizando veneno no seu quintal para matar o mato enquanto
crianças brincavam por perto, também sem nenhum equipamento de proteção.
O plantio de soja e milho em larga escala também agrava
a situação dos agrotóxicos na região da Volta Grande do Xingu. Açaízais foram
envenenados, e hoje é possível ver apenas os restos das árvores, ressecados por
substâncias tóxicas. No município de Altamira, há dez estabelecimentos
registrados e regularizados para revender agrotóxicos, sendo dois deles
armazéns. Metade fica em Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira localizado a
970 quilômetros da cidade, quase na divisa com Mato Grosso.
A reportagem enviou emails para a Agência de Defesa
Agropecuária do Estado do Pará (Adepará), tanto para a central em Belém como
para o escritório de Altamira. Perguntamos sobre o uso de agrotóxicos na região
e o descarte correto das embalagens, mas não houve resposta. Os dados
referentes às propriedades registradas para fazer uso dos venenos não estão
disponíveis no site da agência. Também pedimos as informações à agência por
email e por WhatsApp, sem resposta. Entramos em contato com a Associação do
Comércio de Insumos Agropecuários de Altamira e Região da Transamazônica (Aciart),
ponto de coleta de vasilhames de insumos químicos da região, para saber a
quantidade de embalagens que foi recebida no ponto desde sua abertura, em 2023,
mas também não tivemos retorno. O ponto teria capacidade para receber 80
toneladas de embalagens por ano.
Segundo as informações disponíveis no site da
Secretaria de Defesa Agropecuária do Estado do Pará, as últimas fiscalizações
sobre uso de agrotóxicos aconteceram na região de Belém. Procurada pela
reportagem, a agência não informou sobre o número de intervenções feitas em
Altamira. Também pedimos os dados por email, sem resposta.
O Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos propõe
uma transição para diminuir pouco a pouco o uso dos venenos nas lavouras. Mas
há dez anos o Pronara sofre boicotes na sua implementação. Enquanto isso, a
indústria de pesticidas e as produtoras de commodities (plantações em larga
escala para exportação) têm exercido influência direta na criação de políticas
para influenciar a nova lei dos agrotóxicos.
*Mudança climática obriga a modificar formas de produção
Joabe dos Santos, que orientou Sebastião a plantar
orgânicos, é engenheiro agrônomo e trabalha na Emater como extensionista rural,
profissional que atua em projetos de desenvolvimento no campo e orientando
agricultores. Há mais de 18 anos acompanha a vida de quem planta na região e
conhece bem o impacto dos extremos climáticos dos últimos anos. Muitos igarapés
secam durante o verão. Com menos chuva, os produtores se veem obrigados a
comprar sistemas de irrigação. Joabe se preocupa com as fontes de água às quais
os produtores têm acesso, pois nem todos têm condições de cavar poços
artesianos.
“De onde estão capturando água? Essa água dura por
quanto tempo? Além da água para irrigar, o agricultor vai ter água em condições
de ser bebida pela família e pelos animais? Às vezes não”, preocupa-se. Sem
água, muitos vendem suas propriedades e se mudam para a zona urbana, onde vivem
nova situação de vulnerabilidade social.
Em 2014, um estudo da Emater mostrou que em Altamira
não existia nenhum produtor formalizado de hortaliças orgânicas. Nessa época,
as obras da Usina de Belo Monte levaram a cidade a viver uma explosão
populacional e a demanda pela produção de alimentos aumentou. Quem plantava
acabou recorrendo a agrotóxicos e insumos químicos para aumentar a colheita. O
levantamento da Emater também mostrou o baixo grau de escolaridade dos
agricultores e o desconhecimento sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde.
“O que eles querem é produzir o quanto antes, produzir
precocemente, independentemente de onde venha a semente, independentemente do
produto que eles vão utilizar, para garantir mercado”, analisa Joabe.
O trabalho do engenheiro agrônomo é compartilhar
técnicas para potencializar o uso do solo e produzir sem deixar de cuidar do ambiente.
São os princípios básicos da agroecologia, valorizando a proteção do ambiente e
a atenção com quem vive do trabalho direto na terra.
“Agroecologia não é você se preocupar só com a
produção. Primeiro você se preocupa com o meio”, diz o técnico da Emater.
Essas técnicas deram nova configuração à vida de
Sebastião como produtor urbano. Ele sabe que seu trabalho está, como ele mesmo
diz, “a favor da natureza”, mas é preciso persistir todos os dias diante da
falta de auxílio e dos poucos ou quase nulos incentivos. “Tem dias que eu penso
que não vou conseguir. Fico com o corpo cansado, e mesmo assim tenho que ir
para a horta.”
Apesar do cansaço, Sebastião mantém o alto-astral.
Conhece os clientes pelo nome e sabe do que gostam de comer e comprar. “Opa, seu
Edson, bom dia”, cumprimenta Sebastião antes mesmo de descer da bicicleta, ao
ver o cliente já à sua espera. Edson é antropólogo e veio da Paraíba para
Altamira em 2019. Conheceu Sebastião em uma feira organizada pela prefeitura há
dois anos e, desde então, virou seu cliente.
Preocupa-se com o impacto na saúde de venenos como o
glifosato e foge como pode dos alimentos pulverizados com o agrotóxico. Ele já
morou em Mato Grosso e viu de perto “nuvens de chuva de veneno” que banham as
plantações. Deixou de consumir óleo de soja e de milho, pois, depois que
testemunhou a pulverização dos agrotóxicos nas plantações, teme a contaminação:
“Não é possível que o óleo saia limpinho, né?”.
Sebastião trabalha sempre com seu chapéu de couro e
seus óculos Ray-Ban, para proteger os olhos claros do sol intenso. No seu
pequeno negócio, tudo passa pelas mãos dele: a fabricação dos adubos, o
plantio, a colheita, a venda e até a entrega dos produtos, que ele leva de casa
em casa, em uma bicicleta cargueira. Mas ainda precisa conseguir a certificação
oficial de sua produção como orgânica. Para isso, conta com o apoio da Emater.
Nos últimos tempos, Sebastião enfrenta uma dificuldade
extra: o calor, que seca a terra, mata as plantas e torna as caminhadas mais
penosas. “Quando eu saio pra rua… tenho que ir às pressas, porque, num dia de
sol quente, chego até o viveiro, tá tudo morrendo.” Com a orientação da Emater,
Sebastião investiu em sombrites, telas de proteção que cortam de 30% a 50% da
incidência da luz do sol. O equipamento oferece conforto térmico para que as
hortaliças se desenvolvam bem. Antes era possível plantar sem sistemas de
irrigação, mas as mudanças no clima exigem que o produtor reveja suas formas de
manejo da terra.
Outro problema dos agricultores é que, no verão, as
altas temperaturas e a baixa umidade relativa do ar facilitam o desenvolvimento
de pragas e doenças. Uma hora está quente, na madrugada esfria um pouquinho,
durante o dia começa a esquentar demais, e a variação de temperatura favorece o
surgimento das cochonilhas e outras doenças nas plantas, explica o agrônomo
Joabe.
As mudanças climáticas também preocupam Jader Adrian,
agricultor e presidente da Cooperativa Central de Produção Orgânica da
Transamazônica e Xingu, em Altamira. Fundada em 2014, a CEPOTX é uma central de
comercialização que recebe safras de cacau orgânico de quatro cooperativas de
diferentes municípios paraenses: Pacajá, Vitória do Xingu, Brasil Novo e
Uruará. As roças de cacau orgânico, que representam menos de 1% dos hectares
plantados no Pará, agora enfrentam a diminuição de suas safras.
Depois de dois anos de seca, diz Jader, a estimativa é
que a produção das cooperativas em 2024 tenha caído de 35% a 40%. O impacto da
seca deste ano será conhecido com precisão na safra de 2025, mas os prejuízos
já começam a aparecer. “As lavouras da nossa região estão sofrendo muito, tem
muita lavoura morrendo.” Agora, Jader busca a ajuda de parceiros para investir
em irrigação nas lavouras de cacau das cooperativas.
O impacto das mudanças climáticas, segundo ele, é
grande, “muito maior do que a gente pensava”. Com os verões mais longos e os
períodos de chuva mais curtos, as raízes das plantações mal se recuperam. Não
conseguem enfrentar novos períodos de seca e calor intenso novamente. Nas
lavouras de cacau orgânico, a situação é ainda mais delicada, pois não é
qualquer tipo de adubo que pode ser usado na plantação. Fica ainda maior o
desafio de, no inverno, nutrir a planta para que ela resista ao sol forte do
verão. Isso também aumenta o custo de investimento para os agricultores.
“As roças não foram planejadas para irrigação. Foram
plantadas para que a gente pudesse produzir de acordo com o clima da nossa
região”, explica.
A engenheira agrônoma Maysa Medeiros, professora da
Faculdade Serra Dourada, em Altamira, costuma comprar o chocolate cacau Xingu,
feito do cacau orgânico produzido pela agricultora Jiovana Lunelli, ali mesmo
na região do quilômetro 48 da Transamazônica. Na propriedade de Jiovana, os pés
de cacau estão plantados à sombra de grandes árvores amazônicas povoadas por
majestosas araras-vermelhas.
Para a professora Maysa, esse é mais um motivo para
apoiar os produtores de orgânicos, que valorizam a agricultura familiar, usam
recursos naturais de modo responsável e evitam a utilização de agrotóxicos
prejudiciais à natureza e à saúde humana. “É uma forma de a gente fortalecer a
economia local e também incentivar a preservação de áreas florestais”, resume.
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Pequenos negócios dependem
da floresta em pé
Mesmo em lugares onde a floresta foi menos atacada, os
agricultores sentem os impactos da mudança climática. Raimunda Rodrigues nasceu
e foi criada na Reserva Extrativista Rio Iriri, onde vive até hoje. Seus pais
nasceram dentro do igarapé Rio Novo e são fundadores da miniusina Rio Novo.
Criada para extrair o óleo do babaçu, a miniusina começou a produzir também a
farinha de babaçu e agora está focada no beneficiamento de castanha.
Hoje existem na Terra do Meio (conjunto de unidades de
conservação da qual a Resex do Iriri faz parte) oito miniusinas associadas a
comunidades extrativistas e Terras Indígenas. Lá é feito o beneficiamento de
frutos nativos coletados, como a golosa e o mamuí, que são desidratados e
vendidos, da castanha, vendida na forma de amêndoa, do babaçu, do qual se
extraem farinha e óleo, e de frutas plantadas nas roças, como abacaxi e banana.
As miniusinas vendem seus produtos, tanto in natura
como os beneficiados, para as cantinas, pequenos armazéns espalhados pelas
comunidades que servem como depósitos e pontos de venda. Os dois negócios
funcionam no tempo da natureza: os cantineiros compram os produtos florestais
no tempo de cada safra e pagam aos beiradeiros extrativistas um preço
considerado justo, acertado pelas associações.
Para Raimunda, os produtos que ela extrai da floresta
são orgânicos. “A gente não usa adubo nenhum, não usa nada, e eles dão um fruto
com o próprio adubo da floresta, com o próprio tempo da natureza.” Sobre as
roças de banana, macaxeira e cacau, ela diz que os modos tradicionais de
plantar são preservados e que as plantações são livres de qualquer veneno. “O
cacau que a gente planta aqui é orgânico. O adubo dele vem de folhas, cabaças,
nunca foi usado nenhum outro produto.”
Gestora da miniusina do Rio Novo, Raimunda também
cofundou, com outros dois sócios, a Mazô Maná, uma empresa de shakes naturais
feitos à base de frutos e sementes, vendidos em pó, em pacotinhos. A parceria
da empresa com a miniusina ajudou a criar técnicas para diversificar o
beneficiamento de produtos florestais e alcançar uma nova clientela para os
shakes. Tudo isso gera mais renda para os moradores da Resex e proteção para o
território.
As miniusinas acabaram trazendo de volta traços da
cultura alimentar dos povos tradicionais. Raimunda se lembra de quando sua
comunidade começou a usar produtos vindos de fora, como enlatados e biscoitos.
Naquela época, ela não conhecia a farinha de babaçu que alimentou sua mãe
quando criança e que hoje a miniusina produz.
Graças a um contrato com o Programa de Aquisição de
Alimentos do governo do Pará, hoje as cantinas recebem das escolas recursos
para comprar direto dos ribeirinhos extrativistas produtos usados na merenda
escolar das comunidades, de peixes a frutas. Na Terra do Meio, a rede de
miniusinas e cantinas é uma opção duradoura de renda, fazendo com que muitos
moradores abandonem atividades ilegais no garimpo ou na venda de madeira.
Selma Bezerra de Castro é moradora da Reserva
Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio, e merendeira da Escola
Municipal Morro Verde. Diz que é um prazer preparar para as crianças os
alimentos vindos da floresta com receitas e tradições que aprendeu com seus
pais e avós. Dia desses, divertiu as crianças ao servir um bolo de macaxeira
enfeitado com a escultura de uma rã feito com farinha de babaçu. Também oferece
bolo de tapioca, puba, cará e doce de batata.
Mas nem sempre foi assim. Quando os produtos vinham
somente da cidade, não havia variedade de ingredientes e chegavam alimentos que
a merendeira achava estranhos.
“Vieram uns biscoitos que machucavam a boca, e os alunos
reclamavam: ‘Por que que não tem tapioca, por que não tem batata, por que não
tem cará?’.”
Selma diz que hoje os estudantes estão maravilhados com
as coisas da floresta que chegam para a merenda. Mas ainda há alimentos
trazidos da cidade, e a merendeira pensa que é preciso diminuir a quantidade de
bolachas e salsichas no cardápio. Muitos desses produtos acabam não sendo
usados na merenda e ao final das atividades escolares são doados para a
comunidade.
A merendeira sugere que, antes de decidir o que enviar
para as comunidades escolares das reservas, os órgãos responsáveis ouçam os
próprios beiradeiros. Artista e compositora, ela cita uma de suas músicas, que
diz: “É bom lembrar que somos muita gente, que plantam as sementes, que
alimentam as pessoas. É bom lembrar que somos beiradeiros e temos o direito de
honrar a nossa tradição”.
Raimunda sabe, porém, que, apesar da canção de Selma,
nem sempre os beiradeiros são ouvidos. Ela costuma conversar com os moradores
da reserva sobre o valor de manter a floresta em pé e sobre como ela pode
trazer renda para a comunidade.
“É essa diferença que eu mostro. Se tu vender agora
esse pé de castanha por 300 reais, no ano que vem aquele pé não vai estar mais
ali”, explica.
Conta que se sente honrada com o trabalho. Na sua
comunidade, ela diz que a miniusina beneficia mais de 40 pessoas, sendo que 14
delas estão empregadas e recebem mais de 2 mil reais por mês. Raimunda trabalha
para aumentar a variedade de produtos beneficiados e para criar mais
miniusinas, pois entende que essa é uma forma de proteger os territórios.
Mas para haver crescimento é importante que a floresta
se mantenha saudável. Hoje a reserva extrativista vive um clima mais seco que o
normal, e ano a ano a safra de castanha diminui. Em 2018, segundo Raimunda, a
safra de castanha foi recorde, com 900 caixas coletadas. O quilo, à época,
custava 40 reais, e a safra média era de 200 caixas. De acordo com Raimunda, o
quilo da castanha subiu para 100 reais. “Mas este ano você não consegue fazer
nem 60 caixas de castanha”, alerta Raimunda, pois tudo tem ficado mais difícil.
Em 2023, as safras de cacau e castanha caíram, e nova
redução é esperada. Aos poucos, os extrativistas veem a produção correr risco.
As árvores precisam de chuva para segurar as flores e as sementes. Mas no verão
de 2024 só choveu duas vezes na Resex Iriri. Os extrativistas foram aos
castanhais para ver o estrago do verão forte e repararam que poucas mudas
sobreviveram.
Por causa do tempo mais quente, os horários de trabalho
dos beiradeiros mudaram. “O pessoal que trabalha na roça não consegue trabalhar
das 7 da manhã até as 11h30, 12 horas, porque o sol tá mais quente”, diz a
líder extrativista. As pessoas estão saindo para trabalhar às 6 horas e tentam
voltar para casa até 10 “porque o sol tá tinindo”. Para coletar as castanhas, é
preciso subir o rio, pagar combustível e mão de obra. Com a diminuição das
safras, quem trabalha “mal paga a conta ou ainda fica devendo pro próximo ano”,
lamenta Raimunda.
Aos poucos, a agricultura orgânica tem crescido no
Brasil. Em 2020, o crescimento na venda desses produtos foi de 30%, mostra
pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná. Parte desse crescimento se deve ao trabalho de
gente como Raimunda, Jader e Sebastião, que, certificados ou não, sujam as mãos
para produzir comida saudável respeitando os saberes tradicionais das
comunidades e o tempo da natureza, sem usar venenos nem matar a floresta.
Apesar de todas as dificuldades, Sebastião garante que vai seguir sem usar
agrotóxicos, fiel ao seu lema: “Mão suja, dinheiro limpo”.
Fonte: Infoamazônia
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