terça-feira, 4 de junho de 2024

Desespero, raiva e sensação de fracasso atingem cientistas climáticos diante da falta de ações efetivas

Ao ver as primeiras imagens das enchentes no Rio Grande do Sul, no começo do mês, a bióloga Erika Berenguer, pesquisadora da Universidade de Oxford e referência nos estudos sobre impactos do fogo nas florestas tropicais, voltou a ter problemas digestivos.

Em regressão até aquele momento, o quadro de gastroparesia -mais conhecido como síndrome de atraso no esvaziamento gástrico- piorou. Ela passou a ter dores, inchaço no corpo e dificuldades para se alimentar.

Sem ter nenhum dos principais fatores de risco para a doença, o distúrbio foi atribuído pela equipe médica à exposição elevada ao estresse. Erika conta que, desde 2015, ano em que o El Niño contribuiu para incêndios devastadores na amazônia, vem enfrentando episódios de ansiedade e outras manifestações físicas relacionadas à situação da floresta e às mudanças climáticas. "Ainda é bem difícil de falar sobre isso", afirma.

A destruição da floresta trouxe ainda outras consequências físicas para a saúde da pesquisadora. Em 2023, em meio a mais uma temporada de incêndios e às partículas de poluição no ar, ela contraiu uma pneumonia.

"A primeira vez que eu senti o luto ecológico foi em 2015. A região em que eu trabalho, que é no Baixo Tapajós [no Pará], teve 1 milhão de hectares de florestas que queimaram. E eu estava lá, vendo a destruição", relata Berenguer, destacando tanto as perdas na biodiversidade quanto as consequências humanas dos incêndios.

"Eu trabalhava naquelas áreas havia cinco anos. Tinha uma árvore embaixo da qual a nossa equipe sempre comia, porque tinha uma sombra perfeita ao meio-dia. Em outra, tínhamos sempre de olhar para cima, porque, era nela que os macacos gostavam de dormir e aí tinha o risco de levarmos cocô na cabeça. De repente, tudo isso foi destruído", destaca.

"Eu sei que é difícil traduzir isso para as pessoas urbanas, mas é como se, de repente, todas as referências que existem numa cidade, como o nosso café e a nossa padaria favoritos, simplesmente deixassem de existir."

Ela conta que, nos primeiros meses, teve "uma sensação aguda". "Ao longo dos anos, virou uma dor crônica de ver vários lugares que eu conhecia profundamente não existindo mais", detalha.

"Alagamentos e enchentes em cidades são diferentes de uma floresta queimada, mas são pessoas sofrendo e perdendo tudo, inclusive, a sua noção de identidade territorial", explica.

Em um cenário de intensificação de eventos climáticos extremos, recordes de emissões de gases-estufa e calor sem precedentes, com 2023 sendo oficialmente declarado o ano mais quente da história da humanidade, situações como a de Erika Berenguer têm sido cada vez mais relatadas por cientistas envolvidos com as questões ambientais e de mudanças climáticas.

Um levantamento feito pelo jornal britânico The Guardian revelou recentemente que, em todo o mundo, muitos dos principais pesquisadores da área climática se sentem desesperados, enfurecidos e, em muitos casos, emocionalmente afetados pelo claro fracasso nas ações contra o aquecimento global.

A pesquisa contou com a participação de 380 cientistas, todos autores ou revisores de relatórios do IPCC (painel do clima da ONU), que há mais de três décadas alerta para as piores consequências do aumento global de temperaturas.

O grupo, altamente informado sobre a questão, mostra-se pessimista com o futuro: apenas 6% consideram que o aquecimento do planeta será limitado a 1,5°C, o valor preferencial do Acordo de Paris, tido como meta para evitar eventos climáticos mais intensos. Quase 80% dos entrevistados preveem um aumento de pelo menos 2,5°C na temperatura média do planeta em relação ao período pré-industrial.

"Os cientistas são humanos: também somos pessoas que vivem nesta Terra, que também sofrem os impactos das alterações climáticas, que também têm filhos e que também têm preocupações com o futuro", disse Lisa Schipper, da Universidade de Bonn (Alemanha), em entrevista ao Guardian.

"Fizemos a nossa ciência, elaboramos este relatório muito bom e -uau- realmente não fez diferença na política. É muito difícil ver sempre isso."

Em entrevista à Folha de S.Paulo, o físico Paulo Artaxo, professor da USP (Universidade de São Paulo) e membro do IPCC, afirma que, nos últimos anos, há um desânimo notável entre parte dos cientistas da área climática.

"Há uma sensação de desespero e de fadiga em parte da comunidade. Obviamente a gente vê isso", afirma.

Segundo Artaxo, os pesquisadores têm se dividido entre duas vertentes. "Há quem pense que não tem mais o que fazer, que nós vamos extinguir 3 bilhões de pessoas no planeta e vamos perder boa parte da biodiversidade. E pronto, isso é um cenário do qual não tem volta", exemplifica.

"A outra metade, da qual eu faço parte, coloca que nós temos de desenvolver a melhor estratégia possível para orientar políticas públicas de redução de gases-estufa, que é a única coisa que pode ajudar a salvar o planeta."

Artaxo afirma que a situação o tem motivado a falar cada vez mais sobre as alterações climáticas, tentando atingir o público mais abrangente possível. "Eu dou três ou quatro palestras por semana, desde universidades e escolas até para o agronegócio", conta.

"O planeta está se encaminhando para um aquecimento médio de 3°C. Muito poucas pessoas na sociedade têm noção do que isso significa", avalia. "Nesse cenário, vamos ter eventos como esses do Rio Grande do Sul praticamente todos os meses."

Especialista em conservação das florestas e pesquisador do Imazon, Paulo Barreto diz que se sente preocupado ao ver que "parte expressiva da sociedade só aprende com a dor crescente das crises climáticas".

"A preocupação é agravada pelo fato de que outros tentam, genuinamente ou por manobra, continuar negando a crise ou a atribuindo a castigos divinos", explica. Segundo ele, é "especialmente frustrante ver pessoas com alto poder de decisão no setor empresarial e governamental continuarem fazendo apostas erradas, como investir em empresas que se beneficiam da destruição."

Uma das formas encontradas para lidar com esse sentimento, relata, tem sido o comprometimento em divulgar informações sobre as questões ambientais, como em palestras sobre desenvolvimento sustentável na amazônia.

"Também recorro à história para me inspirar em como a sociedade e as pessoas melhoraram o mundo. Crises podem resultar em cooperação para resolver problemas complicados."

Mesmo com a preocupação com o cenário da floresta e das mudanças ambientais, a bióloga Erika Berenguer diz que não perdeu a motivação para a pesquisa e que continua determinada a fazer a diferença em seu trabalho.

"Se eu achasse que não tem mais como conservar a amazônia, eu não continuava no meu trabalho. E não é uma questão só de achar. Eu tenho evidências de que tudo o que a gente faz para conservar a amazônia agora tem efeitos positivos. Se a gente se desesperar e não fizer nada, vai ser muito pior."

 

•                                    Falta de dados oficiais dificulta o monitoramento de ações de reconstrução de desastres

Independente do partido político, uma espécie de “mal de Alzheimer” paira no Brasil quando o assunto é desastres. Quando o desastre acontece costuma-se recorrer a um suposto ineditismo da situação para justificar o improviso das ações no tema. Estamos improvisando há, pelo menos, 20 anos e desconsideramos que a recuperação de desastre é um dever governamental expressamente previsto em lei, cujo processo deve observância a uma série de critérios, sob pena de responsabilidade.

Entre janeiro e março de 2004, 1.224 municípios brasileiros foram atingidos por inundações e deslizamentos, com mais de 350 mil pessoas desabrigadas e 114 mil moradias danificadas ou destruídas. À época, como consequência da Resolução nº 8 do então Conselho Nacional de Defesa Civil, de 12 de fevereiro de 2004, constituiu-se o Comitê Gestor das Ações Federais de Emergência e os Comitês Gestores das Ações Federais de Emergência em 16 estados, para identificar os danos e coordenar ações de pronto atendimento às populações atingidas. Os relatórios do comitê trouxeram dados sobre pessoas desabrigadas e desalojadas e quantitativo de moradias, escolas, hospitais e pontes destruídas ou danificadas, mas não possuem informações sobre as ações de reconstrução e recuperação.

Anos depois, desastres como os do Vale do Itajaí (SC), em 2008, em Alagoas e Pernambuco, em 2010, e na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011, também registraram milhares de pessoas desabrigadas e casas destruídas, conforme publicações do Banco Mundial. Todavia, não existem informações acessíveis no site da Defesa Civil Nacional sobre as ações de reconstrução e recuperação nesses desastres, no sentido de saber se as famílias desabrigadas saíram dessa condição para uma moradia em lugar seguro, ou se estão “abandonadas nos desastres”. O Observatório dos Desastres, da Confederação Nacional de Municípios (CNM), também não possui tal tipo de informação sobre recuperação em desastres passados, embora já tenha estimado em  R$ 7,5 bilhões os prejuízos econômicos do desastre de maio de 2024 no RS.

No desastre de 2008 no Vale do Itajaí (SC), a sociedade civil doou R$ 35 milhões e, após questionamentos dos desabrigados acerca do destino das doações feitas em seu nome, o Ministério Público requisitou ao Governo de Santa Catarina que criasse um Portal da Transparência para facilitar o monitoramento das ações e dos gastos. No desastre de 2010 em São Luiz do Paraitinga (SP), criou-se o Centro de Reconstrução Sustentável (CERESTA) para facilitar a integração entre órgãos dos três níveis de governo e os diferentes conselhos municipais, além de serem organizadas audiências públicas para ouvir os atingidos sobre os projetos e de reconstrução (dimensão material) e recuperação (dimensão psicossocial). No caso do desastre do RS, é importante destacar que Porto Alegre tem uma experiência de mais de 25 anos com o Orçamento Participativo, que poderia ser adaptado a outros municípios gaúchos a fim de incluir as ações de reconstrução.

Dentre todos esses desastres são poucos os exemplos de ações de transparência ativa nos processos de reconstrução. A notícia mais recente neste sentido vem do Programa Recupera RS, instituído pelo Tribunal de Contas da União, que tem como um dos objetivos facilitar a transparência dos processos.

Nunca é demais lembrar que o direito à recuperação de desastre engloba ações de caráter definitivo tomadas após o evento, para restaurar os ecossistemas restaurando o cenário destruído, restabelecer as condições de vida da comunidade afetada, impulsionar o desenvolvimento socioeconômico local, além de recuperar as áreas degradadas para evitar a reprodução das condições de vulnerabilidade ligadas ao desastre.

 

Fonte: FolhaPress/Superinteressante

 

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