ASH 2024: novas utilizações para
terapias existentes, estudos sobre eficácia do CAR-T e acesso foram destaques
A hematologia é uma das
áreas da medicina que, nos últimos anos, mais recebeu inovações com potencial
de mudar o curso de diversas doenças. Mas além de novas soluções, as pesquisas
estão se debruçando em identificar formas de ampliar a eficácia e utilizar
tratamentos já existentes para outras condições, além de debater avanços no
diagnóstico, equidade e acesso. Esses foram alguns dos destaques do ASH 2024,
principal congresso global de hematologia, promovido pela Sociedade Americana
de Hematologia.
O evento reuniu cerca de 30
mil médicos e profissionais do mundo todo em San Diego, Estados Unidos, entre 7
e 10 de dezembro e apresentou informações importantes sobre novas terapias para doença malignas e não malignas relacionadas à hematologia.
Entram nessa lista cânceres de sangue, como leucemias e linfomas, doenças
autoimunes, síndromes de falhas da medula óssea e condições de sangramento e
coagulação.
“Vimos coisas muito boas
tanto na plenária principal quanto nos demais abstracts”, afirmou o médico
hematologista Nelson Hamerschlak, coordenador do Programa de Hematologia,
Transplante de Medula Óssea e Terapia Celular do Hospital Israelita Albert
Einstein, durante um painel promovido pelo Einstein e pela Abrale após o
encontro. “Em leucemia linfocítica crônica, ficou claro que hoje a
quimioterapia não é mais o tratamento ideal. Na leucemia mieloide crônica,
ficou claro que é possível, para um pequeno grupo de pacientes, interromper o
tratamento. Nos linfomas e mieloma múltiplo, se mostrou muito a ação do CAR-T e
dos anticorpos biespecíficos, principalmente combinados com outros elementos. E em terapia celular
foi muito impactante também um trabalho que mostrou que mudar a dieta dos
pacientes que fazem o CAR-T modifica o seu resultado”, resumiu.
Juliana Dallagnol, médica
hematologista do Einstein, lembrou também das novidades na área de
acompanhamento da jornada. Segundo ela, como os pacientes estão vivendo mais,
diversos estudos exploraram formas de aprimorar a qualidade de vida, por
exemplo, com o uso de medicações para prevenir infecções. E destacou ainda
avanços no diagnóstico e entendimento da biologia das doenças.
Em paralelo a essas
novidades, o ASH também foi palco de temas como equidade, diversidade e
inclusão. É o que observou Catherine Moura, CEO da Associação Brasileira de
Linfoma e Leucemia (Abrale). “O ASH não é só sobre novidades e evoluções de
diagnóstico e tratamento e inclui todas as outras temáticas relativas à
qualidade de vida, como, por exemplo, como o engajamento de pacientes pode
ajudar no desenvolvimento dos estudos clínicos e como podemos tratar essas
demandas não atendidas que acontecem na jornada dos pacientes hematológicos.”
<><> Pesquisa
e equidade de acesso na hematologia
Durante o debate, Moura
relatou que viu muitos trabalhos sobre ampliação de acesso e como a redução das
iniquidades sociais podem interferir nos cuidados em hematologia.
Neste contexto, Hamerschlak
destacou um estudo relacionado a transplante de medula: “A pesquisa mostrou que
pacientes que tinham condições socioeconômicas piores, quando faziam o
transplante, tinham os mesmos resultados dos pacientes com condições melhores.
Mas ele também mostrou que a condição socioeconômica influencia muito o acesso
ao tratamento”.
O engajamento precoce do
paciente em processos diversos também foi tema de discussão durante o ASH 2024.
A presidente da Abrale relatou que muitos trabalhos abordaram como o letramento
em saúde pode fortalecer o vínculo entre médicos e pacientes para aumentar o
nível de conhecimento e atuação do paciente como protagonista da tomada de
decisão sobre os seus cuidados.
A participação dos pacientes
no entendimento das etapas de avaliação e incorporação de tecnologias em saúde
e em pesquisas clínicas foi outro assunto de destaque. “As novidades do
congresso chegam via pesquisa clínica. Não existe inovação sem pesquisa. E o
Brasil, hoje, conseguiu se inserir no mapa da pesquisa clínica mundial em
hematologia. Temos que ter muito orgulho disso e seguir incentivando os
pacientes a participarem”, completou Dallagnol.
<><> Protocolos
terapêuticos adaptados para outras doenças
Dentre os eixos terapêuticos
do ASH 2024, a adaptação de terapias já utilizadas em determinadas doenças para
tratar outras condições foi um dos principais. Nesta linha, um estudo
controlado testou pela primeira vez os benefícios da hidroxiuréia, usada no
tratamento da anemia falciforme, em pacientes com hemoglobinopatia SC.
Existem poucos tratamentos
para a hemoglobinopatia SC, uma doença rara que provoca fraqueza, crises de dor
e anemia, entre outros sintomas. Por outro lado, a hidroxiuréia já é uma
terapêutica incorporada no SUS e aprovada para pacientes com anemia falciforme
do tipo SS ou S-Betatalassemia.
No grupo de pacientes com
hemoglobinopatia SC tratado com hidroxiureia, houve melhora nos níveis de
hemoglobina, menor quantidade de doenças vaso-oclusivas e menos casos de
hospitalização. Segundo Dr. Ricardo Helman, hematologista do Einstein, o estudo
pode promover avanços no tratamento para esses indivíduos. “Provavelmente vai
ser uma mudança de prática que talvez traga a liberação dessa medicação para
essa população”, avalia.
Outra pesquisa testou se a
adição de uma imunoterapia poderia trazer benefícios para crianças com leucemia
linfoide aguda B tratadas com quimioterapia. Ele foi realizado com mais de
2.000 pacientes pediátricos de 1 a 10 anos, comparando efeitos da quimioterapia
combinada com a imunoterapia com o tratamento isolado de quimio.
A terapêutica com anticorpos
chama-se blinatumumabe e já é aprovada no Brasil para outras indicações como
doença residual e doença recidivada. Com seu uso junto à quimioterapia, o
estudo estima que se possa ter uma melhora de 85% para 95% nas taxas de cura de
crianças com esse tipo específico de leucemia.
“Acreditamos que, com esse
estudo, talvez num prazo de poucos anos, consigamos ter também a aprovação da
indicação de incorporar o blinatumumabe para os pacientes pediátricos com
leucemia linfóide de células B”, comenta Eduardo Chapchap, hematologista do
Einstein. Ele lembra que um estudo similar com adultos levou à aprovação dessa
imunoterapia nos Estados Unidos.
Hamerschlak vai além:
“Estamos atingindo números incríveis. Provavelmente no futuro, crianças com
leucemia vão estar plenamente curadas com os tratamentos novos que estão sendo
oferecidos.”
<><> Relação de
dieta com terapia CAR-T
Outra novidade apresentada
no ASH é a de que a dieta cetogênica tem potencial de aumentar a eficácia da
terapia genética de células CAR-T. Essa terapia consiste em modificar geneticamente as células de um
paciente para o tratamento de uma doença específica. No caso apresentado, se
testou a influência da dieta na eficácia dessa tecnologia em camundongos com
linfoma que receberam tratamento com células CAR-T. Um grupo deles recebeu uma
dieta cetogênica, rica em gorduras, enquanto outros receberam dietas ricas em
carboidrato e proteína.
O que se observou é que o
primeiro grupo teve uma melhor resposta contra o tumor. Isso sugere que a dieta
cetogênica muda metabolicamente as células, tornando-as mais eficientes na
resposta tumoral.
Além do teste em
camundongos, os pesquisadores avaliaram o sangue de pacientes que fizeram
infusão de CAR-T e viram que os que tinham níveis mais altos do metabólito
gerado pela dieta rica em gorduras também eram os que apresentavam maior
expansão dessas células. Os próximos passos devem envolver a realização de um
estudo clínico controlado que demonstre, em pacientes, a relação entre essa
dieta e a melhora na eficácia do tratamento contra o câncer.
¨ RSNA 2024: radiologia vive contraste
da chegada de IA e novas tecnologias com desafios de falta de profissionais e
acesso
A área de radiologia vive um
momento de contrastes. Com o avanço da medicina e as tendências de
envelhecimento da população, os exames de imagem são e serão cada vez mais
demandados. Além disso, a tecnologia – como a inteligência artificial – avança
para aumentar a qualidade das imagens, aumentar a precisão dos exames e
facilitar a vida dos radiologistas.
Mas justamente esse avanço
tem afastado jovens profissionais de especialização nessa área, resultado de uma equação que envolve o tempo de
formação com a perspectiva de que as máquinas farão todo o trabalho em algum
momento. Pode até ser que esse cenário se torne realidade, mas até lá, há uma
lacuna a ser atendida.
Essa foi um pouco da tônica
do Encontro Anual da Sociedade Norte-Americana de Radiologia (RSNA, na sigla em inglês), que ocorreu no começo de dezembro em Chicago, nos
EUA. O evento recebeu cerca de 40 mil pessoas ao longo de 5 dias, que se
dividiram entre os espaços dos pavilhões que traziam estandes com novas
tecnologias e plenárias para apresentação de debates e estudos.
Não à toa, o tema deste ano
foi Construindo Conexões Inteligentes. “Entre máquinas, entre humanos e entre
máquinas e humanos”, afirmou Curtis Langlotz, presidente da RSNA durante
discurso de abertura. “O segredo do sucesso da radiologia sempre foi incorporar
novas tecnologias, desde a descoberta do raio-X, até o ultrassom, tomografia
computadorizada, ressonância magnética, teranóstico até chegar nesses novos
sistemas inteligentes. Essa conexão da radiologia com a tecnologia coloca essa
área como protagonista nesse momento em que os sistemas de saúde adotam novas
ferramentas.”
<><> Qualidade
de imagem e inteligência artificial embarcada
Essa evolução tecnológica
ficou nítida pelos 700 estandes divididos em dois grandes pavilhões – onde não
era raro encontrar rodas de especialistas brasileiros. Os quatro maiores eram
os da Siemens Healthineers, GE Healthcare, Philips e United-Imaging – esta
última, de origem chinesa, tem avançado nos principais mercados e, inclusive,
iniciou operações no Brasil em 2024.
Para todos os lados, era
possível ver a sigla “AI” exposta em diversos equipamentos. Muitos deles já
saem com a tecnologia embarcada de fábrica para operar. Por exemplo, um
equipamento de ultrassom de abdômen com IA já é capaz de identificar os órgãos
e registrar as medidas durante o exame de forma automática – tornando-o mais
rápido.
Outro exemplo, no estande da
Siemens, era a nova família de tomografia computadorizada baseada em contagem
de fótons. Chamada de Naeotom Alpha, a tecnologia, lançada em 2021, promete
entregar imagens com resoluções até duas vezes mais nítidas do que os
equipamentos convencionais e com cerca de 40% menos dose de radiação.
“O mundo precisa de exames
de imagem com a tendência de envelhecimento e necessidade de avanços na saúde
nos países em desenvolvimento”, afirmou André Hartung, presidente da área de
diagnóstico por imagem da Siemens Healthineers. “70% das decisões médicas são
baseadas em imagens. E quanto melhor a informação da imagem, melhor para o
profissional de saúde.”
A companhia está apostando
alto no equipamento, a ponto de afirmar que, na visão da empresa, em um futuro
não distante toda tomografia será com essa tecnologia. “Há quem diga que em
2040 isso já será realidade”, relatou Philipp Fisher, head de tomografia
computadorizada da empresa. “Não vamos fixar um ano exato, mas estamos
avançando o mais rápido possível. Vamos continuar investindo no equipamento
convencional, mas a tendência é que a nova tecnologia seja predominante.”
Usando como exemplo a área
de doenças cardiovasculares, a ideia é que a resolução de alta qualidade
permita enxergar situações que levem a decisões nas duas vias: tanto de agir
quando for algo que demande uma decisão rápida, quanto a de evitar um
procedimento invasivo quando não for necessário. Além disso, o sistema de IA
embarcado também facilita de forma automática o posicionamento correto do
paciente para o exame e o fluxo de trabalho dos profissionais que estão
atuando.
Não há equipamentos do tipo
no Brasil ainda, mas Miranda Rasenberd, vice-presidente de vendas e marketing,
afirmou que a empresa está com negociações avançadas com uma grande instituição
do país, que deve se tornar a primeira da América Latina a implantar a nova
tecnologia.
<><> Estudo
brasileiro no encontro da RSNA
Na área de apresentações,
houve espaço para um estudo brasileiro. Em 2024, o Grupo Fleury utilizou três
ferramentas de inteligência artificial de mercado para analisar um banco de
dados com mais de 1,5 mil mamografias anônimas, sendo 565 de casos confirmados
de câncer de mama por biópsia e 946 de casos sem a doença. A conclusão do
estudo foi de que as IAs combinadas conseguiram taxas de acurácia acima de 90%.
Bruno Aragão, coordenador
médico de inovação do Grupo Fleury, relatou que os comentários sobre o estudo
foram positivos e em linha com a tendência de que pesquisas de avaliação de
performance da IA em cenários locais têm sido algo valorizado.
“Ferramentas de IA embora já
‘prontas’ para uso devem idealmente ter sua performance testada em dados locais
antes de qualquer implementação em larga escala. O estudo foi importante para
confirmar que todas as ferramentas têm sim boa performance, mas cada uma tem
sua particularidade, com perfis de acurácia ligeiramente diferentes em cada
tipo de caso. Isso reforça que a análise humana é indispensável”, completou.
Segundo ele, após a
avaliação dos resultados, o próximo passo é avançar para implementar esse tipo
de ferramenta a partir de 2025 “como um assistente para as análises dos médicos
radiologistas.”
<><> E o acesso
a essas inovações da radiologia?
A tecnologia avança e as
tendências são promissoras, mas no Brasil e em diversos outros países em
desenvolvimento, há problemas mais básicos. Por suas dimensões continentais e
desigualdades sociais, o acesso a exames de imagem ainda é um desafio.
Populações ribeirinhas da Região Amazônica, por exemplo, precisam se deslocar
quilômetros para conseguir. E sem o exame, o diagnóstico muitas vezes chega
tarde, elevando os custos de tratamento e evitando um desfecho mais grave.
“Esse não é um desafio só do
Brasil, quase metade da população global não tem acesso à saúde e à saúde de
qualidade”, reitera Adriana Costa, diretora-geral da Siemens Healthineers no
Brasil. “Temos movimentos e territórios que são muito díspares em termos de
acesso.”
A empresa tem levantado
dados de bases como o Datasus para verificar os vazios assistenciais e
identificar em quais regiões a implementação de um equipamento como uma
ressonância poderia trazer mais impacto. Após a análise, a companhia tem feito
reuniões com instituições públicas e privadas para mostrar os potenciais.
Mas para de fato trazer
esses avanços, na visão de Costa, o diálogo precisa mudar e as parcerias podem
ter papel de destaque. “Sempre falamos nos fóruns que a saúde no Brasil está
doente e precisamos encontrar saídas. Isso não vai ser uma responsabilidade só
da indústria, da saúde suplementar ou do só sistema público. A colaboração
entre todos os agentes será importante para endereçar soluções que realmente
atendam as grandes dores que existem.”
Fonte: Futuro da
Saúde
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