A cultura dos juros altos
Um dia desses, um dos meus filhos me perguntou por que o governo Lula
estava privatizando estradas de rodagem que são monopolistas e, por isso, não
devem ser privatizadas. Não seria esse governo neoliberal? Ou neoliberal
progressista, acrescentei parafraseando a filósofa americana Nancy Fraser.
Não, o presente governo é social-progressista e desenvolvimentista:
defende uma diminuição da desigualdade e a intervenção do Estado na economia
para aumentar o investimento público e promover o investimento privado. Não
obstante, esse governo não tem alternativa senão privatizar as rodovias que
exigem investimentos para os quais não tem recursos. O Brasil está preso no
círculo vicioso da quase estagnação.
Entendo por quase estagnação o fato de um país não realizar o “catch-up”
– o fato de seu crescimento per capita ser quase sempre inferior aos dos
Estados Unidos, de forma que o padrão médio de vida dos brasileiros se afasta
cada vez mais do padrão americano. Apesar de um desempenho econômico razoável
neste ano e nos dois últimos anos, nada aconteceu de novo na economia
brasileira que nos permita afirmar que escapamos da quase estagnação, inclusive
porque a taxa de investimento continua muito baixa.
A economia brasileira está quase estagnada desde 1980. Hoje, a distância
em relação aos Estados Unidos é maior do que era em 1980. A causa direta dessa
quase estagnação é a taxa de investimento muito baixa. Tanto o
investimento privado quanto o público é sistematicamente inferior a 17% quando
deveria girar em torno de 25% do PIB. Sete pontos percentuais é uma diferença
muito grande.
Se compararmos a presente situação com meados dos anos 1970 (a última
década em que o Brasil cresceu satisfatoriamente e estava realizando o “catch-up“),
veremos que o investimento privado, que naquela década estava em torno de 15%
do PIB, se manteve nesse nível, embora devesse ter crescido devido às
privatizações – deveria ter crescido para pelo menos 20% do PIB.
Já o investimento público, que deveria ter caído um pouco devido às
mesmas privatizações, caiu muito; correspondia a aproximadamente 8% do PIB,
agora está em torno de 2,5%. Em consequência, o investimento total caiu de 23%
para aproximadamente 16% do PIB, e a taxa de crescimento caiu
correspondentemente.
A primeira razão para isso é a taxa de juros exorbitante que existe no
Brasil desde a abertura financeira (1992). A taxa de juros real vem
sendo desde então em média cerca de 6% a 7% ao ano, quando deveria se manter em
torno de 3% ao ano, ou seja, igual a taxa de juros real internacional mais um
adicional que dê conta do risco dos brasileiros em investir no Brasil (não dos
estrangeiros), que eu estimo ser de aproximadamente 1%.
Duas vezes menor, portanto, que a taxa real que o Banco Central
tem praticado e, portanto, uma taxa que desestimula o investimento. Eu
falei em risco dos brasileiros, que deve ser menor que o risco Brasil,
calculado pelos mercados internacionais para investidores fora do país aqui
investirem, que é maior de cerca de 2,5%.
A segunda razão é a tendência de apreciação da taxa de câmbio no Brasil,
que tem por trás quatro motivos: (i) porque a taxa de juros é alta para poder
atrair capitais; (ii) porque o Brasil incorre sistematicamente em déficits na
conta corrente de aproximadamente 2% do PIB, quando deveria mantê-los em torno
de zero; (iii) porque o Brasil não reconhece e não neutraliza a doença
holandesa, não tendo, portanto, uma política que evite que a taxa de câmbio se
torne valorizada para as empresas industriais, a qual reduz a competitividade
internacional dessas empresas; e (iv) porque a taxa de poupança no Brasil é
muito baixa, não sendo por isso compensada pelo recurso a financiamento interno
ou externo.
·
Os atores
Para sabermos o porquê das três primeiras razões, precisamos considerar
os atores que causam a baixa taxa de investimento e o círculo vicioso da quase
estagnação. São eles os capitalistas rentistas e seus financistas, o
agronegócio, o Norte Global ao qual os dois primeiros grupos estão associados,
os empresários industriais, os eleitores e os políticos. Todos são responsáveis
pela taxa de câmbio apreciada, a baixa taxa de investimento e a quase
estagnação do Brasil.
Os rentistas e financistas, que são dominantes, querem uma taxa de juros
real (descontada a inflação) alta e uma taxa de inflação baixa (para garantir o
objetivo anterior). Os dois grupos são liberais: não querem que o Estado
invista ou intervenha na economia; não querem, por exemplo, que o Estado tenha
uma política cambial que estabilize a taxa de câmbio e evite que ela seja
apreciada.
Assim, estão felizes com um déficit na conta corrente em torno de 2% do
PIB e não querem saber da doença holandesa, embora esta surja quando o preço
das commodities exportadas pelo Brasil sobe e torna as empresas industriais não
competitivas, ainda que sejam competitivas no plano técnico.
Rentistas e financistas estão satisfeitos. Eles têm poder suficiente
sobre a sociedade brasileira para capturar indevidamente cerca de 3% do PIB
graças à diferença entre a taxa de juros média razoável (de 3% ao ano, como
vimos acima) para a taxa praticada de 6% ao ano. Esses juros altos naturalmente
desestimulam o investimento, a não ser que a taxa de lucro esperada seja alta e
a desigualdade econômica, acentuada.
O agronegócio, embora recebendo altos subsídios do Estado, se afirma
liberal e, como os dois grupos anteriores, não quer saber de uma política de
neutralização da doença holandesa; quer realizar lucros extraordinários quando
há um boom de commodities.
A doença holandesa é uma apreciação de longo prazo e cíclica da taxa de
câmbio para a indústria causada por um substancial aumento de preços das
commodities exportadas pelo país, que causa uma apreciação da taxa de câmbio
geral ou corrente. Enquanto, para o setor exportador de bens primários
(agronegócio e exportador de minérios e petróleo), essa taxa de câmbio mais
apreciada é satisfatória porque o aumento de seus preços compensa a valorização
da moeda nacional, para a indústria essa apreciação é desastrosa. É papel do
Estado garantir uma taxa de câmbio competitiva para a indústria.
Nos países exportadores de commodities, a taxa de câmbio é
cíclica porque os preços das commodities também tendem a ser
cíclicos: ela se deprecia fortemente quando há uma crise financeira e depois se
aprecia, chega à taxa de equilíbrio geral (que equilibra a conta corrente do
país) e afinal se torna mais apreciada à medida que o déficit na conta corrente
aumenta devido à política que os países adotam equivocadamente de incorrer em
déficits na conta corrente (“poupança externa”). Começa então o endividamento
externo que, afinal, levará o país a nova crise de balanço de pagamentos e a
nova depreciação violenta da taxa de câmbio, encerrando-se assim o ciclo.
O Norte Global (o conjunto dos países ricos liderados pelos Estados
Unidos) não tem qualquer interesse em uma taxa de investimento alta na sua
periferia. Pelo contrário, visa evitar que os países em desenvolvimento se
industrializem, porque não querem concorrência no futuro.
Para isso, além de nos recomendarem que tenhamos déficits na conta
corrente desde que esses não levem o país a uma crise de balanço de pagamentos,
buscam manter economicamente abertos os países em desenvolvimento para a
exportar capitais (investimentos diretos e empréstimos) e para manter a troca
desigual – a troca entre bens tecnologicamente sofisticados, que pagam bons
salários e lucros, e bens pouco sofisticados que se caracterizam por baixo
valor adicionado per capita.
As empresas industriais, que não precisam de proteção com base no
argumento da indústria infante, precisam dramaticamente de proteção contra a
doença holandesa que, em boom de commodities, as
tornam não competitivas. Não obstante, seus dirigentes ou empresários não sabem
ou não querem saber o que é a doença holandesa, que pode ser mortal para eles.
O setor interno de serviços, muito amplo e diversificado, quer que a
taxa de juros seja baixa, mas seus dirigentes não têm poder político capaz de
influenciar o Banco Central. Ao contrário, eles acabam sendo corresponsáveis
pelos altos juros porque as associações que os representam são ocupadas por
economistas neoliberais.
Os eleitores, principalmente a classe trabalhadora e de empregados,
criticam a taxa de juros elevada, mas estão satisfeitos com uma taxa de câmbio
apreciada que aumenta o poder aquisitivo de seus salários e demais rendimentos.
Os políticos, finalmente, acompanham seus eleitores e estão felizes com
uma taxa de câmbio apreciada que facilita sua reeleição.
·
Os déficits na conta corrente e
os investimentos privados
Os liberais afirmam que o principal problema da economia brasileira é o
déficit público que causa aumento da dívida pública em relação ao PIB e
causaria inflação. De fato, manter o equilíbrio fiscal é importante, mas mais
importante é manter a conta corrente do país (a conta externa comercial mais os
serviços) equilibrada, algo que só acontece raramente.
Na verdade, rentistas, financistas, agronegócio, interesses
estrangeiros, eleitores e os políticos estão todos satisfeitos com um déficit
na conta corrente moderado, porque esses déficits aumentam o poder aquisitivo
dos seus rendimentos e mantêm tudo como está, inclusive a quase estagnação.
Ora, uma das características do populismo é procurar dar rendimentos
artificiais aos eleitores que são, afinal, prejudiciais ao país. Ao aceitarem
como bons os déficits na conta corrente (porque implicam acesso à poupança
externa), nossos atores são todos populistas. Mas não teriam eles razão?
Afinal, seria mais que natural que os países ricos em capitais transfiram seus
capitais para países pobres em capitais como é o Brasil.
Não, a política de crescimento com poupança externa ou de déficits na
conta corrente é uma política quecontém a causa do seu fracasso). Ao incorrer
em déficit na conta corrente, as entradas de capitais são maiores que as
saídas, a taxa de câmbio se aprecia e, além de estimular indevidamente o
consumo, desencoraja o investimento.
Esse caráter autofracassante da política de crescimento com
endividamento externo deixa de sê-lo se o país adota uma política cambial capaz
de compensar o excesso de entradas de capitais. Tudo, portanto parece
desestimular o investimento privado que, por isso, não aumentou sua
participação no PIB como seria de se esperar.
Finalmente, é preciso considerar que a poupança brasileira é muito baixa
e, ainda que esse fato possa ser superado pelo recurso ao financiamento interno
(por isso Keynes e Kalecki disseram nos anos 1930 que o investimento
precede a poupança), ela precisa ser considerada. A poupança deveria ser, em
princípio, quase igual aos lucros, os quais, para os empresários industriais,
são necessariamente baixos, dada a taxa de juros alta e a taxa de câmbio
apreciada.
Eles, portanto, não têm recursos necessários para financiar os
investimentos de modernização de suas fábricas e de expandir sua produção, o
que leva à desindustrialização. Além disso, ao não investirem, ficam atrasados
tecnologicamente e a produtividade da economia permanece estagnada.
Já o agronegócio realiza lucros elevados, mas seus empresários investem
na própria agricultura e pecuária e se opõem a qualquer política industrial e
de neutralização da doença holandesa. Os rentistas e financistas, por sua vez,
recebem juros e aluguéis elevados, mas não investem na indústria porque ela não
dá o retorno que desejam. Preferem investir seu dinheiro no mercado financeiro
e seus altos juros ou em imóveis que rendem bons aluguéis e se valorizam.
Em síntese, a taxa de investimento na indústria em relação ao PIB não
aumentou apesar das privatizações que ocorreram desde os anos 1970. Em todo o
período, os investimentos foram fortemente desestimulados porque apresentaram
uma taxa esperada de lucro insatisfatória, incapaz de motivar os investimentos,
dada a taxa elevada de juros que desde 1992 caracteriza a economia brasileira.
Foram, portanto, claramente insuficientes para que o país retome o
desenvolvimento e volte a realizar o “catch-up“.
·
A cultura dos juros altos
Além de rentistas e financistas defenderem juros altos e estes serem
necessários para atrair capitais que financiem um déficit na conta corrente que
não deveria existir, há uma causa subjacente para os juros serem altos: a
cultura de juros altos, a acomodação de todos com os juros altos, que decorre
do poder estrutural do capital e de um hábito cultural existente há muitos
anos.
Duas indicações desse fato. Em 1964, já no quadro do regime militar,
garantiu-se para as cadernetas de poupança, além da correção monetária, uma
taxa de juros real de 6% ao ano. Em 1988, a nova Constituição limitou a 12% a
taxa de juros real. Um limite muito alto, mas foi tanta a pressão do capital
contra esse dispositivo que o STF decidiu depender de lei complementar do
sistema financeiro internacional. Assim, a Constituição se tornou letra-morta
nesse ponto, enquanto o Congresso não se move para discutir a lei necessária.
·
A falta de poupança pública e o
investimento público
Voltando à comparação entre os anos 1970 (a última década em que o
crescimento foi satisfatório no Brasil) e o presente, foram os investimentos do
setor público que mais sofreram na virada dos anos 1970 para os anos 1980. A
poupança pública que girava em torno de 4% do PIB caiu de repente para -2%, uma
diferença de seis pontos percentuais.
Dois fatores foram determinantes da queda da poupança pública e do
investimento público: a crise da dívida externa e a crise fiscal do Estado, que
estudei bastante naquela época. Pergunto agora: seria possível o Estado voltar
a realizar uma poupança pública e recuperar pelo menos uma parte daqueles seis
pontos percentuais? Isto não parece provável. O Brasil continua com uma
poupança pública negativa e a possibilidade de voltar a ter uma poupança
pública positiva parece impossível.
Para aumentar a poupança pública, a maneira mais óbvia seria aumentar
impostos para, assim, compensar o excesso de juros que são pagos aos rentistas
locais e aos do Norte Global. Como vimos que esse excesso é de 3% do PIB, a
carga tributária em relação ao PIB deveria aumentar na mesma proporção, mas
ninguém quer pagar mais impostos.
A solução dada por rentistas e financistas ou, mais amplamente pelos,
neoliberais é reduzir as despesas do Estado exceto os juros. Vimos que os
investimentos públicos já foram reduzidos ao mínimo. Quanto às despesas
sociais, é impossível reduzi-las. Seria, sim, possível reduzir
os penduricalhos que a burocracia pública logra incluir em seus salários.
O atual governo vem tentando fazer alguma coisa em relação a esse problema.
Seria também possível reduzir os incríveis e absurdos subsídios e
isenções de impostos, como vem tentando o atual ministro da Fazenda, mas além
de ter de neutralizar o lobby dos interessados nos subsídios e nas isenções, o
Ministério da Fazenda tem que convencer muitos dos próprios membros do governo,
que se julgam representantes dos interesses de suas áreas, e o próprio
presidente da República que deve ser reeleito. Nessa área, como na dos juros,
há bilhões a ser economizados, mas os interesses contrários são poderosos.
Demitir funcionários? No plano federal, não há excesso de servidores
públicos. Nos governos estaduais e municipais, o excesso deve ser pequeno e o
problema precisa ser enfrentado, mas não fará grande diferença. Onde faria uma
grande diferença seria a redução da despesa com juros, que se obteria com a
baixa da taxa para um nível civilizado e perfeitamente compatível com o
controle da inflação. Mas quem será capaz de dobrar os rentistas e os
financistas?
Assim, sem poder reduzir significativamente as despesas e sem conseguir
aumentar os impostos para financiar essas despesas, o Estado não consegue
realizar a poupança pública que seria necessária para financiar os
investimentos públicos, que compensariam o não aumento do investimento do setor
privado. Na verdade, o país não consegue zerar seu déficit público, que lhe
permitiria realizar alguma poupança pública, a qual permanece negativa.
Os rentistas e financistas, porém, estão satisfeitos, porque não querem
que o Estado invista – o que eles denominam “estatização”. Os rentistas e
financistas (o “mercado financeiro”) querem que o Estado realize o superávit
primário, uma métrica que lhes agrada porque exclui (esconde) os juros e, não
obstante, garante que a dívida pública em relação ao PIB não aumente. Mas mesmo
esse superávit o governo tem grande dificuldade de conseguir.
·
O círculo vicioso se fecha
Em consequência de tudo isso, o Brasil está preso no círculo vicioso da
quase estagnação. Um círculo que tem alguma semelhança com o fluxo secular de
Joseph Schumpeter, definido em 1911. Nesse fluxo circular, que decorre da
lógica da teoria econômica neoclássica ou ortodoxa e do seu ideal de
concorrência perfeita, não há lucros (existe apenas o lucro normal, igual à
taxa de juros), os investimentos são iguais à depreciação efetivamente ocorrida
e não há crescimento.
Já no caso do círculo vicioso da quase estagnação brasileira, há lucros,
mas são baixos para a indústria de transformação; há investimentos e há
crescimento porque setores do agronegócio, da indústria e o setor de serviços
investem, mas esses são poucos, insuficientes para que o país saia da quase
estagnação em que está mergulhado desde os anos 1980.
Por outro lado, o Estado não tem recursos para complementar o setor
privado. Nos anos 1970, investia cerca de 8% do PIB. Hoje, investe apenas cerca
de 2%. Não consegue nem sequer financiar os investimentos públicos em
infraestrutura que são necessários para o país crescer. A solução proposta pela
ortodoxia liberal é privatizar. Os governos vêm seguindo essa trilha, mas os
resultados são parcos. O apetite e as possibilidades do setor privado são
restritos.
Entretanto, alguns investimentos em infraestrutura, cujos lucros são
certos, como nas concessões de rodovias, atraem muitos os rentistas e
financistas e são relativamente necessários. O governo Lula, portanto, avança
nas concessões por falta de alternativa.
Já outros investimentos muito necessários em infraestrutura não atraem o
setor privado, a não ser que o Estado subsidie seus investimentos (parcerias
público-privadas). A potencialidade dessas parcerias, porém, é limitada porque
envolve gastos do Estado, o qual é mantido no nível de subsistência.
Há 20 anos, afirmo que a economia brasileira está presa na armadilha dos
juros altos e do câmbio apreciado. Hoje, apoiado na teoria
novo-desenvolvimentista, posso acrescentar que o Brasil está preso ao círculo
vicioso da quase estagnação. Um círculo que se fecha com a impotência do Estado
de rompê-la.
Ao apresentar o Brasil, sua economia e sua política de uma maneira nova,
na qual podemos ver como os diversos atores tratam de manter a economia
brasileira presa a esse círculo, sou obrigado a me mostrar pessimista quanto ao
futuro do Brasil e do seu povo.
Fonte: Por Luiz Carlos Bresser-Pereira, no
Portal do Uol
Nenhum comentário:
Postar um comentário