Sob Bolsonaro, Brasil afrouxou regras para
construir na margem de rios e lagos; entenda a legislação
O Brasil afrouxou
regras para construções nas margens de rios e lagos durante o governo
Bolsonaro. A medida permitiu o avanço do desmatamento de vegetações
importantes, como destacam especialistas, para a mitigação de danos ambientais,
principalmente diante de desastres envolvendo corpos hídricos.
Agora, em meio às
enchentes que afetam mais de 400 municípios do Rio Grande do Sul,
ambientalistas afirmam que a retirada ilegal de vegetação na beira de rios e
lagos --um problema de longa data--, potencializado pelas regras menos rígidas
nos últimos anos, reflete nas consequências atuais de desastres.
Para eles, se tivesse
sido respeitada a legislação que regula a manutenção de vegetação na beira de
rios e lagos, o estado gaúcho sofreria menos prejuízos na crise causada pelas
chuvas.
De acordo com Suely
Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima,
rede com mais de cem entidades ambientalistas, as alterações nas legislações do
Brasil reduziram a proteção em áreas sensíveis e trouxeram um retrocesso na condução
da política diante dos efeitos extremos das mudanças climáticas.
Também advogada e
ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis) de 2016 a 2018, Araújo critica a aprovação, no Congresso
Nacional, da lei nº 14.285/2021. Ela deu autonomia aos municípios para mudarem
regras no Código Florestal a respeito das faixas de APPs (áreas de proteção
permanente) no entorno de corpos hídricos.
A mudança na lei foi
sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) no final de 2021. A nova
regra não impõe limite mínimo nas construções às margens de rios ou lagos, ou
seja, quem define são os municípios. Antes as edificações tinham limites a partir
de 30 metros.
"Essa lei deu uma
espécie de cheque em branco para os municípios reduzirem a proteção das matas
ciliares em plena crise climática. E vemos, não só com as enchentes terríveis
que afetaram o Rio Grande do Sul, que nós teremos problemas, na verdade, no
Brasil inteiro", diz à reportagem.
A especialista lembra
que o Observatório do Clima, junto a outras entidades, ingressou no STF
(Supremo Tribunal Federal) com a ação direta de inconstitucionalidade nº 7.146,
contra a lei aprovada em 2021. Na visão do grupo, os municípios não poderiam
flexibilizar a legislação mais que os limites impostos pela União.
Rafael Tímbola,
professor e engenheiro ambiental, explica que as matas ciliares fazem a
proteção do canal do rio para que as margens não sejam prejudicadas, por
exemplo, com erosões. Ele afirma ainda que a vegetação por si só já estrutura o
solo e faz com que a calha do rio não sofra danos ao longo do tempo.
"A vegetação tem
função de manutenção da biodiversidade, então tanto a flora quanto a fauna
servem como corredor ecológico e como filtro para o escoamento das águas
pluviais que, ao chegarem na mata ciliar, são filtradas, fazendo com que o
sedimento fique retido e a água passe para o rio", conta.
Conhecido nas redes
sociais como "perito ambiental", Tímbola afirma que a vegetação é
fundamental para a proteção tanto do corpo hídrico quanto das pessoas que vivem
no entorno, porque, além de fazer essa retenção de sedimentos, amortece a força
da enchente.
O engenheiro ambiental
avalia que algumas consequências das atuais inundações no Rio Grande do Sul
serão inversíveis, já que porções de terra deslizaram e foram parar dentro dos
rios e do lago Guaíba. Ele aponta que a catástrofe aumentou o tamanho da área
de risco da região e que agora o plano de adaptação deve impedir o retorno de
moradores a esses locais críticos.
"A bacia do rio
Taquari foi altamente atingida em função de não haver mata ciliar na parte mais
baixa. O rio ficou desprotegido e consequentemente as pessoas que estavam em
volta também. Então o que a gente observa hoje é o descumprimento da legislação,
e isso potencializa os efeitos no lago Guaíba", diz.
Ana Maria Nusdeo,
professora de direito ambiental da USP (Universidade de São Paulo), destaca
que, em meio ao avanço da crise climática, o processo de adaptação do poder
público poderá se complicar mais, pois as áreas de risco, principalmente em
zonas urbanas, terão uma expansão gradativa com acidentes cada vez mais
frequentes.
Para a especialista, a
lei 14.285/2021, alvo da ação de inconstitucionalidade, abriu caminhou para uma
maior pressão do setor imobiliário sobre os municípios, para aumentar as áreas
de habitação, inclusive em áreas mais próximas de margens de rios e lagos.
"Essa lei é
criticada, inclusive, porque ela não tem um marco temporal. A legislação
federal já permite a regularização, com a supressão da vegetação em área urbana
consolidada desde que, seja, por exemplo, para equipamentos, se for questão de
parque urbano, uma área que já está degradada", enumera.
"Se cada
município puder definir a metragem na área urbana já consolidada, isso é muito
negativo, porque daí não seria necessário nem usar todo aquele processo de
regularização que é previsto na lei federal. Se o município considerar que uma
APP é menor, ela não precisa mais passar por um processo de regularização, ela
já é uma área não protegida", conclui Nusdeo.
ENTENDA AS REGRAS DO
CÓDIGO FLORESTAL PARA RIOS E LAGOS
- As APPs (áreas de
preservação permanente) são definidas em zonas rurais e urbanas pela largura
das faixas marginais de cursos d'água naturais;
- As faixas marginais
variam de 30 a 500 metros, dependendo da largura do curso d'água, mas os
municípios têm flexibilidade para diminuir essa faixa desde mudança aprovada em
2021;
- Em áreas urbanas
consolidadas, a lei municipal pode definir faixas marginais distintas para as
APPs, considerando riscos de desastres e diretrizes de planejamento urbano;
- Também são
consideradas APPs as áreas no entorno de lagos, lagoas e reservatórios d'água
artificiais;
- Nascentes, olhos
d'água perenes, encostas íngremes, restingas, manguezais e bordas de tabuleiros
são incluídos como APPs;
- Áreas em altitude
superior a 1.800 metros e veredas também são consideradas APPs;
- Pequenas
propriedades rurais familiares podem plantar culturas temporárias em faixas
expostas durante a vazante, desde que não prejudiquem a vegetação nativa e a
fauna;
- Aquicultura é
permitida em imóveis rurais com práticas sustentáveis e licenciamento
ambiental.
• Prefeitura de Porto Alegre foi alertada
há seis anos sobre risco de falha no sistema contra enchente
A Prefeitura de Porto
Alegre foi alertada em 2018 do risco de falhas no sistema de bombeamento na
região central de Porto Alegre em caso de cheia do lago Guaíba acima da cota de
inundação, de 3 metros.
A informação constava
de um parecer técnico elaborado em setembro daquele ano por funcionários
municipais.
O centro histórico da
capital gaúcha, assim como boa parte do Rio Grande do Sul, está há duas semanas
debaixo d'água após serem atingidos por fortes chuvas. Segundo especialistas, o
sistema criado para impedir as enchentes não funcionou corretamente.
A reportagem teve
acesso ao documento assinado por dois engenheiros integrantes da gestão
municipal que apontaram a necessidade de rever o projeto de parte do sistema de
prevenção de cheias por possível "falha na proteção". Os técnicos se
referiam a duas casas de bombas projetadas para escoar a água da chuva do
centro da cidade para o Guaíba.
Na época que o parecer
foi feito, o prefeito era Nelson Marchezan Júnior (PSDB) --em 2021, ele foi
substituído pelo atual mandatário, Sebastião Melo (MDB).
Segundo os
engenheiros, a única barreira ao transbordamento de água captada abaixo do
piso, antes de ser despejada no lago, era a presença de uma tampa de ferro
comum, quando o necessário deveria ser um sistema estanque com vedação para
suportar a pressão em caso de cheias.
"A cota do piso é
3,30m, logo em situações onde o nível do Guaíba supere esta cota é provável que
ocorra extravasamento para a área interna da estação", diz trecho do
documento.
Em novembro do ano
passado, quando houve transbordamento do lago, um novo parecer foi enviado.
"Informamos que ocorreram grandes dificuldades na operação das unidades
citadas, quando o Guaíba passou da marca de 3,2 m, em especial quando passou de
3,4 m, ponto onde se observou o limite para o acionamento das bombas com
segurança", diz trecho do documento. A cota de inundação do lago é três
metros.
Em nota, o
Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), da gestão Melo disse que a
instalação de tampas herméticas nas casas de bombas 17 e 18 está em "fase
de viabilidade técnica para a elaboração do projeto".
Em entrevista coletiva
nesta terça, o prefeito acusou "pessoas de extrema esquerda" de
"montar uma narrativa mentirosa" sobre as enchentes em Porto Alegre.
O documento com o
alerta sobre as falhas no sistema da cidade foi divulgado pelo deputado
estadual Matheus Gomes (PSOL) em suas redes sociais na noite de segunda (20).
Melo disse também que politizar a questão não irá resolver o problema das
enchentes no município.
"O impacto
poderia ter sido muito menor", disse o deputado em relação às falhas no
sistema de bombeamento. Ele afirmou que irá pedir investigações sobre os
contratos ao Ministério Público do Rio Grande do Sul e ao Tribunal de Contas.
A paralisação no
sistema de bombeamento é apontada por engenheiros hídricos e ambientais como
agravantes para a inundação do centro histórico de Porto Alegre e dos bairros
Menino Deus, Cidade Baixa e Sarandi. Das 23 estações instaladas por toda a
cidade, 3 permaneceram em funcionamento durante os primeiros dias após as
fortes chuvas.
O mau funcionamento
das bombas ficou evidente já que as águas do Guaíba não se sobrepuseram ao
limite de seis metros, que corresponde à altura dos diques instalados na
cidade. A máxima registrada até o momento foi de 5,35 m em 4 de maio. Às 17h
desta terça-feira (21), a altura era de 4 metros.
Nos últimos sete anos,
duas gestões municipais não executaram a totalidade de verba direcionada a
contratos de manutenção do sistema de prevenção. O prefeito reconheceu que os investimentos
não foram suficientes.
As 23 estações de
bombeamento de águas pluviais, conhecidas como casas de bombas de drenagem,
abrigam reservatórios que servem como estruturas hidráulicas artificiais para
drenar a água da chuva da cidade para o Guaíba.
Construído na década
de 1960, o mecanismo anticheias da capital gaúcha é formado também por um muro
de 2,6 km de extensão, com 14 comportas de proteção.
A estrutura foi criada
para proteger a cidade de inundações já que cerca de 35% do território urbano
está três metros acima do nível do mar e, portanto, bem próximo da altura dos
27 córregos que passam pela cidade, além de trechos do rio Gravataí, lago Guaíba
e lagoa dos Patos.
Fonte: FolhaPress
Nenhum comentário:
Postar um comentário