Sem ciência não há enfrentamento dos
desafios crescentes da mudança do clima, diz cientista do IPCC
Enquanto o Rio Grande
do Sul ainda contabiliza suas perdas – humanas e materiais –, cientistas
alertam para a necessidade de rever os planos de enfrentamento e adaptação às
mudanças climáticas.
Estudo publicado na última sexta-feira pelo ClimaMeter, iniciativa que provê análises rápidas sobre eventos
climáticos, indicou que as chuvas no sul do Brasil foram exacerbadas tanto pela
mudança no clima provocada pelo homem quanto por variabilidades
climáticas.
A mensagem, no
entanto, não é nova. Há décadas o corpo científico da ONU para as Mudanças
Climáticas, o IPCC, vem alertando para a exacerbação da gravidade dos eventos
climáticos.
((o))eco conversou com
Thelma Krug, cientista do IPCC que ocupou a vice-presidência do grupo entre
2015 e 2023, sobre os recentes acontecimentos climáticos no sul do país e sobre
a necessidade – e capacidade – brasileira para a adaptação.
<<<< Confira:
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O IPCC, em seus
relatórios, previu que fenômenos meteorológicos extremos se tornariam
recorrentes por volta de 2030 ou 2040. Temos visto, no entanto, que o 1,5ºC já
foi alcançado em algumas ocasiões, trazendo consigo consequências como esta que
o RS está vivendo. Isso significa que é tarde para uma adaptação?
Thelma
Krug – No relatório do Grupo de Trabalho I (Base
Física da Mudança do Clima – 2019), o IPCC indica que a estimativa de se
exceder 1.5ºC de aquecimento global (para um período de observação de 20 anos)
ocorre no início dos anos 2030, assumindo que não haja erupção vulcânica (que
resfria a temperatura). Neste relatório, a melhor estimativa para o aumento da
temperatura global de superfície causado pelo ser humano é de 1.07oC.
Esse valor já deve ter sido alcançado, mas somente será atualizado pelo IPCC quando
da publicação do relatório especial sobre Cidade e Mudança do Clima, em
aproximadamente 2 anos e meio. O que pode ocorrer é que, como o aquecimento não
se distribui uniformemente no planeta, algumas áreas (como a parte mais ao
norte do hemisfério norte) já podem estar experimentando um aumento da
temperatura média maior que 1.1oC.
Independente do
aumento, ainda há várias medidas de adaptação que podem ser implementadas para
reduzir os riscos futuros da mudança do clima. Há, sim, situações onde há
limites para adaptação, mas isso não implica que não haja potenciais opções
para diferentes situações.
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A situação no RS foi
causada por uma série de fatores, incluindo fatores meteorológicos (frente
fria, massa de ar). O quanto as mudanças climáticas contribuíram para o cenário
atual? Dá pra estimar a porcentagem de responsabilidade de eventos naturais, como
o El Niño, e a das mudanças climáticas?
Não é possível fazer
esse tipo de atribuição. Há evidência de que o aquecimento antrópico global
causou um aumento na frequência, intensidade e/ou quantidade de eventos de
forte precipitação em escala global, mas há menos evidências para associações
regionais. Em escalas regionais, a evidência da influência humana em
precipitação extrema é limitada, apesar de ter-se encontrado que a influência
humana foi uma causa significativa de eventos individuais de forte
precipitação. Desde o penúltimo relatório do IPCC (AR5), a atribuição de
eventos meteorológicos extremos emergiu como um campo crescente de pesquisa
climática, com crescente literatura, mas ainda é em geral difícil separar as
causas antrópicas da variabilidade natural em eventos meteorológicos extremos
individuais.
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O Brasil tem
enfrentando vários eventos extremos, como a seca na Amazônia e as enchentes no
sul do país. Esses eventos estão interconectados de alguma forma? Quais os
paralelos que a ciência pode traçar?
O Brasil tem uma
extensão continental e foi dividido no último relatório do IPCC em cinco
sub-regiões climáticas. Cada uma dessas sub-regiões é mais vulnerável a certos
eventos meteorológicos e climáticos. Por exemplo, a floresta amazônica foi
altamente impactada por secas sem precedentes e altas temperaturas em 1998,
2005, 2010, e 2015/2016, que são parcialmente atribuídas à mudança do clima. O
efeito combinado da mudança do uso da terra promovida pelo ser humano e a
mudança do clima aumenta a vulnerabilidade dos ecossistemas terrestres a
eventos climáticos extremos e incêndios. A região sub-climática que compreende
o Rio Grande do Sul é a única onde foi observado um aumento na tendência de
precipitação extrema e uma atribuição, embora com baixa confiança, da
influência humana neste aumento.
Esta sub-região tem
uma alta frequência de ocorrência de eventos convectivos intensos e severos e,
por conta disso, fortes ventos afetam o sul do Brasil. A costa do rio da Prata
é sujeita a inundações quando há fortes ventos vindos do Sudeste e vimos esses
ventos fortes também ocorrendo nesta semana tão dramática, contribuindo ainda
mais para retardar a volta à “normalidade”.
·
O RS foi avisado há
cerca de 10 anos das possibilidades de eventos como esse acontecerem. O que o
estado deveria ter feito, concretamente, para se preparar?
Um evento extremo da
natureza da que ocorreu no Rio Grande do Sul seria difícil de se antecipar.
Para um evento de forte precipitação, considerado como o maior já vivenciado
pelo Estado, até mesmo as possíveis ações de adaptação implementadas poderiam
não ser efetivas para evitar os impactos da enorme catástrofe que assolou
municípios inteiros. Creio que será uma oportunidade importante para se
repensar a reconstrução com base em possíveis cenários de riscos meteorológicos
e climáticos futuros.
O IPCC indica que uma
adaptação efetiva pode ser obtida ao enfrentar-se os déficits de
desenvolvimento pré-existentes, particularmente as necessidades e prioridades
de assentamentos e economias informais. Há urgência em assegurar-se que os
sistemas sociais estejam melhor preparados para responder aos riscos
relacionados ao clima e aumentar sua capacidade adaptativa (como indicado na
página 1748, capitulo 12 do relatório WG II).
Também de acordo com o
IPCC, a adaptação e mitigação efetivas dependem de * políticas e medidas em
múltiplas escalas, particularmente quando se trata do envolvimento das pessoas
mais expostas e vulneráveis… A participação de especialistas, comunidades e
cidadãos demonstrou ser efetiva. Mas o importante é não perder de vista que a
educação, conscientização e preparação de todos é hiper importante – alertas
precoces exigirão que todos sigam e ajam de acordo com as instruções. Nem
sempre isso ocorre… e ter também a preocupação de como agir com os animais
domésticos também…
·
É possível afirmar que
a situação no RS, ou a que a Amazônia viveu no final de 2023, com a seca
extrema, vai se repetir num futuro próximo?
À medida que o
aquecimento for aumentando, pode-se esperar cada vez mais riscos associados a
eventos meteorológicos e climáticos extremos. Eventos raros, como os que
acontecem a cada 50 ou 100 anos, passarão a ser mais frequentes, e as regiões
tropicais são projetadas a ser mais afetadas por alguns desses eventos.
Segundo o IPCC (GT II,
volume 1, página 13), o aquecimento global alcançando 1.5ºC em um futuro
próximo causará aumentos inevitáveis em múltiplos perigos climáticos e que
apresentam múltiplos riscos para ecossistemas e humanos (confiança muito alta).
O nível do risco dependerá de tendências de curto-prazo na vulnerabilidade,
exposição e desenvolvimento socioeconômico e adaptação ([o relatório em questão
reafirma o ponto citado com] alta confiança). Ações de curto prazo que limitam
o aquecimento global próximo a 1.5ºC reduziriam substancialmente as perdas e
danos projetados relacionados à mudança do clima em sistemas humano e natural,
comparado com níveis de aquecimento mais elevados, mas não podem eliminar todos
eles ([IPCC reafirma com] confiança muito alta).
Existem diferenças
regionais, e os riscos são maiores onde espécies e pessoas vivem próximas a
seus limites termais, ao longo da costa, próximo a rios, em encostas ou com
grandes vulnerabilidades. Muitos riscos são inevitáveis em curto-prazo,
independentemente dos cenários de emissões, mas muitos riscos podem ser
moderados com adaptação.
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O Brasil tem um Plano
de Adaptação à Mudança do Clima desde 2016. O quanto desse plano foi de fato
tirado do papel?
O Brasil está
desenvolvendo o AdaptaBrasil… mas veja, a adaptação para minimizar os riscos
pode ser feita sem muitos dados e modelos, mas outras requerem estudos,
principalmente a identificação de áreas vulneráveis que dependem da topografia,
tipo de solo, proximidade a áreas críticas, recorrência de eventos
meteorológicos e climáticos extremos, estudos socioeconômicos… ou seja, é uma
questão que exige estudos para que não sejam implementadas ações de adaptação
que sirvam para minimizar os riscos vivenciados no presente, sem projetar
adequadamente os potenciais riscos futuros. Há um conjunto de fatores que podem
permitir ou limitar o planejamento e implementação de opções de adaptação e
potencialmente sua efetividade. Isto inclui governança, financiamento,
conhecimento, assim como diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas
que influenciam a vontade individual ou coletiva e a capacidade para agir.
Conforme o IPCC (WG II, volume 3, página 2580), ‘as transições necessárias para
um desenvolvimento resiliente ao clima requer ser apoiada por mudanças radicais
em governança, desenvolvimento de conhecimento, aplicação de tecnologia,
financiamento e normas sociais’. E a questão é que não existe uma receita que
funcione para todos… mesmo um arcabouço nacional não é sempre suficiente para
motivar ação contra a mudança do clima em níveis inferiores, particularmente
quando o documento de orientação falha em formular claramente como deve ser
usado e operacionalizado em níveis inferiores de governança.
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O que o país precisa
fazer para enfrentar situações como a vivida no RS?
Ciência – o apoio à
geração de conhecimento é fundamental para que o país possa entender mais
profundamente suas necessidades, que são regionalmente específicas.
Comunicação, envolvendo todos os agentes possíveis – e para lidar com
negacionistas do clima, nada como invocar o princípio da precaução, ou seja, na
falta de conhecimento científico pleno, que isto não seja um impedimento para a
implementação de ações para prevenir e minimizar os riscos provocados por
eventos meteorológicos e climáticos. Envolvimento das comunidades no processo
decisório, das populações mais vulneráveis, os tornam também importante atores
na implementação de ações de adaptação e mitigação, a formação de comunidades
organizadas para apoiar ações locais de prevenção, e como envolver o setor
privado. Há tantos elementos de contorno que cito aqui somente alguns.
Por fim, o IPCC WG II,
volume 1, (página 26) reconhece que a adaptação não previne todas as perdas e
danos, mesmo com adaptação efetiva, já que esses se distribuem de forma
desigual entre as regiões e setores. Com o aumento do aquecimento global,
perdas e danos aumentam e tornam-se difíceis de evitar, principalmente nas
populações mais pobres e vulneráveis, aumentando a desigualdade.
·
Como membro do IPCC,
como você se sente ao ver situações como a que o RS enfrenta agora, sendo que o
estado foi alertado pela ciência há décadas?
Na avaliação da
extensa literatura feita pelos autores nomeados e selecionados para produzir os
relatórios especiais e de avaliação do IPCC, há muita evidência e concordância
sobre os impactos observados da mudança do clima e os riscos futuros projetados
a partir de modelos que se tornam cada vez mais robustos. Ao longo do tempo, as
evidências foram dando suporte para os resultados apresentados pelo IPCC – a
cada novo ciclo, o grau de confiança vai aumentado progressivamente, e a
velocidade com que o aumento global da temperatura está se manifestando nos
últimos 50 anos, vem fortalecendo a necessidade de ações concretas, o que não
tem sido plenamente exercitado no âmbito político. Um dos elementos que
dificulta a tomada de ação em nível local/regional, a meu ver, refere-se ao
fato de haver limitada informação local/regional, por conta de falta de dados
ou de literatura, ou pela não concordância entre a literatura existente. Por
isso, ressalto novamente a preocupação de investimentos na ciência, na pesquisa,
na capacitação – só assim o país, regional e localmente se prepara para ajudar
na tomada de decisão e fortalecer a governança em todos os níveis.
Entretanto, é claro
que a ciência existente já é suficiente para que os governos, em nível global,
avancem na implementação de medidas de mitigação muito mais ambiciosas do que
as atuais, e que apoiem os países em desenvolvimento através não só de financiamento,
mas também de capacitação e transferência de tecnologia, para que possam
contribuir no combate ao aquecimento, mesmo entendendo que suas contribuições
individuais são ínfimas frente à responsabilidade pelo aquecimento que está aí.
De qualquer forma, minimamente ou não, somos todos responsáveis…
Fonte: ((O))eco
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