Desespero,
raiva e sensação de fracasso atingem cientistas climáticos diante da falta de
ações efetivas
Ao
ver as primeiras imagens das enchentes no Rio Grande do Sul, no começo do mês,
a bióloga Erika Berenguer, pesquisadora da Universidade de Oxford e referência
nos estudos sobre impactos do fogo nas florestas tropicais, voltou a ter
problemas digestivos.
Em
regressão até aquele momento, o quadro de gastroparesia -mais conhecido como
síndrome de atraso no esvaziamento gástrico- piorou. Ela passou a ter dores,
inchaço no corpo e dificuldades para se alimentar.
Sem
ter nenhum dos principais fatores de risco para a doença, o distúrbio foi
atribuído pela equipe médica à exposição elevada ao estresse. Erika conta que,
desde 2015, ano em que o El Niño contribuiu para incêndios devastadores na
amazônia, vem enfrentando episódios de ansiedade e outras manifestações físicas
relacionadas à situação da floresta e às mudanças climáticas. "Ainda é bem
difícil de falar sobre isso", afirma.
A
destruição da floresta trouxe ainda outras consequências físicas para a saúde
da pesquisadora. Em 2023, em meio a mais uma temporada de incêndios e às
partículas de poluição no ar, ela contraiu uma pneumonia.
"A
primeira vez que eu senti o luto ecológico foi em 2015. A região em que eu
trabalho, que é no Baixo Tapajós [no Pará], teve 1 milhão de hectares de
florestas que queimaram. E eu estava lá, vendo a destruição", relata
Berenguer, destacando tanto as perdas na biodiversidade quanto as consequências
humanas dos incêndios.
"Eu
trabalhava naquelas áreas havia cinco anos. Tinha uma árvore embaixo da qual a
nossa equipe sempre comia, porque tinha uma sombra perfeita ao meio-dia. Em
outra, tínhamos sempre de olhar para cima, porque, era nela que os macacos
gostavam de dormir e aí tinha o risco de levarmos cocô na cabeça. De repente,
tudo isso foi destruído", destaca.
"Eu
sei que é difícil traduzir isso para as pessoas urbanas, mas é como se, de
repente, todas as referências que existem numa cidade, como o nosso café e a
nossa padaria favoritos, simplesmente deixassem de existir."
Ela
conta que, nos primeiros meses, teve "uma sensação aguda". "Ao
longo dos anos, virou uma dor crônica de ver vários lugares que eu conhecia
profundamente não existindo mais", detalha.
"Alagamentos
e enchentes em cidades são diferentes de uma floresta queimada, mas são pessoas
sofrendo e perdendo tudo, inclusive, a sua noção de identidade
territorial", explica.
Em
um cenário de intensificação de eventos climáticos extremos, recordes de
emissões de gases-estufa e calor sem precedentes, com 2023 sendo oficialmente
declarado o ano mais quente da história da humanidade, situações como a de
Erika Berenguer têm sido cada vez mais relatadas por cientistas envolvidos com
as questões ambientais e de mudanças climáticas.
Um
levantamento feito pelo jornal britânico The Guardian revelou recentemente que,
em todo o mundo, muitos dos principais pesquisadores da área climática se
sentem desesperados, enfurecidos e, em muitos casos, emocionalmente afetados
pelo claro fracasso nas ações contra o aquecimento global.
A
pesquisa contou com a participação de 380 cientistas, todos autores ou
revisores de relatórios do IPCC (painel do clima da ONU), que há mais de três
décadas alerta para as piores consequências do aumento global de temperaturas.
O
grupo, altamente informado sobre a questão, mostra-se pessimista com o futuro:
apenas 6% consideram que o aquecimento do planeta será limitado a 1,5°C, o
valor preferencial do Acordo de Paris, tido como meta para evitar eventos
climáticos mais intensos. Quase 80% dos entrevistados preveem um aumento de
pelo menos 2,5°C na temperatura média do planeta em relação ao período
pré-industrial.
"Os
cientistas são humanos: também somos pessoas que vivem nesta Terra, que também
sofrem os impactos das alterações climáticas, que também têm filhos e que
também têm preocupações com o futuro", disse Lisa Schipper, da
Universidade de Bonn (Alemanha), em entrevista ao Guardian.
"Fizemos
a nossa ciência, elaboramos este relatório muito bom e -uau- realmente não fez
diferença na política. É muito difícil ver sempre isso."
Em
entrevista à Folha de S.Paulo, o físico Paulo Artaxo, professor da USP
(Universidade de São Paulo) e membro do IPCC, afirma que, nos últimos anos, há
um desânimo notável entre parte dos cientistas da área climática.
"Há
uma sensação de desespero e de fadiga em parte da comunidade. Obviamente a
gente vê isso", afirma.
Segundo
Artaxo, os pesquisadores têm se dividido entre duas vertentes. "Há quem
pense que não tem mais o que fazer, que nós vamos extinguir 3 bilhões de
pessoas no planeta e vamos perder boa parte da biodiversidade. E pronto, isso é
um cenário do qual não tem volta", exemplifica.
"A
outra metade, da qual eu faço parte, coloca que nós temos de desenvolver a
melhor estratégia possível para orientar políticas públicas de redução de
gases-estufa, que é a única coisa que pode ajudar a salvar o planeta."
Artaxo
afirma que a situação o tem motivado a falar cada vez mais sobre as alterações
climáticas, tentando atingir o público mais abrangente possível. "Eu dou
três ou quatro palestras por semana, desde universidades e escolas até para o
agronegócio", conta.
"O
planeta está se encaminhando para um aquecimento médio de 3°C. Muito poucas
pessoas na sociedade têm noção do que isso significa", avalia. "Nesse
cenário, vamos ter eventos como esses do Rio Grande do Sul praticamente todos
os meses."
Especialista
em conservação das florestas e pesquisador do Imazon, Paulo Barreto diz que se
sente preocupado ao ver que "parte expressiva da sociedade só aprende com
a dor crescente das crises climáticas".
"A
preocupação é agravada pelo fato de que outros tentam, genuinamente ou por
manobra, continuar negando a crise ou a atribuindo a castigos divinos",
explica. Segundo ele, é "especialmente frustrante ver pessoas com alto
poder de decisão no setor empresarial e governamental continuarem fazendo
apostas erradas, como investir em empresas que se beneficiam da
destruição."
Uma
das formas encontradas para lidar com esse sentimento, relata, tem sido o
comprometimento em divulgar informações sobre as questões ambientais, como em
palestras sobre desenvolvimento sustentável na amazônia.
"Também
recorro à história para me inspirar em como a sociedade e as pessoas melhoraram
o mundo. Crises podem resultar em cooperação para resolver problemas
complicados."
Mesmo
com a preocupação com o cenário da floresta e das mudanças ambientais, a
bióloga Erika Berenguer diz que não perdeu a motivação para a pesquisa e que
continua determinada a fazer a diferença em seu trabalho.
"Se
eu achasse que não tem mais como conservar a amazônia, eu não continuava no meu
trabalho. E não é uma questão só de achar. Eu tenho evidências de que tudo o
que a gente faz para conservar a amazônia agora tem efeitos positivos. Se a
gente se desesperar e não fizer nada, vai ser muito pior."
• Falta de
dados oficiais dificulta o monitoramento de ações de reconstrução de desastres
Independente
do partido político, uma espécie de “mal de Alzheimer” paira no Brasil quando o
assunto é desastres. Quando o desastre acontece costuma-se recorrer a um
suposto ineditismo da situação para justificar o improviso das ações no tema.
Estamos improvisando há, pelo menos, 20 anos e desconsideramos que a
recuperação de desastre é um dever governamental expressamente previsto em lei,
cujo processo deve observância a uma série de critérios, sob pena de
responsabilidade.
Entre
janeiro e março de 2004, 1.224 municípios brasileiros foram atingidos por
inundações e deslizamentos, com mais de 350 mil pessoas desabrigadas e 114 mil
moradias danificadas ou destruídas. À época, como consequência da Resolução nº
8 do então Conselho Nacional de Defesa Civil, de 12 de fevereiro de 2004,
constituiu-se o Comitê Gestor das Ações Federais de Emergência e os Comitês
Gestores das Ações Federais de Emergência em 16 estados, para identificar os
danos e coordenar ações de pronto atendimento às populações atingidas. Os
relatórios do comitê trouxeram dados sobre pessoas desabrigadas e desalojadas e
quantitativo de moradias, escolas, hospitais e pontes destruídas ou
danificadas, mas não possuem informações sobre as ações de reconstrução e recuperação.
Anos
depois, desastres como os do Vale do Itajaí (SC), em 2008, em Alagoas e
Pernambuco, em 2010, e na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011, também
registraram milhares de pessoas desabrigadas e casas destruídas, conforme
publicações do Banco Mundial. Todavia, não existem informações acessíveis no
site da Defesa Civil Nacional sobre as ações de reconstrução e recuperação
nesses desastres, no sentido de saber se as famílias desabrigadas saíram dessa
condição para uma moradia em lugar seguro, ou se estão “abandonadas nos
desastres”. O Observatório dos Desastres, da Confederação Nacional de
Municípios (CNM), também não possui tal tipo de informação sobre recuperação em
desastres passados, embora já tenha estimado em
R$ 7,5 bilhões os prejuízos econômicos do desastre de maio de 2024 no
RS.
No
desastre de 2008 no Vale do Itajaí (SC), a sociedade civil doou R$ 35 milhões
e, após questionamentos dos desabrigados acerca do destino das doações feitas
em seu nome, o Ministério Público requisitou ao Governo de Santa Catarina que
criasse um Portal da Transparência para facilitar o monitoramento das ações e
dos gastos. No desastre de 2010 em São Luiz do Paraitinga (SP), criou-se o
Centro de Reconstrução Sustentável (CERESTA) para facilitar a integração entre
órgãos dos três níveis de governo e os diferentes conselhos municipais, além de
serem organizadas audiências públicas para ouvir os atingidos sobre os projetos
e de reconstrução (dimensão material) e recuperação (dimensão psicossocial). No
caso do desastre do RS, é importante destacar que Porto Alegre tem uma
experiência de mais de 25 anos com o Orçamento Participativo, que poderia ser
adaptado a outros municípios gaúchos a fim de incluir as ações de reconstrução.
Dentre
todos esses desastres são poucos os exemplos de ações de transparência ativa
nos processos de reconstrução. A notícia mais recente neste sentido vem do
Programa Recupera RS, instituído pelo Tribunal de Contas da União, que tem como
um dos objetivos facilitar a transparência dos processos.
Nunca
é demais lembrar que o direito à recuperação de desastre engloba ações de
caráter definitivo tomadas após o evento, para restaurar os ecossistemas
restaurando o cenário destruído, restabelecer as condições de vida da
comunidade afetada, impulsionar o desenvolvimento socioeconômico local, além de
recuperar as áreas degradadas para evitar a reprodução das condições de
vulnerabilidade ligadas ao desastre.
Fonte:
FolhaPress/Superinteressante
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