Fazendeiro
em conflito com sem-terras tem clube de tiro fantasma na Amazônia
OS
NEGÓCIOS DO PECUARISTA paulistano Sidney Sanches Zamora Filho na divisa
entre o Amazonas e o Acre chamam a atenção pela diversidade. Empresas de pneus,
serviços agrícolas, pecuária e holding financeira. Dois deles estão
intrinsecamente ligados: de um lado, a Fazenda Palotina, onde há quase uma
década se desenrola um conflito com agricultores sem-terra; de outro, o Clube
de Tiro Tita, uma entidade fundada em 2022 que só existe no papel.
Hoje,
200 camponeses vivem no Acampamento Marielle Franco, que ocupa uma área de
litígio na Fazenda Palotina. Eles acusam Zamora Filho e seu pai, Sidnei, de ter
a seu serviço um grupo armado envolvido em ameaças e ataques violentos. A
fazenda foi palco de conflitos sangrentos nos últimos meses.
A
disputa envolve também a própria legalidade da Fazenda Palotina, apontada pelos
acampados como terra pública. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária, o Incra, afirma que a área ocupada pertence na verdade à União.
Uma
correição no cartório de Lábrea, onde o imóvel está registrado, aponta que pelo
menos duas folhas do registro da fazenda sumiram. O presidente do Incra
no estado, Denis Silva, afirma que os fazendeiros não apresentaram qualquer
escritura que comprove com segurança a propriedade.
O
pecuarista negou qualquer irregularidade e chegou a conseguir decisões
judiciais de reintegração de posse da propriedade. Mas elas foram suspensas
após a União manifestar interesse na área e o caso, que era da justiça
estadual, ser federalizado. Hoje, a terra está em processo de regularização
fundiária.
O
clube de tiro do pecuarista, registrado em 2022 no auge do boom de
clubes de tiro após a liberação de Jair Bolsonaro, tem entre suas atividades
previstas o comércio de armas e munições, o ensino e a prática esportiva e
treinamento em desenvolvimento pessoal.
No
entanto, não há atletas federados, participação em competições ou qualquer
outra atividade que possa caracterizar um clube de prática esportiva. O
endereço registrado da empresa é um ramal da rodovia BR-364, em Rio Branco,
onde também não há qualquer sinal de sua existência. Nenhuma placa, estande
aberto ao público ou mesmo uma loja.
“A
gente ouve centenas de tiros de fuzil e de pistolas e não sabe de onde vêm nem
qual é o alvo”, me disse Haroldo Martins, um dos líderes do acampamento
Marielle Franco.
Martins
afirma que o pecuarista e seus seguranças chegam a fazer exercícios de tiro
dentro da fazenda, em uma área próxima à ocupada pelos sem-terra, para
intimidá-los. E que seguranças ostensivamente armados costumam circular fazendo
ameaças aos moradores.
Ao Intercept
Brasil, o advogado Marcelo Feitosa Zamora, primo e representante legal de
Zamora Filho, confirma que o clube de tiro não existe de fato. Segundo ele, o
fazendeiro criou um projeto para abrir seu próprio estande de tiro que não
avançou.
Ele
também confirmou que Sidney Filho realizou “disparos de advertência” em meados
de fevereiro de 2024, “quando se deparou com aproximadamente 20 invasores”. “O
fato foi apurado pela Polícia Federal e não houve nenhuma irregularidade”, diz
o advogado.
O
advogado afirma que seu cliente é filiado a clubes de tiro do Acre, São Paulo e
Rio Grande do Sul e pratica o esporte como hobby. “É colecionador e atirador
esportivo amador, tendo participado de algumas competições, mas sem ter empenho
profissional e treinamento diário”, disse. Feitosa disse que, por “motivos de
segurança”, não iria listar as armas de seu cliente e onde elas ficariam
guardadas.
Já mostramos no Intercept Brasil que o número de clubes de tiro na Amazônia explodiu
durante o governo de Jair Bolsonaro, especialmente em áreas de conflito.
Encontramos vários clubes que só existiam no papel, geralmente ligados a
fazendeiros, que se aproveitaram das facilidades criadas na época para o acesso
a armas e munições.
Zamora
Filho é um defensor entusiasmado do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Em entrevista ao Resenha Podcast, transmitida em 2022, ele defendeu
de forma o porte de armas, dizendo ser contra as pessoas terem uma arma
só. “Eu tenho um monte delas, todas registradas”, afirmou.
Também
disse ser fanático por Bolsonaro, então candidato à reeleição, pela defesa que
o ex-presidente fazia do direito de legítima defesa, algo que considerava muito
“vago” no Brasil.
Como
outros armamentistas, Zamora Filho tinha o hábito de usar suas redes sociais
para ostentar fotos com armas. Em uma delas, ele posa com um fuzil, ao lado de
uma mulher carregando uma pistola.
·
Segundo camponeses, ataques tiveram
participação da polícia
A
família Zamora afirma ser dona da área onde está o acampamento Marielle Franco,
criado em 2016. Hoje, vivem lá cerca de 200 famílias de agricultores e
extrativistas. A área de 18 mil hectares fica dentro da gleba Novo Natal, de 40
mil hectares. Os conflitos e as tentativas de expulsar os camponeses se
agravaram nos últimos anos, especialmente depois de decisões de reintegração de
posse favoráveis aos fazendeiros terem sido revogadas.
No
mesmo podcast em que defendeu o uso de armas, Zamora Filho citou, sem detalhes,
a ocupação na fazenda e acusou os ocupantes de desmatar na reserva legal da
propriedade.
Mas
o embargo na Fazenda Palotina por destruição da floresta data de 2003, mais de
uma década antes do início do conflito. Segundo o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, o embargo continua válido
até hoje porque a área degradada, de mais de mil hectares, jamais foi
recuperada.
A
defesa do pecuarista afirma que a propriedade tem licença operacional e não
recebe autuações ambientais desde 2007.
No
começo deste ano, os acampados contrataram o agrimensor Bruno Alceu Bonfim
Tabuti para desmontar a versão do fazendeiro e mostrar que a área desmatada não
tem relação com as ações dos moradores, e seriam de responsabilidade do
pecuarista.
Foi
então que aconteceu o episódio mais grave de violência.
Tabuti
contou que seguia para fazer seu trabalho ao lado de três moradores do
acampamento, por volta de meio-dia, quando foi abordado por cinco homens
armados com pistolas e escopetas calibre 12, que estavam em um carro de passeio
e um quadriciclo.
Os
criminosos, segundo ele, estavam com roupas camufladas, toucas e coletes à
prova de balas. O trabalhador diz que os agressores os mantiveram ajoelhados
por mais de meia hora, e os torturaram com socos, chutes e golpes de facão no
rosto e no corpo. Eles teriam fotografado as vítimas e anotado seus nomes,
dados pessoais e endereços.
Segundo
Tabuti, os agressores também deram dois tiros na mala do profissional e
destruíram seu equipamento a golpes de facão. Eles teriam dito que só não
mataram as vítimas para que contassem à comunidade o que havia acontecido.
Nenhum
dos criminosos foi identificado até o momento. A suspeita inclui a atuação de
policiais militares do Acre fora de sua jurisdição e com equipamentos públicos
na defesa da propriedade. O Ministério Público Federal pediu a instauração de
uma investigação para averiguar a atuação de policiais como jagunços da
propriedade. Uma investigação sobre o assunto também foi iniciada pelo
Ministério Público do Estado do Acre.
A
Secretaria de Comunicação do Acre e a assessoria de imprensa da Secretaria de
Segurança Pública do Amazonas não responderam aos pedidos de informações
enviados pelo Intercept.
O
advogado de defesa do pecuarista afirma não ter conhecimento sobre a ação que
fez os homens reféns. Ele relata que o único conflito armado que houve em
fevereiro de 2024 foi quando Zamora Filho efetuou disparos para o alto quando
encontrou 20 dos acampados em um dos ramais de acesso à propriedade.
Feitosa
Zamora diz que a segurança da fazenda atualmente é feita por uma empresa
privada terceirizada e que não tem informações sobre as armas usadas nem sobre
treinamentos feitos dentro da propriedade. Ele afirmou que a fazenda não tem
policiais da ativa e ou ex-policiais em sua equipe.
Segundo
ele, o delegado federal Mauro Spósito atuou para a família como advogado em
alguns casos. Spósito foi superintendente da PF no Amazonas durante oito anos e
é investigado como suspeito de chefiar o grupo de policiais que seriam
responsáveis pela segurança da fazenda.
“Quem
conta com ‘jagunço’ certamente não permitiria o avanço da invasão ilegal e
tampouco estaria em um litígio judicial que perdura oito anos. Essas narrativas
são falsas e desprovidas de qualquer prova, configurando calúnia. Os invasores
visam obter apoio político e de autoridades com essas narrativas falsas”, me
disse o advogado do pecuarista.
·
Fazenda é apontada como terra pública pelos
assentados
Os
Zamora já conseguiram decisões favoráveis de reintegração de posse no
Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. As decisões, no entanto, estão
suspensas desde março.
Um
dos motivos é a manifestação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária, o Incra, que afirma que a área ocupada pertence na verdade à União. A
entrada do Governo Federal na disputa territorial tira o caso da Justiça do
Estado do Amazonas e leva para a Justiça Federal, o que anula decisões
anteriores.
O
envio para a Justiça Federal foi decidido apesar dos recursos da defesa do
pecuarista contra a medida. O advogado Feitosa Zamora afirma que o Incra havia
reconhecido a legalidade da fazenda em três oportunidades anteriores e acusa o
órgão de agir de forma “ilegal”.
A
pedido do Superior Tribunal de Justiça, a situação passou a ser acompanhada
pelo corregedor-geral do Tribunal de Justiça do Amazonas. O desembargador Jomar
Fernandes está averiguando o processo e a atuação do cartório de Lábrea no caso
– há denúncias inclusive de sumiço de documentos, e a tabeliã responsável
pelo cartório foi afastada no início de abril pelo prazo de 90 dias.
Feitosa
Zamora reclamou que o desembargador visitou os acampados e não se reuniu com os
donos da fazenda. Também atacou o fato de ele ter feito a visita ao local
acompanhado pelo diretor de Governança Fundiária do Incra, o ex-senador João
Pedro Gonçalves da Costa, que é do PT.
Em
meio às denúncias, o único preso é Paulo Sérgio Costa de Araújo,
um dos líderes do acampamento. Ele é acusado de ter ameaçado Zamora Filho,
conforme mostra um vídeo gravado pelo próprio pecuarista. Nele, o sem-terra
mostra estar armado com uma espingarda de caça quando discute com o fazendeiro.
·
Pecuarista é apoiado por políticos
O
pecuarista tem arregimentado o apoio de políticos do Amazonas e do Acre para
defender a propriedade. Em dezembro de 2023, o deputado estadual do Acre
Emerson Jarude, do Novo, manifestou sua solidariedade a ele.
Zamora
pai e o filho haviam participado, em 2021, de uma audiência com o então
ministro da Justiça, Anderson Torres, e o então Secretário Nacional de Assuntos
Fundiários, Nabhan Garcia. O
encontro foi articulado pelos senadores Marcos Rogério, do PL de Rondônia, e
Alan Rick do União Brasil do Acre, na época deputado federal.
Haroldo
Martins, o líder do acampamento Marielle Franco, diz que não é só a violência
que afeta a vida dos sem-terra. A influência política também dificulta o acesso
das crianças a educação e obrigou algumas famílias a abandonarem a
terra.
Os
assentados afirmam que chegaram a construir uma escola com a promessa de que a
Prefeitura de Boca do Acre enviaria professores – o que, dizem, não foi
cumprido. Sem educadores, a escola permanece fechada.
Os
filhos dos sem-terra também estariam sendo impedidos de estudar na escola
municipal que fica dentro da fazenda para atender os filhos dos funcionários.
Também não são atendidos pelo transporte escolar para frequentar outras escolas.
“Sem
poder pôr os filhos para estudar, muitas famílias deixam o local. Algumas delas
temem até perder benefícios assistenciais porque os filhos aqui ficam fora da
escola”, diz.
Feitosa
Zamora nega que seu cliente tenha pressionado a prefeitura para impedir o
acesso das crianças à escola. Procuradas por email, a Prefeitura de Boca do
Acre e a Secretaria Municipal de Educação não responderam aos pedidos de
entrevista.
Fonte:
The Intercept
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