Como
funcionava o SNI, o 'monstro' da repressão criado pela ditadura militar há 60
anos
"Criei
um monstro", afirmou certa vez o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987).
Ele
se referia ao Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de espionagem da
ditadura militar brasileira que foi instituído em lei de 13 de junho de 1964. O
general foi seu principal idealizador — e primeiro chefe, ocupando o posto até
março de 1967.
Semanas
após o golpe de 1964, o SNI foi criado em um "momento de grande paranoia
anticomunista", conforme contextualiza à BBC News Brasil o historiador
Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"Foi
também o momento de passagem da estratégia de 'contenção e retaliação' aos
movimentos reivindicatórios por direitos e reformas sociais para a estratégia
de 'repressão e contra-ataque' na América Latina", explica.
"A
montagem destes serviços de identificação e vigilância, ditos de inteligência,
visava ao atendimento e garantia da doutrina de segurança nacional. Esta
orientava-se pelo combate ao 'inimigo interno', no interior das sociedades
nacionais. Daí a sanha de enxergar e de buscar 'comunistas' em toda parte, o
tempo todo. Rapidamente esta paranoia desdobrou-se em repressão a qualquer tipo
de crítica, de oposição e denúncias contra o regime instaurado em 1º de abril
de 1964."
O
órgão foi extinto em março de 1990, quando Fernando Collor, primeiro eleito por
voto direto após o regime militar, assumiu a presidência do país. Antes, havia
sido tão importante que dois dos chefes do SNI acabariam alçados à presidência
do país: Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), comandou o serviço de 1967 a
1969 e presidiu o Brasil de 1969 a 1974; e João Baptista Figueiredo (1918-1999)
esteve à frente do órgão de 1974 a 1978 e foi o último presidente da ditadura
militar, de 1979 a 1985.
Segundo
explica à BBC News Brasil o jurista Marcelo Crespo, especialista em direito
penal e coordenador do curso de direito da Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM), o SNI, instituído "com o objetivo legalmente previsto de
assessorar o presidente da República em relação às atividades de informação e
contra-informação, se tornou rapidamente o centro do complexo aparato
repressivo estruturado pelos militares, desempenhando ações vinculadas à
repressão política, participando de operações de rua e de sessões de
tortura".
"Oficialmente,
foi criado para combater a subversão e proteger o Estado contra ameaças
internas e externas", diz.
"A
função do SNI era ser um órgão de informação, de inteligência, para assessorar
os presidente militares na tomada de decisões", esclarece à reportagem o
historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).
"No
início, a preocupação deles era o monitoramento de inteligência com foco nos
inimigos derrotados mas, com o passar do tempo, com a resistência à ditadura
aumentando, as funções do SNI foram se ampliando e eles foram assumindo um
caráter mais nacional e de coordenação de todo um sistema que eles chamavam de
'comunidade de informações'."
Era
o tal "monstro".
• Corrupção
Quando
foi criado, o SNI absorveu duas estruturas pré-existentes, o Serviço Federal de
Informações e Contrainformação e a Junta Coordenadora de Informações. Na
prática, o novo órgão passou a desempenhar o papel de espionagem da ditadura —
segundo a Comissão da Verdade, havia células do SNI atuando até dentro de
universidades e estudos recentes mostram que o órgão ajudou a encobrir casos de
corrupção e a criar a percepção pública de que os governantes militares eram
menos corruptos do que os civis.
"O
SNI desempenhou um papel crucial na construção da imagem do regime militar como
incorruptível", salienta Crespo. "O órgão atuava na censura e na
manipulação de informações, controlando a mídia e a propaganda estatal. Ao
censurar notícias desfavoráveis e promover narrativas que exaltavam a
moralidade e a eficiência dos militares, o SNI contribuiu para a criação de uma
percepção pública de que os líderes militares eram incorruptíveis."
"Além
disso, o SNI monitorava e reprimia qualquer denúncia ou investigação de
corrupção que pudesse manchar a imagem do regime, garantindo assim a manutenção
dessa imagem positiva. Esse controle era parte de uma rede altamente
capilarizada e autônoma de arapongagem que incluía diversas instituições civis
e militares", complementa o jurista.
Sobre
o encobertamento de práticas de corrupção, Sá Motta lembra o caso do jornalista
Alexandre von Baumgarten (1930-1982), ex-agente do SNI que acabou executado,
com a mulher e um barqueiro, em alto mar após ter escrito um livro,
supostamente de ficção, sobre uma operação de tráfico de urânio envolvendo o
serviço.
Mais
tarde, descobriu-se que o Brasil, por meio do SNI, vendia um composto de urânio
clandestinamente para o Iraque, com o intuito de abastecer seus reatores
nucleares.
Martinez
acredita que essa percepção de que os militares não eram corruptos foi
alimentada "pela prerrogativa de serviço secreto e de segurança
nacional" que distinguiu o SNI.
"Nem
mesmo a CIA norte-americana desfrutava de tanta autonomia administrativa e
política", diz ele. "As ações do SNI não eram reportadas e nem
submetidas a ninguém, exceto ao general-presidente de plantão."
"Ou
seja, o SNI escapou ao controle de qualquer instância governamental e social,
tornou-se 'um monstro', nas palavras do próprio general pai desta criatura
ideológica e máquina repressiva", afirma.
"Sem
prestar contas de nada e a ninguém, logo os desmandos foram sendo conhecidos e
acobertados pelos dirigentes e governantes em cada período. Contrabando,
chantagem, pressões, ameaças, atentados foram se sucedendo, sem que houvesse
qualquer esclarecimento público das denúncias, apuração de fatos e
identificação de responsáveis e demais envolvidos" diz o historiador.
Ele
cita como emblemáticos "do desmando e da impunidade" os casos do
assassinato de Baumgarten e também do episódio da bomba do Riocentro, ataque
terrorista planejado pelo Exército e pela Polícia Militar em 1981.
"Levaram à fúria e ao desligamento do próprio general Golbery da equipe de
governo do [então presidente] general Figueiredo", relata.
• Estrutura
Pelo
organograma, o chefe do SNI tinha status de ministro. Golbery do Couto e Silva
foi sucedido por Médici, depois por Carlos Alberto da Fontoura (1912-1997),
Figueiredo, Octávio Aguiar de Medeiros (1922-2005) e Ivan de Souza Mendes
(1922-2010), todos eles militares.
Ligado
à estrutura da presidência, o SNI gozava de imenso poder e quase ilimitadas
prerrogativas. Podia investigar qualquer um que considerasse suspeito e de seus
relatórios originavam-se decisões da cúpula do país.
"Era
uma estrutura nacional, com a central em Brasília e agências nas principais
capitais", explica Sá Motta. "Com o tempo eles foram ampliando. No
final da ditadura havia mais de 100 unidades de informação, quase 200. Só no
meio das universidades eram mais de 40. O SNI se tornou um sistema muito
grande, capilarizado. Com isso eles tinham informação do Brasil todo e
coordenavam uma máquina de informação."
Segundo
o professor, foi por isso que o criador Couto e Silva classificou o aparato
como "um monstro". "Ficou grande. Além de ter ficado também
corrupto", frisa.
"O
SNI tinha uma estrutura hierárquica e complexa, com o presidente da República
no topo, seguido pelo chefe do SNI, que tinha status de ministro",
salienta Crespo. "O órgão possuía diversas divisões e setores
especializados, como a Divisão de Operações e a Divisão de Contra-Informações.
A operação do SNI envolvia a coleta de informações através de uma extensa rede
de agentes e informantes espalhados por todo o país, além de parcerias com
outros órgãos de segurança e inteligência, tanto civis quanto militares."
"Essas
informações eram analisadas e utilizadas para orientar as ações do governo e
das forças de segurança, bem como para reprimir opositores e controlar a
população", afirma o jurista. "O SNI se espalhava pelo Estado,
criando novas agências conforme necessário e atuando em ministérios civis,
universidades e empresas públicas."
Havia
uma agência central, em Brasília, de onde as ações eram coordenadas e onde
todas as informações coletadas eram catalogadas e processadas. Mas o SNI tinha
uma estrutura capilarizada, com agências regionais nas principais capitais e
escritórios que funcionavam ligados a instituições como fundações, autarquias,
empresas públicas e universidades.
Eram
nesses escritórios que as informações costumavam ser coletadas. Para tanto eles
contavam com duas fontes principais: os "cachorros" e os
"secretas". Os primeiros eram agentes que atuavam de forma
voluntária, muitas vezes funcionários públicos em cargos de confiança que
delatavam colegas na esperança de algum favorecimento. Já os “secretas” eram
agentes remunerados e treinados pelo SNI, infiltrados em diversos setores da
administração pública e privada.
Tanto
"cachorros" quanto "secretas" comumente se infiltravam em
organizações, a fim de buscar informações e identificar potenciais opositores
do regime ditatorial.
Em
um modelo inspirado no funcionamento da CIA, a agência de inteligência dos
Estados Unidos, o SNI contava com secretarias paralelas, com poderes
equivalentes, na ideia de impossibilitar ao máximo que agentes inimigos
conseguissem interferir nas informações, já que entre essas estruturas estava
prevista uma vigilância mútua.
O
SNI tinha uma secretaria administrativa — que cuidava da burocracia —, uma
política — que fazia a vigilância sobre atividades partidárias, de
parlamentares e de suas famílias —, uma econômica — que acompanhava as empresas
privadas e o fluxo de moeda estrangeira entrando e saindo do país —, uma
ideológica — que acompanhava os potenciais subversivos — e uma psicossocial —
que vigiava as igrejas, a imprensa, os sindicatos, as escolas e outros
segmentos sociais.
Os
"secretas" eram coordenados pela secretaria política; os
"cachorros", pela ideológica.
Além
disso, na estrutura do SNI haviam assessorias, que serviam para vigiar as
secretarias — e eram por elas vigiadas. As Assessorias de Segurança de
Informações coletavam dados em instituições como o Banco do Brasil, a Companhia
Vale do Rio Doce e a Fundação Getúlio Vargas, entre tantas outras. Já as
Divisões de Segurança Nacional coordenavam as coletas de informações,
enviando-os à agência central.
No
modus operandi, grampos telefônicos e censura postal eram praxe.
Segundo
a avaliação do historiador Martinez, a estrutura do SNI era "cara,
burocrática, ineficiente e numerosa", com "centenas de funcionários,
em sua maioria militares, raros civis".
"Suas
ações eram dissimuladas, mas tornavam-se evidentes as suas interferências em
nomeações, votações, acordos partidários e eleitorais, auxílios e dificuldades
a parlamentares, inclusive governistas, e mesmo governadores de Estados",
diz ele.
"A
sua carteira funcional, ligada diretamente à Presidência da República, removia
obstáculos administrativos, políticos, partidários e pessoais. Erguia muros de
contenção e de autopreservação de identidades, responsabilidades, interesses e
beneficiários, em diferentes situações. Não faltaram relações cooperativas com
nomes e segmentos do mundo empresarial, financeiro, rural, jornalístico e
cultural."
• Repressão e violência
De
acordo com os pesquisadores, o SNI participava dos episódios violentos da
repressão característicos da ditadura, principalmente porque estava diretamente
ligado a ações de órgãos como o Destacamento de Operações de Informações -
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), conhecidos pela prática de
tortura contra opositores do regime.
"O
SNI esteve envolvido em práticas de tortura e outras violações dos direitos
humanos", salienta Crespo. "Havia uma comunicação sistematizada entre
o SNI e outros órgãos de repressão, como o DOI-CODI. Esses órgãos colaboravam
na troca de informações e na coordenação de operações contra opositores do
regime, incluindo prisões, interrogatórios e torturas. Documentos e testemunhos
de ex-presos políticos e agentes de segurança confirmam que o SNI tinha
conhecimento e, em muitos casos, participava diretamente dessas práticas."
O
jurista lembra que mais de 300 mil brasileiros foram fichados pelo SNI, muitos
deles tendo sido presos, torturados e assassinados.
O
historiador Sá Motta lembra que, no início, o SNI "não atuava em operações
específicas de repressão", restringindo-se ao papel de "uma agência
de informação e inteligência”. “Mas com a intensificação da repressão política,
ele começou a se envolver mais [com a repressão], embora não fosse a sua função
principal", aponta.
"Como
o SNI era o grande órgão de informações, acabava se envolvendo em todas essas
atividades, com agentes envolvidos nesses aparatos [como DOI-CODI, polícias
militares e Forças Armadas]", acrescenta o historiador. "O SNI
monitorava tudo e tentava controlar tudo."
"Os
relatórios elaborados pela Comissão Nacional da Verdade colocaram em evidência
a cadeia de comando que, partindo do Palácio do Planalto, alcançava os porões
de delegacias e dos centros de detenção e de tortura clandestinos",
ressalta Martinez. "Havia relatos, vestígios e testemunhos que foram
confirmados pelo trabalho da Comissão Nacional da Verdade e pela abertura de
arquivos no exterior, sobretudo, nos Estados Unidos. O general [Ernesto] Geisel
[que foi presidente entre 1974 e 1979] consentiu na eliminação física seletiva
de opositores e dirigentes considerados vips políticos dos grupos clandestinos
e da luta armada."
"A
ditadura nunca foi desinformada e o SNI nasceu com esta finalidade: listar e
localizar, em tempo recorde, potenciais adversários dos generais-presidentes e
seus patronos ideológicos e políticos", diz ainda o historiador. Em outras
palavras, era preciso "neutralizá-los", conforme a conveniência e os
riscos.
Fonte:
BBC News Brasil
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