Em 11
anos, 73% dos homicídios no Brasil foram contra negros
De
2012 a 2022, em média, 111 pessoas negras foram assassinadas por dia no Brasil.
Esse número é 2,7 vezes maior do em comparação com pessoas não negras, segundo
dados do mais recente Atlas da Violência, divulgado nessa terça-feira (18/06).
Foram
609.697 homicídios registrados no período, de acordo com o documento elaborado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP). Desse total, 445.442 eram pretos ou pardos, o que
corresponde a 73% dos homicídios contabilizados no país.
O
estado de Alagoas foi o que apresentou, em 2022, o maior risco relativo de uma
pessoa negra ser vítima de violência letal – a chance é 23,7 vezes maior do que
em relação a pessoas com outros tons de pele.
• Violência contra crianças e jovens
Mais
da metade das vítimas de homicídios no Brasil no período analisado (2012-2022)
tinha entre 15 e 29 anos. O relatório mostra que 321.466 jovens dessa faixa
etária morreram de forma violenta, uma média de 80 por dia.
Isso
significa que 15.220.914 anos potenciais de vida de crianças e jovens foram
perdidos no Brasil para a violência.
As
taxas de homicídios de jovens caíram entre 2017 e 2021, no entanto, o
decréscimo foi mais intenso entre jovens brancos do que entre jovens negros, o
que ampliou a desigualdade em termos de vulnerabilidade à violência letal,
destaca o documento.
Sobre
violência contra crianças e adolescentes, o Atlas destaca que meninas de 10 a
14 anos são as maiores vítimas de violência sexual no Brasil. Elas sofrem,
proporcionalmente, mais ataques sexuais do que mulheres adultas.
Em
2022, 49,6% das meninas nessa faixa etária atendidas pelo Sistema Único de
Saúde (SUS) devido a casos de violência foram violentadas sexualmente. Entra
nessa categoria de violência situações em que uma pessoa se vale de uma posição
de poder e usa da força ou influência psicológica para forçar uma interação
sexual, incluindo casos de estupro.
"Se
tivéssemos que descrever o que é ser uma mulher no Brasil, poderíamos dizer que
na primeira infância é a negligência a forma mais frequente de violência, cujos
principais autores são pais e mães, na mesma proporção. A partir dos 10 até os
14 anos, essas meninas são vitimadas principalmente por formas de violência
sexual, com homens que ocupam as funções de pai e padrasto como principais
algozes. Dos 15 até os 69 anos, é a violência física provocada por pais,
padrastos, namorados ou maridos a forma de violência prevalente entre as
mulheres", explicam os autores do documento.
• Mortes ocultas
De
acordo com o Atlas, os números de homicídios são subnotificados no país. No
período analisado, 131.562 pessoas morreram de morte violenta sem que o Estado
conseguisse identificar a causa básica do óbito, se decorrente de acidentes,
suicídios ou homicídios.
O
relatório calcula que nesses 11 anos tenha havido 51.726 assassinatos não
contabilizados, o que faria com o que o número de homicídios subisse para
661.423.
"Para
que se possa entender a magnitude do problema, o número de homicídios ocultos
entre 2012 e 2022 foi maior do que todos os homicídios ocorridos no último ano
analisado", diz o documento.
• Polícia matou um negro a cada 4 horas
em 2022, diz estudo
Uma
pesquisa divulgada pela Rede de Observatórios da Segurança, com base em dados
das secretarias de Segurança Pública, revelou que em 2022 uma pessoa negra foi
morta a cada quatro horas em intervenções policiais em oito estados
brasileiros.
O
estudo intitulado "Pele Alvo: a bala não erra o negro" analisou 3.171
registros de morte. Destes, 2.770 (87,35%) eram negros. A pesquisa reuniu os
dados de 2022 dos estados onde a Rede de Observatórios possui representações –
Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco e Piauí –
que foram obtidos através da Lei de Acesso à Informação.
A
Bahia lidera o número de mortes de negros, com 1.121 óbitos. A cada dez mortos
pelas mãos da polícia no estado, onde 80,8% da população é negra, em 2022, nove
eram afrodescendentes. Entre os mortos, 74,21% eram jovens com idades entre 18
e 29 anos.
De
modo geral, as mortes resultantes da violência policial no estado aumentaram
300% entre 2015 e 2022. O governo baiano vem sendo fortemente criticado pela
escalada de violência policial que deixou dezenas de mortos nos últimos meses.
O
Rio de Janeiro, que liderava o ranking anterior, registrou 1.042 mortes de
negros por ação da polícia. Com 54,39% de habitantes que se declaram negros, a
proporção dessas vítimas no estado é de 87%.
• "Racismo secular, profundo e
determinado"
No
caso do Rio de Janeiro, o estudo aponta a existência de uma "política de
segurança determinada a lidar com grupos armados a partir de lógicas bélicas de
confrontos e tiroteios", voltada para as favelas e bairros mais pobres.
"No coração das políticas de confronto, está assentado um racismo secular,
profundo e determinado."
Em
São Paulo, onde 40,4% da população é negra, 63,90% dos mortos pela polícia em
2022 eram afrodescendentes. Os dados, porém, representam uma redução desses
óbitos de 48,32% – de 876 em 2021 para 419 em 2022. Na cidade de São Paulo
foram registradas 157 mortes, ou seja 37,47%
do total do estado.
Os
pesquisadores, porém, ressaltaram que em 4.219 ocorrências nos oito estados
pesquisados – uma em cada quatro – não havia registro da cor, o que indica uma
subnotificação dos dados sobre as mortes de afrodescendentes. A falta dessas
informações foi registrada principalmente nos estados do Maranhão, Ceará e
Pará.
A
socióloga Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios, afirmou que a
letalidade de pessoas negras pelas mãos de policiais deve ser vista como uma
questão política e social. "As mortes em ação da polícia também trazem
prejuízos às próprias corporações que as produzem. Precisamos alocar recursos
que garantam uma política pública que efetivamente traga segurança para toda a
população", observou ao G1.
• Pesquisadores analisam estratégias da
sociedade civil para combater o racismo e a violência policial contra negros no
Brasil
A
intersecção entre violência policial e o racismo contra negros é uma realidade
histórica no Brasil, e duas pesquisas distintas evidenciaram esse contexto. Em
uma delas, o Núcleo de Estudos de Violência (NEV), da Universidade de São Paulo
(USP), mostra que jovens negros têm duas vezes mais chances de serem abordados
pela polícia do que os brancos. A pesquisa ouviu 800 crianças e 120
adolescentes de escolas públicas e privadas de São Paulo, entre 2016 e 2019. O
percentual de crianças negras abordadas foi de 21,5%, enquanto brancos foi de
8,33% e pardos 9,74%.
Já
a segunda pesquisa, o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que o país teve 47.508
mortes violentas intencionais no ano passado. Desse total, 76,5% dos mortos
eram negros. Ainda segundo o relatório, 83,1% das vítimas de intervenções
policiais no país são negros. Segundo o Fórum, esses números escancaram o
racismo estrutural da sociedade, ressaltando ainda que a "seletividade
penal tem cor”.
O
cenário apontado pelos estudos mostra que a situação é complexa. Em resposta, a
articulação dos movimentos da sociedade civil tem enfrentado o racismo com a
organização de grupos diversos. .
• Violência policial no foco
A
correlação violência racial e as denúncias advindas desse processo nortearam a
pesquisa de doutorado do sociólogo Paulo Ramos, pesquisador do Núcleo de
Justiça Racial e Direito/FGV Direito-SP e do Núcleo Afro Cebrap. Defendida em 2021 na Universidade de São
Paulo, ele estudou a maneira como o movimento negro denunciou a violência
policial entre 1978 e 2018. Ao analisar documentos históricos, jornais e
panfletos, ele definiu uma periodização dividida em três partes: discriminação
racial (1978-1988), a violência racial (1989-2006) e o genocídio negro
(2007-2018).
"Cada
um desses períodos forma algo que chamo de ‘ponte semântica'. Elas sintetizam e
traduzem um conjunto de experiências da vida do povo negro na disputa entre a
vida comum e política. Foi em torno dessas palavras que o movimento negro
organizou suas pautas”, afirmou Ramos à DW Brasil.
"As
mudanças também indicam uma radicalização do protesto negro. Nos anos 1980
interessava dizer que no Brasil existia o racismo e fazer um combate ao mito da
democracia racial ou a ideia de que o país na presencia violências e
discriminações raciais. Nos anos 1990, já sob a democracia formal, havia uma
pauta de mostrar como a violência policial caracteriza todas as outras formas
de violência vivenciadas pela população negra, com casos emblemáticos, como a
Chacina da Candelária e o Massacre do Carandiru", disse.
O
sociólogo mostra que, a partir dos anos 2000, com mais estatísticas, o quadro
geral de identificação da violência policial ganhou nova perspectiva. "Nós
conseguimos enxergar níveis absurdos de homicídios. Saímos de 20 mil por ano na
década de 1980 para 50 mil nos anos 2000. Por isso a palavra ‘genocídio' ganha
força dentro do movimento negro em meados de 2007, ao mostrar uma confrontação
ao Estado brasileiro e sua forma de atuação.”
Paulo
argumenta que a articulação antirracista no Brasil está majoritariamente
vinculada a casos de violência policial. Ele não considera a pauta um vetor
político para as organizações, por haver outras formas de violência, mas
ressalta que a agenda de ataques é prioritária dentro das entidades. Diante
desse cenário, o sociólogo pondera que é preciso haver uma mudança perspectiva
"O
movimento negro sabe responder aos casos de violência de policial. O grande
problema é que não existe dentro do próprio movimento, assim como não há na
esquerda e no progressismo em geral, uma pauta de segurança pública que seja
afirmativa e que não se limite a dizer que algo não pode acontecer. Se você
perguntar às principais organizações o que é "uso progressivo da força”
elas não saberão explicar. É grave.”
• A sociedade civil em disputa
A
década de 1970 é tida como emblemática pela luta racial no Brasil por abarcar a
criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, como forma de denúncia às
violências contra a população em meio à ditadura militar. "Nossa principal
pauta é a luta contra a violência policial e o combate à truculência do
Estado”, afirmou à DW Brasil Ieda Leal, coordenadora nacional do MNU e
Secretaria de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da igualdade Racial no
Ministério da Igualdade Racial.
O
MNU foi criado após a morte do feirante Robson Silveira da Luz, de 21 anos, nos
porões da 44ª Delegacia de Guaianases, em 1978. O surgimento e o fortalecimento
da entidade nos anos seguintes serviram de ponte para que outros grupos se
mobilizassem em torno do combate ao racismo. Paulo Ramos cita como exemplo
grupos importantes na conjuntura atual, como a Convergência Negra, a Coalizão
Negra por Direitos e a Frente Nacional Antirracista. "Nem sempre as
organizações estão alinhadas em todas as suas pautas e estratégias, mas elas
convergem no que diz respeito ao combate às violências.”
Ele
diz que, se faltam propostas na área da segurança pública, elas aparecem no
campo da educação e saúde, com sucesso legislativo. A tese é corroborada por
Ágatha de Miranda, pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito e do
Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV-SP. "Se hoje nós temos
formulações de combate ao racismo é porque há uma prática antirracista da
sociedade civil”, ressaltou.
Ela
cita o Estatuto da Igualdade Racial, a lei 10.639, do início dos anos 2000, que
introduz o ensino de história da África nas escolas para uma "outra
leitura de construção da sociedade brasileira”, e a política de cotas, de 2012,
que facilita o acesso de jovens negros e pobres às instituições de ensino
superior.
"É
a produção do saber científico que pode pautar a definição de políticas
públicas para a população negra e que também impacta a própria discussão do
racismo na sociedade. Hoje, os espaços públicos, dentro do espaço
constitucional, o racismo está sendo debatido e isso é uma conquista do
movimento negro. O racismo precisa ser evidenciado como racismo e a maneira
como ele se apresenta nas relações sociais”, ponderou Miranda.
Ramos
ressaltou ainda uma interlocução importante dentro do movimento negro com
grupos de mães que perderam seus filhos como alvo de violência policial. Um
exemplo é o Mães de Maio, criado em 2006, como forma de protesto a morte de
jovens durante os confrontos entre forças de segurança em São Paulo e a facção
Primeiro Comando da Capital (PCC).
"É triste que esse movimento cresça, porque significa mais
violência. Mas elas fazem um enfrentamento importante perante o Estado”.
Elas
e outras entidades encabeçaram as mobilizações para que a Polícia Militar de
São Paulo utilize câmeras corporais durante o serviço, prática instituída em
2020. Em maio deste ano, uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que a
letalidade policial em serviço caiu 62,7% desde a instituição da proposta.
Diante
disso, entidades do movimento negro querem instituir política semelhante em
seus estados, como na Bahia, onde uma pessoa negra é morta a cada 24h, segundo
levantamento da Rede de Observatórios da Segurança divulgada em novembro de
2022. "Exigimos a adoção de câmeras nas lapelas, golas, fardamentos, de
todas as pessoas responsáveis pela segurança da população baiana”, diz um
trecho do manifesto assinado por organizações como MNU e Rede de Mulheres
Negras da Bahia lançado em março. Em entrevista à TV Globo na segunda-feira
(24/07), o secretário de Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner, disse que
as câmeras serão instaladas até o fim do ano.
• Mulheres como protagonistas
A
mobilização do movimento negro teve e tem participação fundamental das
mulheres, que participaram da criação de entidades importantes, como como
Geledés – Instituto da Mulher Negra, o Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades (CEERT) e o Criola. Sueli Carneiro, Lélia González,
Lúcia Xavier, Cida Bento, Nilma Bentes, entre outras, são algumas das
protagonistas. "Não existe movimento negro no Brasil sem as mulheres
organizadas”, analisa Priscilla Rocha, advogada com atuação em Direitos Humanos,
integrante da Coalizão Negra por Direitos e da Rede Nacional de Feministas
Antiproibicionistas.
Essa
centralidade feminina se faz cada vez mais necessária, diante da violência que
as atinge. Em março, a Anistia Internacional mostrou que Mulheres negras
representam 62% das vítimas de feminicídio no país. "É um retrato cruel do
racismo, ainda mais se olharmos uma diminuição na violência contra mulheres
brancas.”
Ela
argumenta que o fortalecimento de articulação das mulheres negras é decisivo
para impactar o antirracismo de maneira ampla. "É uma atuação na base,
porque elas são responsáveis pelo cuidado da sociedade, que dão suporte para
outras mulheres, geralmente brancas, atuarem como vetores da economia e também
de militância nos seus espaços. É a interseccionalidade entre raça e gênero que
se faz necessária no país em prol das mulheres negras”
Ponto
importante na disputa por melhores condições sociais foi a aprovação da PEC das
Empregadas Domésticas, em 2012, que dá direitos trabalhistas às trabalhadoras
historicamente marginalizadas pelo Estado. A aprovação da medida é resultado de
anos de luta do movimento negro. "Ainda que ele seja negligenciado em
muitos casos, é fundamental. As empregadas domésticas são parte do movimento
negro, porque são uma herança escravagista. Esse direito precisa ser exercido
de forma integral.”
Para
além dos avanços institucionais, Rocha afirmou que há um empoderamento da
mulher negra nos últimos anos, que abarca estética e novas maneiras de viver.
"É uma liberdade que resulta dessa luta das mulheres e que reflete nas
mais diversas lutas. Mesmo sendo sobre estética, é sobre como essa mulher se vê
e estabelece relações familiares, profissionais e sociais. É um fortalecimento
do que é ser mulher negra que impacta minha mãe, minha avó e que altera a
correlação de forças no país.”
• Novas formas de luta
Como
destacou Paulo Ramos, os diversos movimentos negros tentam encontrar justiça
social com diferentes estratégias. Uma delas é a financeira, como defende Frei
David, fundador da Educafro, entidade fundada em meados da década de 1990 com a
intenção de promover a entrada de jovens negros e pobres em instituições de
públicas e privadas de ensino superior.
Nos
últimos anos, a Educafro tem participado, ao lado de outras organizações, de
ações civis intituladas Termos de Ajuste de Conduta (TAC). São acordos entre o
Ministério Público e empresas que violaram algum direito coletivo. No caso da
Educafro, ações contra práticas racistas. "Estamos mudando a forma de
lutar contra a violência”, disse Frei David à DW Brasil.
A
entidade usou o expediente em diversas oportunidades, como na morte de João
Alberto Freitas, em novembro de 2020, asfixiado em uma unidade do Carrefour no
Rio Grande do Sul – o acordo foi de que uma indenização de R$ 115 milhões fosse
revertida para ações de combate ao racismo.
Outro
acordo é referente à morte de Genivaldo de Jesus, homem negro de 38 anos que
também morreu asfixiado em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, em maio
do ano passado, no sul de Sergipe.
Frei
David afirma que os valores da indenização ainda não foram definidos, mas que o
governo federal já reconheceu o pedido do TAC. O acordo deve ser assinado pelo
ministro da Justiça, Flavio Dino, no início de agosto. Entre as 30 medidas
solicitadas no termo de ajuste, a Educafro pede a instalação de câmeras na
roupa de todos os policiais rodoviários federais.
Os
acordos propostos pela Educafro não são unanimidade dentro do movimento negro.
A justificativa é de que isso pode enfraquecer a luta em torno de mais
direitos. Frei David discorda. "Vivemos no capitalismo e o movimento
social descobriu e decidiu mexer com o sangue do capitalismo, que é o dinheiro.
É a única linguagem que eles entendem - perdas e ganhos financeiros. Estamos
mexendo com o ganho deles e sinalizando que a repetição do racismo estrutural
em suas instituições vai resultar em perda financeira.”
Fonte:
Deutsche Welle
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