Ela chamou a PM
para salvar seu filho, mas os policiais o mataram
As balas disparadas
pelas pistolas de dois policiais militares passam ao
lado de Antônia Regina Gonçalves, de 59 anos, enquanto ela corre desesperada na
direção de seu filho, Denner Wesley Batista dos Santos — ele era o alvo dos
tiros.
Quando Regina chega
até ele para tentar segurá-lo, já era tarde demais. Denner, de 35 anos, que
estava em surto esquizofrênico, sangrava caído no asfalto, na madrugada fria do
dia 16 de agosto, na cidade de Diadema, na Grande São Paulo.
O rapaz foi morto
pelos policiais depois de ele ter perseguido — com uma faca e um canivete em
mãos — uma técnica de enfermagem durante a abordagem do socorro feita pelo
Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Regina havia
acionado o Samu e a polícia minutos antes para acalmar o filho e levá-lo de
volta para casa. Terminou sendo levada para trás das faixas amarelas que
isolavam o cadáver, até a chegada do Instituto Médico Legal (IML).
“Ele [Denner] só
deu as costas porque ele confiava demais na polícia. As pessoas que meu filho
mais confiava, que eram os que salvavam a vida dele, mataram ele”, diz Regina,
em entrevista à BBC News Brasil.
Ela conta que o
filho era um admirador da Polícia Militar, pois durante as crises anteriores
ele havia sido bem atendido pelos PMs na cidade vizinha de São Bernardo do
Campo. Desta vez, ele estava próximo à casa de um familiar, onde os policiais
não o conheciam.
A Defensoria
Pública, que representa a família do rapaz, diz que houve ação inadequada e uso
excessivo da força. É mais um caso que alimenta a pressão sobre o governo Tarcísio
de Freitas (Republicanos), que vem sendo criticado pelo aumento da letalidade e
das abordagens violentas da polícia paulista no último ano.
O comando da
corporação afastou os agentes envolvidos na morte de Denner dos trabalhos de
rua até que as investigações sejam concluídas (leia mais abaixo).
A BBC News Brasil
teve acesso ao inquérito policial aberto para apurar as circunstâncias da morte
de Denner. No documento, há a transcrição de diálogos gravados pelas câmeras
corporais que estavam anexadas ao uniforme dos PMs que participaram da
ocorrência. As imagens não foram incluídas até a publicação desta reportagem.
Em uma das
gravações transcritas, um policial diz: "Ele não está com faca", e
outro responde: "Não? Você não viu, lá no portão?". Um terceiro policial
complementa: "Está com medo de uma derrubada, policial?".
No jargão, a
palavra "derrubada" significa a morte de um criminoso.
Para os advogados
da família, os diálogos mostram que os policiais sabiam dos cuidados que
deveriam tomar na ocorrência, mas, mesmo assim, não os respeitaram.
Se os policiais de
fato viram Denner com uma faca, os representantes de sua família questionam por
qual motivo eles permitiram a aproximação dos profissionais de saúde.
No inquérito, os
advogados da Defensoria também querem saber por que os policiais não
acompanharam os profissionais do Samu quando perceberam que eles insistiram na
aproximação.
Em outro momento
das transcrições, um policial que estava em contato com o comandante por
telefone, antes de Denner ser morto, questiona se os policiais portavam uma
taser - arma de choque não-letal capaz de paralisar uma pessoa e que pode ser
acionada a até 7 metros do alvo.
Um dos agentes
responde que sim, que tinha taser. Na sequência, ainda antes dos tiros, um
policial afirma: "Sabe que em ocorrência com faca não tem taser, né?"
A Defensoria
questiona se esses diálogos entre os policiais indicam que houve uma orientação
para que não fossem usadas armas não-letais na ocorrência.
Denner foi atingido
por quatro tiros: no pescoço, tórax, braço e costas. Um dos disparos dos
policiais também atingiu o motorista da ambulância do Samu. Por conta do
ferimento, o socorrista precisou passar por uma cirurgia.
·
'Acertaram
o coração do meu filho'
“Quando olhei para
os dois [policiais] assassinos, eles estavam rindo. Rindo como se meu filho
fosse um pedaço de carne qualquer”, diz a mãe de Denner.
No inquérito, há
ainda uma conversa entre os policiais transcrita que acontece no momento em que
Denner já havia sido atingido pelos tiros. No local, pessoas que acompanhavam a
ocorrência questionavam a atuação da PM e reforçaram que Denner tinha problemas
psiquiátricos.
"Problema para
louco é isso aí", diz um dos policiais, segundo transcrição.
Para a Defensoria,
a maneira como o agente falou sobre Denner demonstra desrespeito e falta de
empatia com a situação da vítima.
Procurada, a
Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou à BBC News Brasil que o
afastamento dos policiais envolvidos no caso será mantido até a conclusão do
Inquérito Policial Militar (IPM), aberto pela própria PM para apurar as
circunstâncias da ocorrência.
A transferência
para o setor mais burocrático da corporação já é considerada pelos policiais
como uma espécie de punição informal.
"As forças de
segurança não compactuam com desvios de conduta e pune com rigor aqueles que
infringem a lei ou violam as normas e procedimentos de suas corporações",
seguiu a Secretaria da Segurança Pública.
Questionada se os
policiais deveriam ter usado técnicas de imobilização, como tasers ou outra
arma não-letal, a pasta informou que "todas as viaturas de
radiopatrulhamento possuem o equipamento AIN Taser".
No dia 9 de
dezembro, cerca de quatro meses depois da morte de Denner, a PM paulista foi
acionada para outro incidente envolvendo uma pessoa em surto esquizofrênico,
desta vez na avenida Paulista. O desfecho foi distinto do que ocorreu em
Diadema.
Naquela tarde, uma
mulher fez outra como refém em um ponto de ônibus na avenida, área turística no
centro de São Paulo. Com um canivete muito próximo do pescoço da vítima, a
sequestradora, que estava em surto, ameaçava matá-la.
Os policiais
militares se aproximaram gradualmente durante a negociação e usaram uma arma de
choque para imobilizar a sequestradora. Assim que a arma foi disparada à
distância por um policial, a agressora ficou paralisada instantaneamente.
Naquele momento, ao
menos dez policiais se aproximaram para contê-la e libertar a vítima. Ninguém
ficou ferido.
Para a mãe de
Denner, essa deveria ter sido a abordagem usada pela polícia para conter o
filho dela, a cerca de 20 km dali.
“Dava para segurar
ele, ter dado choque, usado spray de pimenta ou, em último caso, ter dado um
tiro na mão ou na perna dele. Porque eles tinham pontaria. Acertaram o coração
do meu filho”, diz.
As imagens do inquérito
ao qual a BBC teve acesso confirmam a versão de Regina.
Nas fotos feitas
pela Polícia Científica, é possível observar o furo causado por um disparo que
acertou o lado esquerdo do tórax de Denner.
A bala, que saiu e
uma das pistolas .40 usadas pelos PMs, atravessou a palavra "Família"
– tatuada em seu tórax e que representa o que Denner mais amava – e saiu pelas
costas.
O ouvidor das
polícias de São Paulo, Cláudio Aparecido da Silva, afirma que a polícia age de
maneira diferente conforme a região onde é a ocorrência. Na visão dele, em
áreas mais nobres, como a avenida Paulista, os policiais são mais cautelosos e
menos letais.
“A gente já se
deparou com algumas orientações nesse sentido. Temos um modelo de atendimento
da polícia na região central, nas regiões nobres, né, nos Jardins, e outro
modelo na periferia”, afirma.
Para Silva, a
atuação dos policiais na morte de Denner foi desproporcional. Ele defende que
os militares já sabiam que encontrariam uma pessoa irritada, sem controle sobre
seus atos e que a atitude correta deveria ser a imobilização por meios
não-letais.
Questionada sobre
os pontos levantados pelo ouvidor, a SSP afirmou que os agentes estão em
constante aprimoramento e que devem seguir Procedimentos Operacionais Padrão
(POP).
"Os policiais,
em sua formação, cursam disciplinas de Direitos Humanos, que abordam temas como
o combate ao racismo, à violência de gênero e a outros crimes de intolerância,
incluindo orientações sobre abordagem e atendimento a vítimas", afirma o
órgão.
Procurada, a Prefeitura
de Diadema informou que a equipe do Samu seguiu o protocolo do Ministério da
Saúde para atendimento de pacientes psiquiátricos, que preconiza "que a
equipe deve considerar a situação e a segurança da cena para iniciar o
atendimento, estabelecendo vínculo verbal com o paciente”.
Em nota, a
assessoria da prefeitura ainda informou que, após a morte de Denner, “a
Secretaria Municipal da Saúde realizou rodas de conversas para suporte
psicossocial com os funcionários e disponibilizou atendimento psicológico para
os que sentissem necessidade”.
·
Alta
de 40% em denúncias contra policiais em 2024
O caso Denner
ocorre em um momento em que a Polícia Militar paulista é constantemente
questionada por excessos cometidos por policiais em serviço.
Alguns desses excessos
foram reconhecidos pela própria corporação e até mesmo pelo governador Tarcísio
de Freitas. Entre os casos mais comentados nas últimas semanas, estão o de um
homem jogado de uma ponte, por um policial, durante uma abordagem, o de uma
idosa agredida na cabeça por um PM e o assassinato a tiros de um homem que
furtava sabão líquido em um supermercado.
Após os casos,
Tarcísio, até então crítico do uso de câmeras corporais por policiais, passou a
defendê-las. Disse que errou, mudou de ideia e agora deve ampliar o programa.
“Eu era uma pessoa
completamente errada nessa questão. Eu tinha uma visão equivocada, fruto da
experiência pretérita que tive. Hoje estou plenamente convencido de que é um
instrumento de proteção da sociedade e do policial. Vamos não só
manter o programa, como também ampliá-lo”, disse Tarcísio.
Segundo
levantamento da ONG Sou da Paz, o número de homicídios cometidos por agentes em
serviço ou de folga aumentaram 59% até outubro de 2024, na comparação com o ano
passado inteiro. Foram 647 mortes provocadas por policiais até o mês passado,
contra 407 ocorrências em 2023.
Já o ouvidor das
Polícias, Cláudio da Silva afirma que o órgão que comanda registrou um aumento
de 40% no número de denúncias feitas por agressões cometidas por policiais.
O aumento é
relativo aos dez primeiros meses de 2024 ante o ano de 2023 inteiro, por isso
ele acredita que o crescimento no acumulado do ano poder ser ainda maior.
·
'Decidi
transformar ódio em ajuda para mães'
Quatro meses após o
assassinato de Denner, ainda há diligências a serem feitas antes da conclusão
do inquérito policial, segundo a Defensoria. Os advogados da família do rapaz
devem se reunir com o Ministério Público estadual no começo de 2025 para
discutir o caso.
Regina diz que
chora quase todos os dias pela perda do filho e afirma que tem tomado
tranquilizantes para se acalmar e conseguir dormir desde a morte do filho, que
segundo ela tinha poucas crises e que só entrava em surto se esquecia de tomar
sua medicação.
Ela afirma que
passa o dia vendo fotos da infância de Denner e lamentando como um pedido de
socorro pode ter terminado em morte.
Ela conta que ele,
que era corintiano, passava as tardes da infância e adolescência jogando bola
com os amigos.
"Ele só não
foi um jogador profissional porque as escolinhas que eu colocava ele achavam
ele baixinho, mas depois desenvolveu. Quando eu não conseguia pagar e dizia que
tiraria ele, o dono deixava ele fazer de graça, por conta da qualidade do
Denner", lembra.
Ela conta que o
filho não trabalhava quando foi morto, mas estava em uma boa fase. Ele havia se
matriculado num curso técnico de TI no Senai porque dizia que sonhava em ganhar
mais dinheiro, se casar, construir uma família e cuidar melhor dela.
Regina tem a
esperança de que os policiais envolvidos no caso possam ser punidos e até
expulsos da corporação. Diz que pretende usar sua própria dor para abrir uma
associação e ajudar outras mães que passam por situação semelhante.
“Eu decidi
transformar todo o ódio daqueles assassinos em ajuda para mães enlutadas que
não sabem de muitos direitos que elas têm", afirma.
"Depois do
assassinato do meu filho, ainda tem muito sofrimento em Diadema. As mães estão
se mantendo trancadas em casa para ficar com os filhos, por medo da polícia, e
isso não pode mais acontecer”, diz.
Fonte: BBC News
Brasil
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