Vendedores denunciam serem forçados a
vender cartão do Itaú em esquema milionário
Ex-funcionária de uma
loja da rede Ponto Frio, na região oeste de Belo Horizonte (MG), Luana* diz que
se viu coagida a participar de uma armadilha para clientes envolvendo o maior
banco privado do país, o Itaú. A situação envolvia a venda casada de cartões de
crédito do banco para clientes de lojas de varejo sem que eles soubessem. Essa
prática foi registrada em ações trabalhistas às quais a Agência Pública teve
acesso com exclusividade.
O esquema de inclusão
sigilosa seguros do Itaú começou a ser investigado em 2010 e estaria em prática
até hoje. Toda a extensão do negócio está sendo revelada publicamente pela
primeira vez. Segundo essas investigações do Ministério Público de Minas Gerais
(MPMG), o Itaú e grupos de varejo estariam lucrando milhões de reais através de
práticas abusivas de cobrança de serviços não solicitados por consumidores, por
meio da fatura do Itaucard.
De acordo com o MP,
empresas estariam sendo criadas para que o Itaú pudesse obter o seu controle
operacional e financeiro. Enquanto isso, as lojas receberiam milhões de reais,
como contrapartida. A liberação de acesso a dados de clientes também faria parte
da estratégia.
<><> Por
que isso importa?
• Vendedores teriam sido coagidos a
participar de um esquema do Itaú que enganaria clientes.
• Segundo a investigação do MP, o banco e
outros grupos de varejo estariam lucrando milhões com cobranças abusivas.
<><>
Funcionários de lojas denunciam serem forçados a vender seguro Itaú
Luana conta que foi
contratada em uma loja do Ponto Frio em Belo Horizonte (MG) para atender
clientes interessados em comprar eletrodomésticos, mas acabou sendo obrigada a
vender 50 seguros do Itaucard por mês. Para isso, ela era forçada a incluir o
serviço durante a aquisição do cartão de crédito do banco, sem que o cliente
soubesse.
Quando passou a se
recusar a participar do esquema vieram as punições. “Meus coordenadores
começaram a me humilhar em público e me mandar para lojas cada vez mais longe
da minha casa. Acabei pedindo demissão”, conta.
Em Goiânia (GO), o
atendente de crediário Pedro* procurou a Justiça com uma queixa parecida,
porém, envolvendo a rede de supermercados Extra. Em depoimento, ele disse que
era obrigado pelo supervisor e pelo gerente-geral da loja a realizar a venda
casada do Itaucard com o seguro “cartão protegido”, para casos de perda e
roubo, por exemplo. “Cerca de 60% a 70% dos vendedores agem de modo que não
informam aos consumidores adequadamente sobre os produtos vendidos, tendo em
vista a meta a ser cumprida”.
Na loja Marisa, do
Shopping Flamboyant, ainda em Goiânia, a operadora de caixa Letícia* também
teria sido forçada a bater metas diárias de venda do Itaucard. Em depoimento,
ela contou que “era oferecido o seguro e, mesmo quando o cliente recusava, o
seguro era inserido, sem seu consentimento. Em muitas ocasiões, ciente de que o
cliente ia recusar o seguro, ela embutia o serviço automaticamente”. Além
disso, caso ele descobrisse a fraude, a ordem era não retirar o seguro, e
redirecionar o comprador para uma central, que também dificultaria o
cancelamento.
As práticas descumprem
determinações do Código de Defesa do Consumidor que, além de proibir a venda
casada, garantem o acesso do cliente às informações sobre as aquisições.
Segundo o Código Civil, os distratos devem poder ser feitos da mesma forma como
o contrato foi firmado. No caso, presencialmente.
Os vendedores, que
tiveram reconhecido o vínculo trabalhista com o banco, entraram com ações
judiciais entre 2014 e 2018. Campo Grande (MS), Canoas (RS), Porto Alegre (MS)
e Contagem (MG) são algumas outras cidades que aparecem em processos reunidos
pelo MPMG.
• 3 milhões de brasileiros podem ter
passado por esquema, diz MP
Em 2018, de acordo com
relatório do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (SINDEC),
foram encontradas mais de 450 mil reclamações contra o Itaú e seus
correspondentes bancários. Só para os assuntos “cartão de crédito”, “cartão
loja” e “seguro” foram localizadas mais de 32 mil reclamações nos Procons de
todos os estados do país.
Foi em 2018 que o
Ministério Público de Minas Gerais decidiu, diante das acusações, iniciar uma
tentativa de conciliação junto ao Itaú, que ainda não tem previsão para
terminar. Segundo uma perícia encomendada pelo órgão, há seis anos, o custo
médio das mensalidades dos seguros vendidos irregularmente era de R$ 10,50.
Apenas entre 2010 e 2017, segundo o MPMG, três milhões de brasileiros podem ter
sido vítimas do golpe e o proveito econômico do banco com a prática pode ter
ultrapassado a casa dos R$ 3 bilhões.
Por meio da Promotoria
de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte, foi proposto um Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC). O documento elenca uma série de medidas que
obrigaria o Itaú, entre outras ações, a cessar imediatamente a prática ilícita,
ressarcir as vítimas e, além disso, destinar, por dano moral coletivo, R$ 100
milhões ao Fundo Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor.
Dois meses depois, sem
que houvesse acordo, o Itaú encaminhou sua defesa, nesse momento,
judicialmente, à 5ª Vara Cível de Belo Horizonte. Sem reconhecer os atos
ilícitos, o banco considerou a imposição de sanções descabida e afirmou que
somente seria possível um ajustamento muito aquém daquele proposto pelo MP.
Ainda segundo a
defesa, equívocos podem acontecer, porém, a venda de seguros sempre teria sido
feita de forma legal, com o conhecimento dos consumidores. Além disso, de
acordo com o documento, a Promotoria usou coletas de dados genéricas, “provas
imprestáveis”, e processos de pessoas que desejariam tirar proveito do banco em
suas ações trabalhistas.
• Ministério Público denuncia conluio
entre empresas
A investigação,
conduzida pelo promotor de Justiça do Ministério Público de Minas, Glauber
Tatagiba, indica que poderia haver um arranjo entre empresas que, apesar de não
ser ilícito, possibilitaria a venda de seguros embutidos, por meio dos cartões
Itaú.
Por meio do Relatório
de Análise do Laboratório de Tecnologia Contra Lavagem de Dinheiro (LAB-LD), o
Ministério Público mineiro afirma que grandes grupos comerciais do varejo se
vincularam ao Itaú para obter vantagens comerciais. Segundo o MPMG, em cada parceria
seriam criadas empresas, ou associações, cujas decisões operacionais e
financeiras ficam a cargo do banco. Em contrapartida, os grupos receberiam
quantias milionárias, em contratos firmados por anos.
Como exemplo, o
documento cita o caso das lojas Marisa. Em 2008, pela criação do cartão de
crédito Marisa-Itaú e cessão da exclusividade do uso da base de dados de
clientes, a rede teria recebido R$ 120 milhões. Nessa época, o Código de Defesa
do Consumidor já determinava que os clientes devem ter acesso a informações
arquivadas sobre ele, bem como sobre as suas origens.
Uma outra associação
seria a do Itaú com o Magazine Luiza, que gerou o Luizacred. Em 2011, a empresa
financeira controlada pelo banco teria ficado com a exclusividade de exploração
dos canais de distribuição dos produtos de crédito. Em contrapartida, o Magazine
Luiza teria recebido R$ 48 milhões.
O MPMG cita ainda a
Via Varejo (atualmente, Via) responsável pela administração das Casas Bahia, do
Ponto Frio e do Supermercado Extra, dentre outros. O Itaú operaria nesse grupo
por meio de empresas como a Financeira Itaú CBD S/A, Fic Promotora de Vendas
Ltda, Banco Investcred Unibanco e Zurich Minas Brasil Seguros. Apenas com essa
última seguradora, um contrato celebrado em 2014 para garantia estendida nas
lojas por oito anos teria rendido R$ 850 milhões ao grupo varejista.
Além dessas
associações, a investigação apontou uma “dança” entre empresários, nas
organizações. Segundo o Ministério Público, os nomes se repetem em altos
cargos, tanto das instituições financeiras quanto das empresas do ramo
comercial.
Esses seriam indícios
do modus operandi que possibilitaria a influência do banco sobre as lojas, e
que culminaria na venda de seguros sem consentimento dos consumidores por meio
de cartões de crédito.
O banco Itaú alega
que, por serem associações legítimas, os fatos expostos não passam de
conjecturas. Segundo a defesa, “são sugestões pouco claras e as relações
criadas por meio de fios condutores pouco nítidos levam a conclusões diferentes
do que se vem travando nos autos”.
• Banco é condenado em 1ª instância
Em setembro de 2021,
depois de várias idas e vindas em recursos judiciais, o Juiz Nicolau Lupianhes
Neto, da 5ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, reconheceu a prática
abusiva do Itaú e proferiu uma sentença que, dentre outras condenações,
determinou que o banco declare e encerre a prática, disponibilize no site cópia
dos contratos oferecidos aos consumidores, restitua em dobro todos que tiveram
valores cobrados indevidamente, bem como aqueles que não tenham conseguido
cancelar produtos ou serviços autorizados.
Por outro lado, apesar
de o MPMG, ao longo do processo, ter concordado em aplicar uma indenização
mínima de R$ 2 milhões, a sentença fixou o valor para o dano moral coletivo em
R$ 500 mil a serem destinados ao Fundo Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor.
O Itaú avaliou a
condenação como injusta, uma vez que nega haver qualquer tipo de conduta
criminosa. O banco recorreu pedindo a anulação da sentença.
Já o MPMG recorreu
considerando a multa baixa. O promotor de Justiça Glauber Tatagiba argumentou
que o Itaú, naquele momento, possuía um ativo total superior a R$ 2 trilhões e
que, portanto, a sentença não apresentava fundamentos para redução da indenização.
O IDEC, Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor, entrou no processo, pedindo que o juiz
acolhesse o posicionamento da promotoria e alertando a justiça para as
possíveis distorções de fatos processuais que estariam levando a um equívoco na
sentença.
Ainda assim, em maio
de 2022, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve sua decisão. Desde 28 de
agosto de 2023, os autos foram remetidos em grau de recurso para instância
superior.
Empresas de varejo
citadas no processo judicial foram processadas administrativamente, em razão
dessa conduta, segundo o MPMG. A Pública teve acesso ao relatório de 2022, do
Procon-MG, que considerou a Cia Brasileira de Distribuição (Extra) também
responsável pela venda de seguro não solicitado, com multa no valor de R$ 10
milhões. A empresa foi condenada em primeira instância.
• Indícios de manutenção da prática
abusiva
Só no último trimestre
de 2023, o Banco Central do Brasil registrou 6.023 reclamações contra o
conglomerado Itaú. A grande maioria, relacionadas a irregularidades relativas à
integridade, confiabilidade, segurança, sigilo ou legitimidade das operações e serviços
relacionados a cartões de crédito.
Nos sites de empresas
citadas na reportagem, como a Marisa, o Extra e o Ponto Frio, é possível
verificar a venda do Itaúcard. Vários outros grupos também aparecem na página
do banco, com parcerias parecidas. Por exemplo, as operadoras de telefonia Vivo
e Tim, o grupo de supermercados Pão de Açúcar, a fabricante de aparelhos
eletrônicos Samsung, as empresas de passagens aéreas Latam e Azul e o Instituto
Ayrton Senna.
Anuidade gratuita,
programa de milhas e descontos de fidelidade estão entre os benefícios
anunciados para convencer os clientes a adquirir o cartão, nas bandeiras
Mastercard, Hipercard ou Visa. Segundo o site, não é preciso ter conta corrente
no banco. Basta escolher “o cartão que dá match com você” e finalizar o
processo pela internet.
Esses fatos,
isoladamente, não indicam vendas casadas e abusos contra os consumidores.
Porém, pelo número de reclamações e similaridade entre relatos recentes de
consumidores, o promotor de Justiça Glauber Tatagiba é enfático ao dizer que a
prática abusiva ainda faz vítimas.
“Muitos consumidores
sequer sabem que estão sendo lesados, pois não têm conhecimento da contratação
do seguro. Outros, acabam deixando a cobrança acontecer, diante dos entraves
para cancelamento. É preciso que os cidadãos tomem conhecimento dos fatos e denunciem,
busquem a justiça”, alerta.
Em nota, o Tribunal de
Justiça de Minas Gerais informou que os juízes não comentam decisões de
processos em curso.
• Outro lado
O Banco Itaú disse que
recorreu da decisão ao Tribunal de Justiça e aguarda julgamento, não havendo
ainda decisão final. O banco reforça que atua de forma ética e transparente com
relação aos seus clientes, atendendo à legislação e mantendo suas equipes alinhadas
com essas práticas.
A companhia Marisa
esclareceu que segue rigorosamente as melhores práticas na oferta de serviços
ao consumidor e que não comenta casos judiciais em andamento.
Já o Magalu informou
que não é parte da referida ação e recorre de autuação aplicada pelo órgão em
2020, baseada na mesma alegação. Segundo a resposta da empresa, “um dos pilares
da cultura do Magalu é ‘o certo é certo’. Por isso, a empresa tem uma série de
mecanismos que evitam a venda de serviços sem autorização do cliente, com
treinamento e conscientização de seus colaboradores e até aplicação de
penalidades quando identificada alguma infração. Além disso, conta com canais
para denúncia e um ágil processo de cancelamento, caso o cliente solicite”,
informou.
O Grupo Casas Bahia,
que representa o Ponto Frio e o Supermercado Extra, não respondeu ao nosso
contato.
A Seguradora Zurich
esclareceu em nota que não pertence a qualquer grupo econômico financeiro ou de
varejo, sendo empresa do Grupo Suíço Zurich, e desconhece o processo citado. A
empresa respondeu que a companhia é de origem Suíça, com mais de 150 anos de
existência no mundo, e tem operações no Brasil há várias décadas, com estrita
observância a todas as normas legais e regulatórias, com transparência e rígida
governança.
A empresa de telefonia
Vivo disse que está em contato com a instituição financeira para solicitar
esclarecimentos e acompanhar o caso.
As cias aéreas LATAM e
Azul, a Samsung e o Grupo Pão de Açúcar, disseram que não vão comentar o
assunto.
O Instituto Ayrton
Senna disse que não possui informações sobre a denúncia e que a parceria com o
Cartão Instituto Ayrton Senna Itaú tem como finalidade destinar recursos aos
projetos e pesquisas voltados ao desenvolvimento integral de crianças e jovens em
todo o Brasil. A nota afirma, ainda, que a parceria se consolida de forma ética
e transparente, atendendo à legislação e mantendo suas equipes alinhadas com
essas práticas.
A telefônica Tim não
respondeu.
Fonte: Por Elisangela
Colodeti, da Agencia Pública
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