sexta-feira, 24 de maio de 2024

Sob Bolsonaro, Brasil afrouxou regras para construir na margem de rios e lagos; entenda a legislação

O Brasil afrouxou regras para construções nas margens de rios e lagos durante o governo Bolsonaro. A medida permitiu o avanço do desmatamento de vegetações importantes, como destacam especialistas, para a mitigação de danos ambientais, principalmente diante de desastres envolvendo corpos hídricos.

Agora, em meio às enchentes que afetam mais de 400 municípios do Rio Grande do Sul, ambientalistas afirmam que a retirada ilegal de vegetação na beira de rios e lagos --um problema de longa data--, potencializado pelas regras menos rígidas nos últimos anos, reflete nas consequências atuais de desastres.

Para eles, se tivesse sido respeitada a legislação que regula a manutenção de vegetação na beira de rios e lagos, o estado gaúcho sofreria menos prejuízos na crise causada pelas chuvas.

De acordo com Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, rede com mais de cem entidades ambientalistas, as alterações nas legislações do Brasil reduziram a proteção em áreas sensíveis e trouxeram um retrocesso na condução da política diante dos efeitos extremos das mudanças climáticas.

Também advogada e ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) de 2016 a 2018, Araújo critica a aprovação, no Congresso Nacional, da lei nº 14.285/2021. Ela deu autonomia aos municípios para mudarem regras no Código Florestal a respeito das faixas de APPs (áreas de proteção permanente) no entorno de corpos hídricos.

A mudança na lei foi sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) no final de 2021. A nova regra não impõe limite mínimo nas construções às margens de rios ou lagos, ou seja, quem define são os municípios. Antes as edificações tinham limites a partir de 30 metros.

"Essa lei deu uma espécie de cheque em branco para os municípios reduzirem a proteção das matas ciliares em plena crise climática. E vemos, não só com as enchentes terríveis que afetaram o Rio Grande do Sul, que nós teremos problemas, na verdade, no Brasil inteiro", diz à reportagem.

A especialista lembra que o Observatório do Clima, junto a outras entidades, ingressou no STF (Supremo Tribunal Federal) com a ação direta de inconstitucionalidade nº 7.146, contra a lei aprovada em 2021. Na visão do grupo, os municípios não poderiam flexibilizar a legislação mais que os limites impostos pela União.

Rafael Tímbola, professor e engenheiro ambiental, explica que as matas ciliares fazem a proteção do canal do rio para que as margens não sejam prejudicadas, por exemplo, com erosões. Ele afirma ainda que a vegetação por si só já estrutura o solo e faz com que a calha do rio não sofra danos ao longo do tempo.

"A vegetação tem função de manutenção da biodiversidade, então tanto a flora quanto a fauna servem como corredor ecológico e como filtro para o escoamento das águas pluviais que, ao chegarem na mata ciliar, são filtradas, fazendo com que o sedimento fique retido e a água passe para o rio", conta.

Conhecido nas redes sociais como "perito ambiental", Tímbola afirma que a vegetação é fundamental para a proteção tanto do corpo hídrico quanto das pessoas que vivem no entorno, porque, além de fazer essa retenção de sedimentos, amortece a força da enchente.

O engenheiro ambiental avalia que algumas consequências das atuais inundações no Rio Grande do Sul serão inversíveis, já que porções de terra deslizaram e foram parar dentro dos rios e do lago Guaíba. Ele aponta que a catástrofe aumentou o tamanho da área de risco da região e que agora o plano de adaptação deve impedir o retorno de moradores a esses locais críticos.

"A bacia do rio Taquari foi altamente atingida em função de não haver mata ciliar na parte mais baixa. O rio ficou desprotegido e consequentemente as pessoas que estavam em volta também. Então o que a gente observa hoje é o descumprimento da legislação, e isso potencializa os efeitos no lago Guaíba", diz.

Ana Maria Nusdeo, professora de direito ambiental da USP (Universidade de São Paulo), destaca que, em meio ao avanço da crise climática, o processo de adaptação do poder público poderá se complicar mais, pois as áreas de risco, principalmente em zonas urbanas, terão uma expansão gradativa com acidentes cada vez mais frequentes.

Para a especialista, a lei 14.285/2021, alvo da ação de inconstitucionalidade, abriu caminhou para uma maior pressão do setor imobiliário sobre os municípios, para aumentar as áreas de habitação, inclusive em áreas mais próximas de margens de rios e lagos.

"Essa lei é criticada, inclusive, porque ela não tem um marco temporal. A legislação federal já permite a regularização, com a supressão da vegetação em área urbana consolidada desde que, seja, por exemplo, para equipamentos, se for questão de parque urbano, uma área que já está degradada", enumera.

"Se cada município puder definir a metragem na área urbana já consolidada, isso é muito negativo, porque daí não seria necessário nem usar todo aquele processo de regularização que é previsto na lei federal. Se o município considerar que uma APP é menor, ela não precisa mais passar por um processo de regularização, ela já é uma área não protegida", conclui Nusdeo.

ENTENDA AS REGRAS DO CÓDIGO FLORESTAL PARA RIOS E LAGOS

- As APPs (áreas de preservação permanente) são definidas em zonas rurais e urbanas pela largura das faixas marginais de cursos d'água naturais;

- As faixas marginais variam de 30 a 500 metros, dependendo da largura do curso d'água, mas os municípios têm flexibilidade para diminuir essa faixa desde mudança aprovada em 2021;

- Em áreas urbanas consolidadas, a lei municipal pode definir faixas marginais distintas para as APPs, considerando riscos de desastres e diretrizes de planejamento urbano;

- Também são consideradas APPs as áreas no entorno de lagos, lagoas e reservatórios d'água artificiais;

- Nascentes, olhos d'água perenes, encostas íngremes, restingas, manguezais e bordas de tabuleiros são incluídos como APPs;

- Áreas em altitude superior a 1.800 metros e veredas também são consideradas APPs;

- Pequenas propriedades rurais familiares podem plantar culturas temporárias em faixas expostas durante a vazante, desde que não prejudiquem a vegetação nativa e a fauna;

- Aquicultura é permitida em imóveis rurais com práticas sustentáveis e licenciamento ambiental.

 

•        Prefeitura de Porto Alegre foi alertada há seis anos sobre risco de falha no sistema contra enchente

A Prefeitura de Porto Alegre foi alertada em 2018 do risco de falhas no sistema de bombeamento na região central de Porto Alegre em caso de cheia do lago Guaíba acima da cota de inundação, de 3 metros.

A informação constava de um parecer técnico elaborado em setembro daquele ano por funcionários municipais.

O centro histórico da capital gaúcha, assim como boa parte do Rio Grande do Sul, está há duas semanas debaixo d'água após serem atingidos por fortes chuvas. Segundo especialistas, o sistema criado para impedir as enchentes não funcionou corretamente.

A reportagem teve acesso ao documento assinado por dois engenheiros integrantes da gestão municipal que apontaram a necessidade de rever o projeto de parte do sistema de prevenção de cheias por possível "falha na proteção". Os técnicos se referiam a duas casas de bombas projetadas para escoar a água da chuva do centro da cidade para o Guaíba.

Na época que o parecer foi feito, o prefeito era Nelson Marchezan Júnior (PSDB) --em 2021, ele foi substituído pelo atual mandatário, Sebastião Melo (MDB).

Segundo os engenheiros, a única barreira ao transbordamento de água captada abaixo do piso, antes de ser despejada no lago, era a presença de uma tampa de ferro comum, quando o necessário deveria ser um sistema estanque com vedação para suportar a pressão em caso de cheias.

"A cota do piso é 3,30m, logo em situações onde o nível do Guaíba supere esta cota é provável que ocorra extravasamento para a área interna da estação", diz trecho do documento.

Em novembro do ano passado, quando houve transbordamento do lago, um novo parecer foi enviado. "Informamos que ocorreram grandes dificuldades na operação das unidades citadas, quando o Guaíba passou da marca de 3,2 m, em especial quando passou de 3,4 m, ponto onde se observou o limite para o acionamento das bombas com segurança", diz trecho do documento. A cota de inundação do lago é três metros.

Em nota, o Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), da gestão Melo disse que a instalação de tampas herméticas nas casas de bombas 17 e 18 está em "fase de viabilidade técnica para a elaboração do projeto".

Em entrevista coletiva nesta terça, o prefeito acusou "pessoas de extrema esquerda" de "montar uma narrativa mentirosa" sobre as enchentes em Porto Alegre.

O documento com o alerta sobre as falhas no sistema da cidade foi divulgado pelo deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) em suas redes sociais na noite de segunda (20). Melo disse também que politizar a questão não irá resolver o problema das enchentes no município.

"O impacto poderia ter sido muito menor", disse o deputado em relação às falhas no sistema de bombeamento. Ele afirmou que irá pedir investigações sobre os contratos ao Ministério Público do Rio Grande do Sul e ao Tribunal de Contas.

A paralisação no sistema de bombeamento é apontada por engenheiros hídricos e ambientais como agravantes para a inundação do centro histórico de Porto Alegre e dos bairros Menino Deus, Cidade Baixa e Sarandi. Das 23 estações instaladas por toda a cidade, 3 permaneceram em funcionamento durante os primeiros dias após as fortes chuvas.

O mau funcionamento das bombas ficou evidente já que as águas do Guaíba não se sobrepuseram ao limite de seis metros, que corresponde à altura dos diques instalados na cidade. A máxima registrada até o momento foi de 5,35 m em 4 de maio. Às 17h desta terça-feira (21), a altura era de 4 metros.

Nos últimos sete anos, duas gestões municipais não executaram a totalidade de verba direcionada a contratos de manutenção do sistema de prevenção. O prefeito reconheceu que os investimentos não foram suficientes.

As 23 estações de bombeamento de águas pluviais, conhecidas como casas de bombas de drenagem, abrigam reservatórios que servem como estruturas hidráulicas artificiais para drenar a água da chuva da cidade para o Guaíba.

Construído na década de 1960, o mecanismo anticheias da capital gaúcha é formado também por um muro de 2,6 km de extensão, com 14 comportas de proteção.

A estrutura foi criada para proteger a cidade de inundações já que cerca de 35% do território urbano está três metros acima do nível do mar e, portanto, bem próximo da altura dos 27 córregos que passam pela cidade, além de trechos do rio Gravataí, lago Guaíba e lagoa dos Patos.

 

Fonte: FolhaPress

 

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