Universidades
Públicas: os próximos passos
Servidores
técnico-administrativos e docentes de Universidades e institutos públicos
federais se encontram em greve há cerca de 90 e 60 dias, respectivamente. Nesse
período, ocorreram negociações com o governo federal que, apesar da decepção na
obtenção de reajuste salarial este ano, resultaram em algumas vitórias para as
categorias profissionais, assim como em pequeno incremento no orçamento das
instituições de ensino.
Independentemente
dos resultados alcançados no que tange à pauta de reivindicações, há que se
celebrar o retorno do diálogo respeitoso e, sobretudo, do espaço para discussão
e mobilização em prol do fortalecimento da Universidade pública. (Vale destacar
que, em passado muito recente, a comunidade universitária teve que resistir a
ataques que visavam seu aniquilamento. Nesse movimento, foi vitoriosa ao
constituir um amplo arco de alianças na sociedade, capaz de rechaçar a distopia
do Future-se, um projeto do governo protofascista que buscava transformar as
atividades de ensino e pesquisa em commodities a serem negociadas nos mercados
financeiros e que também reforçava as amarras burocráticas limitadoras da
autonomia universitária.)
Se
a presente mobilização não conseguiu reverter as perdas salariais dos últimos
oito anos, nem conseguiu fazer o orçamento das universidades retomar os
patamares de dez anos atrás, os pequenos ganhos não são desprezíveis,
considerando a conjuntura política. Como se sabe, o governo Lula representa uma
coalizão ampla e diversificada que conquistou a presidência da República, mas
perdeu as eleições para o Legislativo. O Executivo federal, então, enfrenta um
Congresso nacional empoderado, extremamente hostil e, muitas vezes, truculento.
Entre outras estratégias, lideranças congressistas têm recorrido à suposta
defesa de valores morais conservadores, que ganharam força em grandes segmentos
da população, para obter maior controle sobre o orçamento da União e tentar
emparedar politicamente o governo. Ao mesmo tempo, no plano econômico,
poderosos setores rentistas, que dominam os outros setores de uma economia
financeirizada, intensificam a pressão, inclusive manipulando o mercado de
capitais, para continuar expandindo a renda que auferem das receitas públicas e
reduzir sua contribuição ao financiamento do Estado.
O
presidente Lula, com a habilidade que lhe é notória, tenta se equilibrar,
buscando cumprir o programa apresentado durante a campanha eleitoral, sem abrir
espaço para a repetição do golpe de 2016. Nesse sentido, parece equivocado
afirmar-se que Lula deu as costas para sua base social ou que sucumbiu à agenda
neoliberal. Ainda que insuficientes, são importantes os avanços na pauta
econômica que beneficiam a população como um todo e, especialmente, os mais
pobres: redução da inflação e do desemprego, crescimento do PIB, aumento da
massa salarial, retomada dos programas sociais (congelados ou suspensos nos
dois governos anteriores). Os servidores públicos também se beneficiam desse
novo ambiente, seja com a volta da mesa permanente de negociações e o respeito
ao direito de greve, seja com aumentos salariais (mesmo ainda insuficientes,
mas em contraste com sete anos sem qualquer reajuste nos dois governos
anteriores), reestruturação de carreiras e revogação de normas arbitrárias.
Saliente-se
que os avanços em políticas públicas, mesmo timidos, não estão garantidos. De
fato, nesse cenário de forte instabilidade, a mera preservação da atual
coalizão governamental até 2026 passa a ser uma incógnita. Se qualquer
candidato liberal-conservador, sem arroubos fascistas ou aparência estúpida,
mostrar-se eleitoralmente viável, é muito provável que a ala centro-direita da
coalizão abandone o governo Lula. Assim, mesmo com melhorias na situação
econômica do povo, não será fácil a reeleição de Lula.
Diante
dessa correlação de forças, como posicionar o movimento popular, em geral, e o
movimento dos trabalhadores universitários, em particular?
De
modo geral, é fundamental continuar atento às ameaças à democracia: lembrar que
a extrema direita continua forte, tem significativo respaldo popular, e é capaz
de aglutinar toda a direita e retomar o governo federal em 2026. Portanto, há
que se disputar os rumos do governo Lula sim, mas não de maneira a facilitar
uma oposição capaz de unificar direita e extrema-direita. Ademais, não é
prudente apostar todas as fichas nas disputas eleitorais. Antes, é preciso
construir um programa político articulador de todos os segmentos populares em
suas lutas diversificadas: assalariados/as em luta por melhores condições de
trabalho, trabalhadores/as precarizados/as na busca por direitos, sem-teto em
luta pela moradia, sem-terra em prol da reforma agrária e da agricultura
ecológica, povos originários e seu direito ao território e a uma existência
digna, negros/as e o combate ao racismo, mulheres em busca da
igualdade,população LGBTQIA+ em sua luta pelo direito a ser o que é, juventude
em prol da autonomia, da educação pública e do trabalho decente. Um programa
político assim formulado e realizado com efetividade pode desencadear
mobilizações com capacidade de pressionar qualquer governo.
De
modo particular, os servidores e as servidoras docentes e
técnico-administrativos poderão intensificar as discussões com os/as estudantes
e construir uma aliança estratégica com as classes populares. Como forjar essa
aliança? Essencialmente, discutindo e amadurecendo no seu cotidiano um projeto
de Universidade democrática e popular, mediante mobilizações permanentes e
apenas não episódicas.
Acrescente-se
que o novo ambiente político é propício à retomada dos debates sobre a
Universidade pública. Em outro
texto (Almeida -Filho e Souza, 2020),
apresentamos algumas linhas do que seria uma Universidade popular, comprometida
com a excelência acadêmica e a justiça social. Para respeitar esse compromisso,
as Instituições de Ensino Superior (IES) precisam ter sua autonomia (capacidade
de auto normação e autogestão) conquistada e fortalecida, com a liberdade e a
autoridade de gerir a totalidade de seus recursos, dentro de um novo marco
regulatório que supere o engessamento da gestão das IES federais, definindo-as
como entidades portadoras de estatuto jurídico especial. Essa autonomia, por
sua vez, estaria assentada em um contrato social de direitos, deveres e
obrigações, a ser discutido e avaliado anualmente em conselhos sociais
comunitários com participação majoritária de representantes de entidades da
sociedade civil: sindicatos, movimentos sociais, associações de classe e órgãos
de fomento cientifico e tecnológico. Esses conselhos estratégicos sociais
opinariam sobre o desempenho da universidade, mediante relatórios periódicos, a
serem considerados nos processos de avaliação da instituição.
Na
dimensão acadêmica, as IES organizariam suas atividades de modo a favorecer a
coprodução e a disseminação de um saber emancipador que reflita as realidades
de educandos/as e educadores/as, identificando as necessárias transformações. O
regime de ciclos – em que se articulam a formação geral, humanística e
interdisciplinar e a formação profissional em campos específicos do saber – é,
nesse sentido, uma estratégia pertinente e promissora que pode ser retomada,
revisada e ampliada.
Conforme
o texto acima citado, um aspecto central da Universidade popular é a inclusão
social, étnico-racial e territorial. Além da ampliação da reserva de vagas para
estudantes oriundos/as do ensino médio público e, dentro desta quota, para
estudantes negros/as e indígenas, a Universidade popular promoverá a
diversidade cultural e a identidade, ação e memória dos diferentes segmentos
étnicos nacionais, valorizando os seus saberes, modos de vida e formas de
expressão. Nesse ponto, é fundamental viabilizar a permanência de estudantes
financeiramente vulnerabilizados/as, adotando alternativas como estágios
remunerados, atividades práticas com bolsas, contratos de trabalho para
atividades de pesquisa, extensão e ensino, como monitores ou instrutores. Esses
programas podem ser financiados com a captação de recursos extraorçamentários,
sobretudo em atividades de colaboração e apoio a políticas públicas de largo
alcance, criando dotações próprias consignadas anualmente.
Essas
são as características principais de um projeto de Universidade a ser
defendido, urgentemente, na sociedade, no parlamento e no governo. Trata-se de
uma proposta que se opõe radicalmente não apenas ao projeto autoritário de
aniquilamento da Universidade, mas também a um projeto de educação acrítica,
tecnicista e adestradora . A educação tecnicista se caracteriza por enfatizar a
eficiência, a padronização e a preparação dos estudantes para o mercado de
trabalho. Esta abordagem se baseia em teorias administrativas e psicológicas
que priorizam o comportamento observável e a aplicação de técnicas específicas
para alcançar objetivos específicos, em geral, limitados à produtividade
laboral e ajustados à conformidade social. Não por acaso, o projeto tecnicista
de ensino é defendido por fundações privadas, ligadas a poderosos grupos
econômicos que consideram a educação como um capital humano, vetor fundamental
para a modernização do capitalismo. Acrescente-se que, há muito tempo, essas
organizações têm influenciado a formulação de políticas educacionais no Brasil,
o que tem se repetido no atual governo.
Assim,
se durante o governo anterior a luta em defesa da Universidade teve que se
concentrar na resistência ao aniquilamento imediato, o eixo central agora se
situa na disputa entre o projeto de uma Universidade pública com excelência
acadêmica e compromisso social e um projeto de ensino superior utilitarista. O
anúncio, no início de 2024, da construção de 100 novos institutos federais de
educação, ciência e tecnologia, num momento em que o orçamento das
universidades federais era reduzido em 5% em relação ao ano anterior (mesmo
tendo o MEC recebido um aumento de mais de 14% em seu orçamento ), é revelador
da persistência desse projeto de educação.
Note-se
que o projeto tecnicista, embora contido no ataque ostensivo à Universidade
pública, claramente a menospreza. Os membros da alta burguesia que vivem no
Brasil já resolveram o problema de uma formação universitária de qualidade para
seus herdeiros e herdeiras. Há boas universidades privadas, que oferecem
educação integral e são capazes de formar lideranças empresariais, além de
opções no exterior cada vez mais publicizadas.
A
Universidade pública, solidária, popular e inclusiva, hoje interessa,
sobretudo, às classes trabalhadoras e às populações excluídas que, depois das
políticas de ações afirmativas, passaram a ter maior acesso aos cursos
superiores. A Universidade pública, com excelência acadêmica e comprometida com
a sociedade, é vital para fortalecimento das políticas públicas de grande
impacto social que o governo federal tem se empenhado em retomar e consolidar,
nos campos da proteção social, do meio ambiente, da saúde e, principalmente, da
educação. Além disso, uma Universidade pública, com competência cientifica e
tecnológica, é imprescindível para uma política internacional soberana,
comprometida com a sustentabilidade planetária e com a paz mundial, liderada
por uma nação economicamente pujante, com independência tecnocientífica em
setores estratégicos. O pronunciamento do Presidente Lula na recente reunião
com os reitores (Brasil, 2024) demonstra plena consciência da importância dessa
tripla pauta para o país, ao demandar das IFES ajuda para avançar no tema
conjuntural (mas não menos relevante) da soberania nacional no campo da
Inteligência Artificial, para se integrar à luta contra o analfabetismo e a
favor da educação básica pública e para continuar apoiando o esforço de
recuperação das políticas públicas de seu governo.
Enfim,
a defesa da Universidade pública na atual conjuntura será vitoriosa se tiver
como eixo central a aliança de docentes, servidores/as técnico-administrativos
e estudantes com as classes trabalhadoras e com os movimentos sociais. As
pautas salariais pleiteadas são legítimas e urgentes e devem ser objeto de
reivindicações e mobilizações. Contudo, a luta pela recuperação do poder
aquisitivo deve assumir formas que não prejudiquem ou dificultem a aliança
fundamental em defesa da própria Universidade.
Infelizmente,
é isso o que poderia provocar uma greve de desgaste que se prolongasse:
enfraquecesse os laços dos movimentos sindicais dos trabalhadores
universitários com os estudantes, suas famílias e suas comunidades, ainda que
reconheçam a justeza das reivindicações. Se foi inevitável deflagrar a greve,
respondendo à justificada insatisfação com as condições de trabalho e aos
compreensíveis sentimentos de decepção com um governo no qual tantas esperanças
se depositaram, agora podemos retomar a análise estratégica e racional da
correlação de forças, concluir o ciclo da greve, reorientar a mobilização e,
reunidos, construir a luta política mais ampla e decisiva que nos desafia.
Fonte:
Por Luis Eugenio de Souza e Naomar de Almeida Filho, em Outras Palavras
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