quarta-feira, 5 de junho de 2024

Porrete ‘Disciplina’: líderes religiosos viram réus por escravidão no Pará

CRIANÇAS E JOVENS impedidos de frequentar a escola; cartões do Bolsa Família retidos por líderes religiosos; pessoas submetidas a trabalho forçado, sem remuneração nem direitos; castigos corporais aplicados com ripas de madeira nas quais se lia a inscrição “Disciplina”; adolescentes abusadas sexualmente “para virarem boas esposas”. 

Citando uma série de violações, o Ministério Público do Trabalho (MPT) no Pará entrou com uma ação contra nove líderes da Comunidade Lucas, além de uma empresa e duas associações registradas nos nomes dos réus, acusando-os de escravizar seus seguidores. 

Localizada no município de Baião, no nordeste do estado, a seita religiosa tem sido alvo de denúncias desde seu surgimento, na década de 1990.

Na ação, o MPT pede R$ 5 milhões em indenização por danos morais coletivos, além da regularização da situação trabalhista dos membros da comunidade, que ainda se mantém em atividade. Atualmente, cinco líderes do grupo estão presos.

“É uma situação que não só profissionalmente, mas pessoalmente, me chocou bastante” revela Tathiane Menezes do Nascimento, procuradora do MPT responsável pelo caso.

A Repórter Brasil tentou contato com os representantes dos réus, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto.

Parte inferior do formulário<><> Trabalho escravo era disfarçado de ‘voluntário’, diz MPT

Fundada por um pastor evangélico três décadas atrás, a Comunidade Lucas prometia uma vida comunitária, baseada na partilha de bens e na comunhão da fé, no interior do Pará. No entanto, violências físicas e psicológicas faziam parte do dia-a-dia da comunidade, segundo a ação movida pelo MPT. 

Membros trabalhavam como garçons e cozinheiros, ou na fabricação de móveis, na confecção de roupas e na produção de farinha. Ninguém recebia salário – as atividades profissionais eram classificadas como “voluntárias”, em prol de um suposto benefício coletivo.

Ainda segundo a ação, líderes da seita retinham cartões de benefícios sociais, como bolsa-família e auxílio-pesca, além de fazer empréstimos em nome dos integrantes. Crianças e jovens eram impedidos de frequentar a escola fora da comunidade e submetidos a trabalhos forçados e doutrinações. 

Ex-membro, Levy Sousa do Rosário foi levado para Comunidade Lucas quando criança pela mãe, que ainda faz parte do grupo. Em entrevista à Repórter Brasil, ele afirma ter sido submetido a trabalhos forçados e não remunerados, dentre outros abusos. “Eu fui botado para caçar com arma de fogo desde criança”, relata. 

Segundo Rosário, instrumentos de punição, como ripas de madeira com a palavra “Disciplina”, eram usados para manter a ordem. Além disso, crianças da comunidade eram estimuladas a agredir outras, como forma de punição por eventuais descumprimentos das ordens de superiores.

“Eles me ameaçaram muito pelo telefone. E, pessoalmente mesmo, eles botaram arma em mim”, revela Rosário, que afirma ter sido alvo de espancamentos e intimidações, depois de manifestar a vontade de deixar a Comunidade Lucas.

Ainda segundo a ação do MPT, líderes religiosos exploravam sexualmente crianças e adolescentes da comunidade, sob a justificativa de ensiná-las a “serem boas esposas”. 

As que se recusavam eram vítimas de ameaças e punidas com raspagem de cabelo. Um caderno, utilizado como prova na ação, misturava ensinamentos da Bíblia com anotações sobre práticas sexuais. 

·        Comunidade Lucas continua em funcionamento

Segundo a procuradora do MPT, Tathiane Menezes do Nascimento, a investigação teve início após uma denúncia envolvendo um bar controlado pelos líderes da comunidade. 

No estabelecimento, membros da comunidade eram submetidos a jornadas exaustivas e dormiam em alojamentos precários.

Denúncias levaram à prisão de cinco líderes da seita. O caso ganhou repercussão nacional em setembro de 2022 depois da veiculação de uma reportagem do telejornal “Fantástico”, da Rede Globo.  

Apesar dos processos na Justiça, a Comunidade Lucas continua em funcionamento. Retirar os moradores do local é um dos principais desafios citados pela procuradora do MPT.  “Não tem onde colocar essas pessoas. E não tem nem como convencê-las a saírem de lá.” 

Muitos dos indivíduos nasceram e cresceram dentro da comunidade, não sendo possível ter dimensão dos acometimentos denunciados. Entre alguns, não existindo sequer desejo de deixar o local.

·        Processo na Justiça do Trabalho corre em paralelo à ação criminal

Na ação civil pública deste ano, o MPT pede a condenação de nove pessoas, apontadas como líderes da seita, em R$ 5 milhões, a título de dano moral coletivo, bem como a regularização de todos os direitos dos trabalhadores, incluindo pagamento de remuneração, registro na carteira de trabalho, limitação de jornada e fornecimento de instalações sanitárias adequadas. 

O processo será julgado pela Vara do Trabalho de Tucuruí (PA), em paralelo com a ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF) que já resultou na condenação criminal de cinco líderes religiosos.

 

¨      Vítima de escravidão doméstica por 33 anos aguarda indenização

IARA PASSOU quase metade de seus 71 anos trabalhando como empregada de uma família na capital paulista, sem nunca ter recebido salário ou qualquer outro direito trabalhista. “É o que as patroas falam sempre pra gente: aqui em casa de família vocês não têm que pagar a roupa, não têm que pagar aluguel, não têm que pagar comida”, relata.

O trabalho em âmbito doméstico responde por 43 dos 248 novos casos de escravidão relacionados na mais recente atualização da “lista suja” do trabalho escravo, como é conhecido o cadastro de empregadores responsabilizados por esse crime, divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Depois de deixar um orfanato no interior de São Paulo, aos 10 anos, ela passou pela residência de diversas famílias, até chegar à casa de onde seria resgatada por autoridades, em 2022. A inspeção foi motivada por uma denúncia anônima: “Ela trabalha das 6 da manhã à meia-noite. A idosa não recebe salário, vestimentas, auxílio médico ou qualquer direito trabalhista”, dizia o texto do alerta.

Em entrevista ao podcast, a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), Aline Oishi, revela o que falou a Iara, ao retirá-la da casa onde havia vivido por mais de três décadas: “Esse é o momento da senhora sair daqui para a gente buscar uma outra vida”.

Em março de 2023, o casal Maria Sidrônia Chaves de Oliveira e José Enildo Alves de Oliveira, empregadores de Iara, foram condenados em primeira instância pela 30ª Vara do Trabalho de São Paulo. A sentença determinou o pagamento de R$ 800 mil, incluindo salários, verba rescisória e indenização por danos morais. 

A defesa do casal entrou com recurso — a apelação poderá ser julgada ainda neste ano. A Repórter Brasil procurou o casal para uma entrevista. Porém, por meio de seu advogado, o pedido foi rejeitado. 

Nos autos do processo, Maria Sidrônia e José Enildo alegam inocência. A defesa sustenta que “todos nutrem muito carinho por ela” e que “nunca existiu relação laboral porque ela é considerada como um membro da família”. 

Na decisão, a juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte afirmou que as “condições análogas à de escravo”, como definido pela legislação, são especialmente cruéis quando se trata de trabalho doméstico. 

“Por óbvio, a trabalhadora desprovida de salário por mais de 30 anos não possui plena liberdade de ir e vir. Não possui condições de romper a relação abusiva de exploração de seu trabalho, pois desprovida de condições mínimas de subsistência longe da residência dos empregadores, sem meios para determinar os rumos de sua própria vida”, sustentou a magistrada na sentença. 

 

Fonte: Reporter Brasil

 

Nenhum comentário: