PL
antiaborto deve afetar meninas vítimas de estupro
Deputados
federais estão em campanha para aprovar, sem debates ou consultas públicas, um
projeto de lei que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gravidez ao
crime de homicídio, mesmo em caso de estupro. A proposta quer alterar o Código
Penal, que, desde 1940, não estabelece limite de tempo para realizar o
procedimento em casos de abuso sexual.
O
plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (12/06), em votação
relâmpago, o pedido de urgência para votar o projeto antiaborto. Ou seja, o
texto pode ser votado diretamente, sem ter que passar por comissões temáticas
da casa, onde poderiam ser feitas audiências e outros ritos para analisar e
debater a proposta.
A
proibição é uma demanda da bancada evangélica e veio em resposta à decisão do
ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), que suspendeu
todos os processos judiciais e procedimentos administrativos e disciplinares
derivados de resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM).
A
resolução do conselho também dificultou o acesso ao aborto em caso de estupro e
proibiu médicos de realizarem a assistolia. O procedimento, que consiste em
injetar medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, é
recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) nos casos de aborto legal
acima de 20 semanas de gestação, e evita que o feto seja retirado do útero com
sinais vitais.
Hoje,
o aborto é permitido pela lei em três casos no Brasil: gravidez decorrente de
estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. O serviço deve ser
oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Se
o projeto – endossado por 32 deputados – vingar, meninas e mulheres que fizerem
aborto após a 22ª semana de gestação estarão sujeitas a penas de até 20 anos de
reclusão. O profissional da saúde que realizar a assistolia também pode ser
condenado criminalmente.
A
pena para vítima de violência sexual que engravidou e decidiu abortar poder ser
maior inclusive do que a aplicada ao próprio estuprador. A pena para esses
crimes vai de 5 a 10 anos de reclusão, quando a vítima é adulta; de 8 a 12 anos
quando a vítima é menor de idade, de acordo com o Código Penal. No caso de
estupro de vulnerável, quando a vítima tem menos de 14 anos ou não tem
condições de reagir, a pena vai de 8 a 15 anos. E somente em casos em que o
crime é praticado contra vulnerável e resulta em lesão corporal grave, é que a
pena pode chegar a 20 anos – o tempo máximo de reclusão que a lei prevê para
quem praticar o aborto.
• "PL da gravidez infantil"
Segundo
a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, o projeto em tramitação na Câmara vai
agravar os casos de gravidez de meninas até 14 anos e revitimiza vítimas de
estupro.
"Não
é por acaso que os movimentos feministas e de mulheres vêm intitulando o
Projeto de Lei 1.904/2024 de 'PL da Gravidez Infantil'", afirmou a
ministra, em nota, em referência à campanha de ativistas e famosas nas redes
sociais contra o projeto.
"Seja
por desinformação sobre direitos e como acessá-los, exigências desnecessárias,
como boletim de ocorrência ou autorização judicial; ou pela escassez de
serviços de referência e profissionais capacitados, o Brasil delega a
maternidade forçada a essas meninas vítimas de estupro, prejudicando não apenas
o futuro social e econômico delas, como também a saúde física e
psicológica", explica Gonçalves.
Meninas
vítimas de violência sexual enfrentam, além do trauma em si, uma série de
obstáculos para a realização do aborto. Os sinais da gravidez muitas vezes são
detectados mais tarde, por falta de conhecimento do próprio corpo e de apoio da
família. O acesso ao procedimento médico é uma saga à parte.
Apenas
3,48% dos municípios brasileiros têm serviço de aborto legal, explica Rebeca
Mendes, advogada do projeto Vivas, que auxilia mulheres e meninas a terem
acesso a serviços de aborto legal. "As poucas meninas que reafirmam que
querem acesso ao direito ao aborto legal têm que fazer essa peregrinação. E se
são meninas periféricas, pobres, que não têm condições financeiras para se
deslocar, às vezes nem dentro da própria cidade, elas não chegam [aos serviços
de atendimento] em tempo."
O
problema se agrava em casos em que o agressor é também o responsável legal pela
vítima. Isso faz com que os sinais da gravidez sejam identificados tardiamente
– o que costuma ser feito por profissionais presentes na rede de proteção da
criança, como a escola.
Apenas
três hospitais realizam a assistolia fetal no Brasil. Eles estão em Minas
Gerais, Bahia e Recife. Uma quarta unidade de saúde, o Hospital Vila Nova
Cachoeirinha, em São Paulo, encerrou o serviço em dezembro de 2023.
Mendes
aponta ainda que grande parte dos serviços não funciona, ou criam barreiras
burocráticas para o procedimento.
Como
aconteceu em Santa Catarina, em 2022, quando uma criança de 10 anos, vítima de
estupro, descobriu a gravidez apenas na 22ª semana de gestação. Inicialmente,
ela não conseguiu acesso ao aborto. A juíza que cuidou do caso enviou a criança
a um abrigo para impedir a mãe de "realizar qualquer procedimento para
causar a morte do bebê". A magistrada também pressionou a menina a dizer
que suportaria ficar mais tempo com o bebê.
• A cada dia, 38 meninas de até 14 anos
viram mães no Brasil
Segundo
dados do Ministério da Mulher, em média, 38 meninas de até 14 anos se tornam
mães a cada dia no Brasil, de acordo com dados do SUS. Em 2022, foram mais de
14 mil gravidezes entre meninas com idade entre 10 e 14 anos no país.
Em
2022, o Brasil registrou cerca de 75 mil casos de estupro – o maior da série
histórica, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Seis em cada
dez vítimas eram crianças de até 13 anos, 57% eram negras e 68% dos estupros
ocorreram na residência das vítimas.
"Ou
seja, as principais vítimas de estupro no Brasil são meninas de até 14 anos,
abusadas por seus familiares, como pais, avôs e tios. São essas meninas que
mais precisam do serviço do aborto legal, e as que menos têm acesso a esse
direito", afirma a ministra Cida Gonçalves.
O
ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, afirmou, em suas redes sociais,
que o projeto "é uma imoralidade, uma inversão dos valores civilizatórios
mais básicos. É difícil acreditar que sociedade brasileira, com os inúmeros
problemas que tem, está neste momento".
Fonte:
Deutsche Welle
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