‘Tragédia
gaúcha é consequência de um plano de Estado mínimo’, afirma pesquisadora
Em
outubro de 2023, Porto Alegre acabara de passar por sua mais grave enchente
desde a famosa e histórica de 1941. À época, para descrença de muitos, a arquiteta e pesquisadora
Mima Feltrin disse que, a qualquer momento, a capital gaúcha poderia viver uma inundação
superior àquela de oito décadas atrás.
“Basta
conflitarem os ventos, a conversão dos rios da Serra, uma série de fatores
climáticos podem causar essa mesma enchente”, afirmou textualmente em entrevista ao Brasil de Fato RS,
publicada em 7 de outubro de 2023.
Agora,
quando as águas do Guaíba não somente bateram seu recorde de 1941, mas o
fizeram mais de uma vez, voltamos a conversar com ela. Graduada em
Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUC/RS), com intercâmbio acadêmico pela Universitat Internacional da
Catalunya, Barcelona, ela hoje trabalha e estuda áreas como espaços
públicos, waterfronts e desastres ambientais.
LEIA A ENTREVISTA:
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No dia 7 de outubro de
2023, logo após as cheias que devastaram o Vale do Rio Taquari, distante 100 km da capital, disseste em entrevista do Brasil
de Fato RS que Porto Alegre poderia ter uma enchente igual à histórica de 1941.
De onde veio aquela convicção?
Mima Feltrin – Veio do
meu estudo sobre as inundações em Porto Alegre desde 2019, quando fiz meu
trabalho de conclusão de curso na PUC/RS. Já trabalhava as inundações nesse
projeto de TCC. Então, para fazer o projeto, comecei a pesquisar diferentes
bibliografias e encontrei estudos do professor Tucci [Carlos Tucci, pesquisador
de previsão e alerta de sistema hídricos, ex-professor do Instituto de
Pesquisas Hidráulicas, da UFRGS] que, em 2008, publicou um artigo chamado “As
Águas Urbanas”. E, nele, já disponibilizava dados que comprovam que a enchente
de 1941 teve diferentes picos de água comparados às anteriores. A partir de
cálculos hidrológicos, ele comprova que enchentes parecidas com essas e com a
intensidade da mesma magnitude ou maior até – como as de 1941 e de 1967 –
poderiam acontecer a qualquer momento.
Para
não usar somente uma referência, fui buscar outras. A Nasa também consegue
prever isso. A plataforma da Nasa, o Sea
Level Rise, disponibiliza parâmetros e cotas das
cidades, onde conseguimos fazer cálculos que comprovam a magnitude de eventos
climáticos e corroboraram essa hipótese do professor Tucci.
Então,
levando em conta os dados, consegui afirmar que poderia acontecer uma nova
enchente a qualquer momento. Quando a gente tem ainda as mudanças climáticas, o
aquecimento global e desmatamento da Amazônia em curso, estamos ajudando a intensificar os fatores de
novas inundações.
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Tua previsão pareceu
impactante, mas, diante do que estamos enfrentando agora, tornou-se até
modesta. Quais os erros que aconteceram para tudo ficar ainda pior?
Desde
o seu início, Porto Alegre teve uma relação muito franca
com o Lago Guaíba. Ele faz parte da história da cidade. Foi
através dele que chegaram os imigrantes portugueses que colonizaram o centro da
nossa capital, a região do porto. Chamava-se Porto dos Casais e depois virou
Porto Alegre. Com a intensificação econômica e social através do porto, houve a
a necessidade de construir um cais maior e, para isso, aterraram boa parte do
leito original do rio.
É o
primeiro erro. Mudamos drasticamente a estrutura do rio, o tamanho da sua foz,
o que hoje contribuiria para não ter uma inundação. Quando aterramos toda a
grande parte do porto do 4º. Distrito (região Norte da capital), mudamos
completamente o curso das águas e não conseguimos mais prever o caminho que
elas vão fazer.
Depois,
por uma falta, acredito, de planejamento urbano deixou-se construir muito perto
do rio Jacuí, casos das avenidas Castelo Branco e Edvaldo Pereira Paiva. Por
mais que tenhamos diques nas avenidas para a prevenção de enchentes, vemos que
não se respeitou as áreas de mangues, a fauna e flora locais que, nas
inundações, ajudariam a escoar a água. Onde deveríamos ter a natureza ajudando
a água a escoar, construímos com concreto.
·
Em julho de 2023, o
prefeito Sebastião Melo (MDB) mandou derrubar mais de 400 árvores no parque da
Harmonia, localizado junto ao Guaíba. Por que no Brasil anda-se na contramão do
que muitas cidades no mundo estão fazendo, replantando árvores e tornando mais
verdes suas ruas e avenidas? De que modo decisões como essa sinalizam futuros
problemas para a cidade?
Eu
me assustei bastante com a eleição do Sebastião Melo. Desde 2008 estava comprovado que se poderia ter uma inundação
igual ou maior do que a de 1941. E me assustei porque não vi nenhuma menção a
projetos de prevenção de inundações ou (para enfrentar) as mudanças climáticas.
Como se Porto Alegre não tivesse chance de sofrer uma inundação.
Poderíamos
ter uma orla que propusesse a renaturalização dessa flora e fauna, que seria a
orla do Cais Mauá. Prevendo uma preservação do centro e dos armazéns que são
patrimônio cultural da cidade. Poderíamos ter um parque a céu aberto que, ao
mesmo tempo, fosse a própria proteção contra inundações. Como está sendo
construído em Nova York com o Rebuild B Design, do escritório BIG. Onde houve
várias reuniões com a população para saber das suas necessidades. A gente vê
Porto Alegre numa lógica completamente inversa.
Onde
poderíamos ter parques temos prédios altos com helipontos, negando essa vista
dos armazéns para o seu porto. Onde poderíamos ter um sistema hidroviário muito
acentuado pelo potencial que Porto Alegre tem. Quando muitas cidades no mundo
estão derrubando os viadutos, Porto Alegre está construindo mais viadutos.
Então,
me traz muito medo pensar que o futuro de Porto Alegre está na mão de um
projeto de cidade negacionista. Onde não se pensa e nem se pergunta à população
o que ela necessita. Mas se pergunta às grandes empresas da cidade que estão
completamente omissas nesta crise climática que vivemos hoje.
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Você disse também que,
devido às mudanças climáticas e de acordo com os modelos de simulação hoje
disponíveis, Porto Alegre estará debaixo d’água dentro de 400 anos. Fale um
pouco mais sobre isso.
Através
dessa plataforma que citei, o Sea Level Rise, da Nasa, conseguimos
ver a situação das cidades em relação ao nível do mar e qual a projeção desse
nível aumentar ao longo dos anos. É uma conta que, a partir desses dados, se
pode fazer. Fiz essa conta em 2019 e acredito que, hoje, a previsão é ainda mais
pessimista.
Porto
Alegre está 10 metros acima do nível do mar. De acordo com a Nasa, também sobe
esse nível em Porto Alegre (a base de) 2,5 centímetros ao ano. Em 400 anos,
seriam esses 10 metros.
Junto
a isso, projeções do Un-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Urbanos)
revelam que, até 2050, aproximadamente 90% das maiores cidades do mundo estarão
expostas ao aumento do nível do mar. Então, vem de novo a indagação: Como
estamos nos preparando para resolver esse problema real que hoje bateu na nossa
porta?
Para
você ter uma noção, através desses mesmos dados disponibilizados pela NASA,
daqui a 100 anos Veneza vai estar completamente submersa. Vemos que o Brasil
está muito atrasado nisso. Porque a própria Veneza já tem construído um sistema
de proteção prevendo esse futuro. Porque, para eles, é um prazo muito menor.
Mas,
se a gente for comparar também Porto Alegre com Nova York, ocorre que em Nova
York vai acontecer (a inundação) daqui a mil anos. Mas o plano de Nova York de
contrainundações está sendo construído desde 2014 e junto com a população,
enquanto Porto Alegre está sofrendo agora o abalo dessas inundações. Então, é
urgente se falar sobre isso.
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Nos últimos anos, o
poder público, como ocorreu no governo Eduardo Leite (PSDB), resolveu afrouxar
e terceirizar suas responsabilidades de fiscalização dos empreendimentos,
instituindo uma espécie de “autolicenciamento” em que o empresário fiscaliza a
si próprio. A seu ver, isso melhora ou agrava a situação que vivemos?
Essa
tragédia que o Rio Grande do Sul está vivendo é consequência de um plano de
Estado mínimo, que tanto o (governador) Eduardo Leite quanto o Sebastião Melo
defendem. No Estado mínimo não se vê uma prevenção de problemas. Vemos uma
desorganização na própria gestão da crise. O Estado mínimo terceiriza as suas
obrigações.
Na
prática, dando um exemplo, quando da licitação para o projeto do Cais Mauá,
houve estudos e relatórios de impacto ambiental feitos pelas empresas. E vemos
que a empresa vencedora, por mais que tivesse feito estudos de impacto, seu
próprio projeto não buscava preservar ou melhorar a fauna e a flora. Logo, fica
muito difícil deixar a responsabilidade final na mão de quem prevê somente o
lucro do negócio. Nossos governos não levaram essa emergência climática
seriamente.
Não
vemos um projeto do governo federal quanto aos desastres que acontecem no
Sudeste, no Sul, no Norte, no Nordeste. Acho que é reflexo de toda uma
sociedade que desacreditava que as mudanças climáticas iam assolar nosso
território. É preciso essa virada de chave geral.
Meu
grau de otimismo é baixo porque a gente tem que, primeiro, mudar a nossa
maneira de pensar. Começando a não tratar o caso do Rio Grande do Sul
isoladamente. O país vai ser assolado por diferentes desastres em diferentes
lugares do seu território.
Precisa-se
ter um planejamento e projetos que levem em consideração esses novos tempos.
Não são soluções carimbadas que vão nos ajudar. Cada cidade tem as suas
características e cada uma precisa de projetos especiais.
Não
podemos ter uma mesma solução para um projeto em Porto Alegre e outro, por
exemplo, em Canoas. É diferente por mais que os municípios estejam tão
próximos.
É
difícil ter uma visão otimista quando nem se admitia que estávamos propensos
aos desastres ambientais e naturais acentuados pelas mudanças climáticas, pelo
aquecimento global e desmatamento da Amazônia. Alguns meses atrás, metade do
país estava discutindo se a terra era plana ou não.
É
muito difícil ser otimista em tempos em que se tem que defender o óbvio.
Precisa-se inverter completamente a lógica. Aquela lógica de pensar que
desastres acontecem eventualmente e são eventos isolados. Começar a acreditar
em mudanças climáticas. Vai ser um processo de longo prazo.
Não
dá para tomar as mesmas atitudes que a gente vinha tomando. Planos prevendo
construção sobre matas ciliares, em zonas de florestamento. É um processo do
país querer lidar com esses desastres. Porque capacidade e pesquisadores
qualificados a gente tem.
·
E em relação à
recuperação das cidades atingidas? É possível pensar que, em locais onde a água
chegou a dois andares ou mais dos prédios – como no Vale do Taquari por duas
vezes em sete meses – seja possível reconstruir as cidades no local onde
estavam?
Não
é possível reconstruir as cidades nos mesmos locais onde existiam. A maioria
delas surgiu à beira dos rios. Não se teve os planos diretores efetivos para
não ter essa construção. Ou havia mas foram violados.
Vamos
ter que criar até uma bibliografia nacional sobre o assunto. Foi uma das
grandes dificuldades que encontrei na minha pesquisa de mestrado. Não havia
bibliografia nacional que se pudesse consultar na prevenção de desastres.
Não
se pode projetar para daqui a 50 anos mas levando em consideração daqui a 200,
300, 400 anos. É um trabalho imenso. Vai depender dos nossos governos, da nossa
população. Da maneira como vão encarar essa catástrofe.
Uma
pesquisadora de pós-desastre, a Joanna Dixon, já dizia, lá em 2022, que o
início imediato da reconstrução após o trauma pode levar a equívocos na tomada
de decisões. Em função da falta de tempo para refletir sobre a melhor maneira
de reconstruir.
É
exatamente isso que acho que temos que levar em consideração nesse
pós-desastre. Soluções pensadas a longo prazo. Para que a gente não volte a
sofrer com as inundações. Já existem dados, projetos, estudos que com certeza
teriam minimizado ou barrado completamente essas inundações.
Entre
as várias opções propostas após a enchente de 1967, uma foi a abertura de um
canal até o oceano Atlântico além de outros tipos de barreiras de proteção.
Optou-se por aquela que era a mais rápida de construir e de menor custo. Foi o
Muro da Mauá. Foi uma solução imediatista. Tenho medo que, agora, ocorra o
mesmo tipo de solução.
Acontece
que, quando sofremos um desastre, os primeiros passos que se tem é a
emergência, o socorrismo, e depois, logo, providenciar alguma solução. Mas a
solução tem que ser pensada com o tempo, para longo prazo, para serem tomadas
as medidas certas. Não sei se isso vai ser considerado.
O
Muro da Mauá não só teve o seu impacto enquanto barreira às inundações. Também
acaba sendo uma cicatriz no tecido urbano. Ele separa o centro histórico e a
população da orla. Em 2019, fiz uma pesquisa entrevistando as pessoas no centro
da cidade. Perguntava se elas sabiam o que tinha atrás do muro. Mais da metade
dos entrevistados não sabia.
Além
do mais, vemos que casas de bombas não tinham manutenção desde 2018. Que as
comportas do muro não tinham manutenção e restauro havia anos. E colocam sacos
de areia nas comportas para elas aguentarem as águas do Guaíba. O tamanho
descaso com que é tratado esse assunto. Coloca-se a vida das pessoas em risco,
optando-se por um saco de areia como solução.
É o
comportamento de uma prefeitura que vem negando a natureza. Vem negando as
áreas públicas e privatizando áreas importantes, como a área do Cais Mauá.
Querendo tirar o muro para ter uma barreira de 1m20cm. Ainda bem que não deu
tempo deles fazerem isso, senão o estrago teria sido muito maior.
Fonte:
Por Ayrton Centeno, em Brasil de Fato
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