Ladislau Dowbor: ‘Por
quê e como abolir os super ricos’
Raramente
a questão da desigualdade, o principal desafio da humanidade junto com a
catástrofe ambiental, foi trabalhada de maneira tão clara e detalhada. Malleson
apresenta os dados da desigualdade, sua progressão, como se cruza com os
mecanismos de mercado, como podem funcionar os mecanismos tributários para
enfrentar a desigualdade de renda e de riqueza, quais são os custos e
benefícios das medidas. Em particular, desmonta a farsa do “merecimento” dos
mais ricos, ao mostrar, do lado dos mecanismos econômicos, que se trata de
comportamentos que travam e deformam o desenvolvimento, e do lado da ética e da
justiça, que se deve respeitar o valor do ser humano como tal, e assegurar o
básico que lhe permita viver com dignidade. Argumento fundamental: o que produzimos
é hoje amplamente suficiente para assegurar condições de conforto econômico
para todos.
O
livro é particularmente oportuno pois a desigualdade está literalmente
explodindo, no quadro da economia imaterial e da financeirização. Quanto mais
se é rico, mais rapidamente se enriquece, no que se qualifica como bola de neve
financeira.
Malleson
se apoia na sistematização de Thomas Piketty, que demonstrou que aplicações
financeiras rendem entre 7% e 9% ao ano, enquanto a produção de bens e
serviços, o PIB, aumenta na ordem de 2,5% a 3% ao ano. O dreno financeiro se
tornou o mecanismo principal de enriquecimento, mecanismo diferente do
enriquecimento através de lucros sobre a produção que caracterizava o
capitalismo industrial. No gráfico acima, constatamos que na fase de 1946 a
1980, os 50% mais pobres tiveram crescimento de renda superior à classe média e
às elites. Em 1980 e até 2014, a tendência se inverte, e o enriquecimento da
metade mais pobre da população estagna, enquanto o topo explode. Aparece
claramente a ruptura sistêmica que se deu no capitalismo.
Malleson
vai direto ao ponto, e o livro começa da seguinte forma, na primeira linha:
“Elon Musk, o CEO da Tesla e a pessoa mais rica do mundo, possui atualmente
$270 bilhões de dólares. O trabalhador americano médio teria de trabalhar 7,5
milhões de anos para ganhar esse montante…No mundo, os 8 indivíduos mais ricos
possuem o mesmo montante de riqueza que a metade do planeta…Nunca durante todo
o tempo da história humana um tal nível de desigualdade foi antes visto.”(p.1)
Tal enriquecimento, enquanto uma gigantesca massa da população está sofrendo em
condições desumanas, é simplesmente escandaloso. E ao travar a capacidade de
consumo e de produtividade de bilhões de pessoas, trava a própria economia.
Trata-se de incompetência sistêmica.
O
resultado é um gigantesco desperdício de recursos. “De forma geral, quanto mais
dinheiro uma pessoa tem, mais possibilidade terá de assegurar uma vida boa e
florescente. No entanto, nem sempre mais dinheiro oferece o mesmo grau de
melhora de qualidade de vida, em qualquer nível. No nível inferior, mais
dinheiro pode significar uma imensa diferença de qualidade de vida, já que pode
equivaler à diferença entre morrer de fome e sobreviver, enquanto para o
bilionário, um extra de mil dólares essencialmente não significa nada. Esse é o
fenômeno familiar da chamada utilidade marginal decrescente do dinheiro.”(220)
Mais dinheiro na base da sociedade significa que se torna mais útil. “Os
benefícios da redução da desigualdade pesam mais do que os custos.”(257)
Um
segundo argumento que atravessa todo o livro, é uma questão moral da igualdade
da dignidade de vida de qualquer pessoa, como ser humano, seja rico ou pobre,
preto ou branco, homem ou mulher, sofrendo ou não de alguma perda de
habilidades. Como ser humano, temos direitos básicos. “Chegamos aqui ao centro
do argumento ético deste livro. A razão última e fundamental por que a
desigualdade econômica é errada é que os seres humanos têm valor moral igual e
portanto deveriam ter igual direito de acesso às condições materiais
necessárias para viver uma vida boa e florescente…Somos todos membros da
família humana, preciosos e únicos.” Não se trata de um igualitarismo
generalizado. “Todos, independentemente das habilidades ou esforço, deveriam
ter o acesso garantido aos bens essenciais necessários para uma vida boa e
florescente…Eu chamo essa visão Egalitarianismo de Vida Boa (Good Life
Egalitarianism). (191) Como vimos, temos os recursos suficientes, e a
redução das desigualdades tornaria a vida melhor para todos, além de estimular
o próprio desenvolvimento econômico do conjunto.
Um
terceiro nível de análise, que ocupa a parte central do livro, é a questão do
merecimento. Malleson se apoia, entre outros, nos estudos de Michael Sandel, em
particular A tirania do mérito, e nos dados trazido por
Piketty, de que 66% das fortunas apresentadas pela Forbes constituem riqueza
herdada.(140) Hoje são dinastias financeiras, uma aristocracia que não precisa
apresentar merecimento algum. Hugh Grosvenor, duque de Westminster, herdou 9
bilhões de libras [11,5 bilhões de dólares] na idade de 25 anos, tornando-se a
pessoa de menos de 30 anos mais rica do mundo.” (86) Grosvenor, aplicando o seu
dinheiro a 7% ao ano, aumenta a sua fortuna em $2,2 milhões ao dia, dinheiro
que é reaplicado, gerando o chamado de snowball effect, efeito
bola de neve visto acima. Quanto mais se enriquece, mais rapidamente aumenta a
fortuna. Alguém paga por isso: por exemplo todos nós, ao pagarmos mais para
encher o tanque do carro, alimentando com mais dividendos os acionistas da
Petrobrás. O que aliás gera inflação (profit inflation), o que vai
permitir que o Banco Central justifique o dinheiro que repassa aos detentores
de títulos da dívida pública, também a elite financeira, sob o pretexto de
combater a inflação. O sistema é global, e articulado, e o dinheiro é
imaterial, são apenas sinais magnéticos, permitindo deslocamentos instantâneos
e globais (High Frequency Trading). Mão invisível? Capitalista?
Produtor? Merecimento?
O
argumento do merecimento é mais fragilizado ainda pelo fato de o enriquecimento
dos bilionários se apoiar tão amplamente na base de conhecimentos científicos e
tecnológicos desenvolvidos pela sociedade em geral, o que Malleson chama de
“conhecimento coletivo”. “São fatores acumulados de produção e o conjunto de
infraestruturas sociais que promovem e facilitam as atividades econômicas, que
eu chamarei coletivamente de ‘a subestrutura’”. Tornar-se empresário nos
Estados Unidos, com inclusão digital, infraestruturas de transporte, gente
formada em universidades, sistemas de suporte financeiro, acúmulos
tecnológicos, regras do jogo estabelecidas, um mercado consumidor dinâmico, é
profundamente diferente de tentar investir em regiões pobres e desiguais no terceiro-mundo.
“Como Alperovitz e Daly apontam, isso significa que o grosso da nossa riqueza
moderna não pode ser atribuída ao esforço ou decisões de investimento de
indivíduos isolados mas antes é o resultado de os indivíduos estarem
construindo em cima da imensa infraestrutura de conhecimento que nos chegou
através de vastas redes de engenheiros, cientistas, teóricos, técnicos,
professores, pesquisadores, praticantes e outros.”(143) O sistema educacional,
lembra Malleson, é um componente essencial da infraestrutura de conhecimento,
como também o sistema de saúde, o conjunto de recursos naturais como por
exemplo os combustíveis fósseis que tanto expandiram a nossa massa energética.
Nesse sentido, “toda produção é, na realidade, uma produção social.”(146)
Se
acrescentarmos os privilégios familiares – onde e de que família você nasceu em
grande parte determina o nível de oportunidades que terá – ou as oportunidades
radicalmente diferentes de você estar na Suíça ou no Bangladesh, ou ainda os
diversos fatores genéticos herdados, a dimensão do “merecimento” se reduz
drasticamente, e em todo caso não justifica os imensos privilégios que
aprofundam a desigualdade no planeta. Os processos distributivos têm de ser
assumidos como desafios necessários e vitais para o planeta, tanto por razões
de decência humana, reduzindo tanto sofrimento, como por razões econômicas ao
gerar uma base mais ampla de desenvolvimento, e em particular políticas: a
desigualdade profunda gera massas desesperadas, base fértil para populismos
extremistas e fascismos de diversos tipos. (125 e ss.) Tanta apropriação
concentrada de riqueza é simplesmente ilegítima.
A
parte propositiva do livro se apoia no fato básico já mencionado, de que hoje
dispomos no mundo de recursos suficientes para todos. Assegurar uma vida digna
envolveria reduzir em pouco mais de 2% a riqueza dos bilionários, sendo que
mesmo pagando 2% de imposto sobre a fortuna, por exemplo, com a fortuna
restante rendendo 7%, continuariam a se tornar mais ricos a cada ano. O PIB
mundial, por exemplo, 105 trilhões de dólares, dividido pela população, 8
bilhões, é equivalente a 4.200 dólares por mês por família de 4 pessoas. “Os
benefícios de impostos elevados e da redução da desigualdade são enormes, muito
mais significativos do que em geral se aprecia…Assegurar as necessidades
urgentes dos mais pobres no mundo, reduzir a catástrofe climática, proteger a igualdade
democrática, reduzindo a ameaça do populismo da extrema-direita e do fascismo,
e expandir iguais oportunidades e segurança. Seria difícil exagerar o valor
desses benefícios. ”(258)
É
politicamente viável? Malleson discute de maneira detalhada os potenciais e
dificuldades da renda básica, da taxação de fortunas e de heranças, de se
assegurar a transparência dos fluxos financeiros, de se conter a fuga de
capitais, de reduzir os monopólios de patentes e copyrights, de reduzir o uso
da dívida pública como apropriação de recursos pelos mais ricos, dos impostos
sobre as corporações, da redução da absurda remuneração dos executivos (hoje na
faixa de 350 vezes a remuneração média dos trabalhadores), dos sistemas de
controle dos capitais (exemplos de Japão, China, Alemanha), de responsabilizar
os bancos pela informação sobre transferências para paraísos fiscais e
semelhantes. Cada uma dessas medidas é analisada em termos de formas de
implementação, benefícios esperados, argumentos contrários, impactos mais
amplos em termos sociais, políticos e econômicos.
Um
aporte fundamental do livro, é que não busca desenhar uma transformação
revolucionária ideal, e sim como, nas condições econômicas e políticas atuais,
pode-se gradualmente introduzir um conjunto de mudanças que resultariam sim, no
conjunto e progressivamente, numa mudança sistêmica. Nas nossas lutas pela
redução das desigualdades e a preservação do planeta, trata-se de uma ferramnta
técnica de primeira ordem.
Frente
à desigualdade explosiva que enfrentamos e as catástrofes ambientais, não se
trata aqui de “punir” os bilionários, e sim de mostrar os caminhos de um
redirecionamento geral do uso dos nossos recursos que permitam gerar uma
sociedade mais equilibrada. Segundo o comentário de Thomas Piketty, Malleson
escreveu um grande livro (a great book) sobre por que precisamos impor
limites máximos tanto na renda como na riqueza, junto com uma taxação
fortemente progressiva. Esse livro é um guia para o enfrentamento do imenso
desafio que representa a crescente e explosiva desigualdade no mundo.
Fonte:
Outras Palavras
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