Rentismo – um novo modo de produção?
Ladislau Dowbor, por
meio de um artigo que denominou de “A sociedade na era digital: um novo modo de
produção”, propôs que o rentismo, propiciado supostamente pelas novas
tecnologias da chamada “indústria 4.0” e alavancado pela financeirização, está
no fundamento de um novo modo de produção.
Enquanto o capitalismo
industrial havia apropriação do excedente e geração de mais capacidade
produtiva por meio do investimento, no novo modo produção em emergência há,
segundo ele, apropriação do excedente por meio do rentismo sem que ocorra uma
ampliação dessa capacidade, de modo correspondente à acumulação.
Eis o que diz:
“Trata-se de outro modo de produção em construção, em que a financeirização
supera a acumulação produtiva de capital, a exploração por meio do rentismo
supera a exploração por meio de baixos salários (mais-valia), inclusive porque
se desloca o próprio conceito de emprego”. (Dowbor, 2014).
“Os que comandam não
são mais os capitães da indústria, e sim os que controlam os algoritmos, e o
próprio dinheiro imaterial, no quadro da financeirização. Em termos de análise
científica, é hoje mais produtivo pensar no novo sistema, no rentismo que resulta
da revolução digital, do que acrescentar adjetivos ao conceito tradicional de
capitalismo”. (Dowbor, 2014).
Modo de produção está
sendo definido aqui com base na tecnologia de produção de um modo fenomenista.
Eis que se observa, sim, uma grande mudança nas formas de interação social – e,
assim, de interação econômica – na sociedade e na economia contemporâneas. E
essa transformação está advindo por meio das novas tecnologias da informação e
da comunicação. Segundo Ladislau Dowbor, ao propiciar novos modos de
apropriação de renda, ela está dando enorme suporte à financeirização e ao
rentismo, configurando processos que parecem se contrapor à acumulação e ao
lucro industriais. Será?
Ora, como a noção de
modo de produção vem de Marx e do marxismo, é preciso perguntar em primeiro
lugar como a noção de rentismo costuma ser pensada nessa tradição, que se vê
sobretudo como crítica da economia política. Assim se pode dar um passo no
processo de verificar se a reinvindicação teórica de Ladislau Dowbor faz
sentido.
• Rentismo no marxismo
Em O imperialismo –
fase superior do capitalismo (2002), Vladimir Lênin, baseando-se no livro
clássico de Rudolf Hilferding, apresentou mais uma vez o enlace do capital
bancário com o capital industrial como capital financeiro: a concentração da
produção produz monopólios, “a fusão ou junção dos bancos com a indústria: eis
a história do aparecimento do capital financeiro, assim como daquilo que este
conceito encerra” (Lênin, 2002, p. 36). E esse advento leva o capitalismo a uma
fase superior em que as relações entre as nações está marcada pelo
imperialismo.
É próprio do
capitalismo em geral separar a propriedade do capital da sua aplicação à
produção, separar o capital-dinheiro do capital industrial ou produtivo,
separar o rentista, que vive apenas dos rendimentos provenientes do
capital-dinheiro, do empresário e de todas as pessoas que participam
diretamente na gestão do capital. O imperialismo, ou domínio do capital
financeiro, é o capitalismo no seu grau superior, em que essa separação adquire
proporções imensas. O predomínio do capital financeiro sobre todas as demais
formas do capital implica o predomínio do rentista e da oligarquia financeira,
a situação destacada de uns quantos Estados de “poder” financeiro em relação a
todos os restantes. (Lênin, p. 176)
Em O capitalismo
financeiro hoje (2016), François Chesnais consagra mais uma ver o termo
rentista, denominando com esse termo não apenas o possuidor de capital que está
ausente da produção, mas o próprio capital como rentista.
O termo “capital
rentista” é considerado por muitos como politicamente carregado e, portanto, a
ser evitado. No entanto, numa perspectiva teórica marxista clássica (não
vulgar) e kaleckiana, nenhuma análise dos fundamentos da dominação social e
política do capital, em nível nacional ou internacional, pode simplesmente
deixar o termo de lado. A noção é central para as dimensões econômica, política
e social específicas para a teoria hobsoniana e marxista do imperialismo.
(Chesnais, 2016, p. 8).
Pode parecer estranho,
mas esse termo é empregado ocasionalmente em O capital nos livros II e III
apenas para indicar o capitalista que não se envolve com a produção de
mercadorias comuns, não financeiras. Eis aqui como o termo aparece no capítulo
32 do Livro III: “À medida que cresce a riqueza material, cresce a classe dos
capitalistas monetários; aumentam, por um lado, o número e a riqueza dos
capitalistas que se retiram, dos rentiers [rentistas]; por outro lado,
fomenta-se o sistema de crédito e, com isso, aumenta o número de banqueiros,
prestamistas, financistas etc. Como já expusemos, o desenvolvimento do capital
monetário disponível é acompanhado do aumento da massa dos papeis portadores de
juros, dos títulos públicos, ações etc.” (Marx, 2017, p. 568-9).
Em todos os três
autores consultados, que formam uma amostra pequena, mas bem representativa do
pensamento crítico de Marx ou que provém de Marx, o rentismo aparece como uma
consequência inerente do desenvolvimento do próprio capitalismo – não como uma
falha desse processo de desenvolvimento, sem engendrar também qualquer
tendência para a superação do capitalismo.
Lênin especialmente
associa explicitamente ao rentismo não apenas a uma fração de classe, mas a uma
fonte de poder político nacional e internacional que sustenta o imperialismo.
Ao mesmo tempo, o toma como um sintoma de uma suposta decomposição do capitalismo
que estaria em curso já no começo do século XX.
Nessa perspectiva
acima apresentada, o rentismo configura uma condição de vida de parte ou grande
parte da classe proprietária, mas que pode ir além dela. Em particular, ele
parece ter crescido muito com a expansão do que, desde Rudolf Hilferding no
começo do século XX, é chamado de capital financeiro. De qualquer modo, o
rentismo aparece aí apenas como decorrência do processo de diferenciação da
classe capitalista: são rentistas aqueles proprietários de capital que podem
gastar (consumir ou investir) sem funcionar como administrador na esfera da
produção de mercadorias. A sua renda pode provir de lucro, aluguel, juro,
dividendos etc.
Contudo, o rentismo
pode estar sendo alimentado por novas formas de obtenção de renda. Por isso, é
preciso perguntar se as novas tecnologias computacionais não estariam criando
relações novas e, assim, gerando rendas de novo tipo e em grande volume, criando
um processo de emergência. Ora, que atividades econômicas se tornaram possível
com as chamadas plataformas?
Eis aí o que fazem:
(a) fornecem serviços gratuitos, mas vendem publicidade; (b) fornecem serviços,
mas cobram por eles, às vezes ou muitas vezes monopolisticamente; (c)
internalizam mercados por meio de plataformas de venda de mercadorias; (d)
propiciam o desenvolvimento de novos processos industriais e a geração de
lucro; (e) criam uma logística para organizar trabalho disperso geográfica e/ou
temporalmente. Ora, sejam o sejam, essas formas não apresentam, em si e por si
mesmas, formas novas de ganhar dinheiro. São apenas formas de geração e/ou
captura de mais-valor na esfera da circulação por meio de transações com
mercadorias. Não demarcam, pois, um novo modo de produção, mesmo se precisam
ser mais bem compreendidas (Srnicek, 2017).
• Uma nova relação?
Como se sabe, o modo
de produção não pode ser pensado a partir dos meios de produção e da tecnologia
que nele são empregados, pois deve ser definido principalmente a partir da
relação social que o caracteriza – ainda que seja a unidade da base material e
da forma social. No caso do capitalismo, a relação que o define como tal é a
relação de capital, ou seja, a relação social entre o capital e o trabalho a
ele subsumido; o capitalista e o trabalhador entram aí apenas personificações
de um e outro, respectivamente. A forma por excelência dessa relação é
assalariamento, ainda que em seu desenvolvimento histórico, o capital tenha se
valido também de outras formas de subordinação do trabalho. Ademais, é certo
que relação pressupõe certo desenvolvimento das forças produtivas, o que – é
óbvio – depende das tecnologias incorporadas nos meios de produção, assim como
na estrutura das organizações.
Enquanto modo de
interagir – e, em especial, de produzir –, as novas tecnologias, em especial,
as plataformas, reconfiguram a sociabilidade em geral e, assim, também, a
sociabilidade mercantil. Por isso mesmo, é preciso perguntar: está surgindo,
com base nelas, uma nova relação social de produção? Ladislau Dowbor diz que
sim porque afirma que está se desenvolvendo agora uma relação social de
finanças e que ela se torna mais importante do que a relação de capital. É por
isso que diz que “a financeirização supera [agora] a acumulação produtiva de
capital”. De algum modo, que ainda não está claro, a acumulação D – D’ decolou
e agora supera de longe a acumulação D – M – D’.
Mas donde vem ∆D = D’–
D em cada um dos casos? No segundo caso, vem do mais-valor produzido pelo
trabalho assalariado, mas donde proviria o mais-valor no primeiro caso? Ora, em
geral, a valorização financeira D – D’ advém por meio do retorno a maior de um
empréstimo. Esse retorno pode ser puramente fictício (a dívida é simplesmente
rolada no vencimento); pode provir do mais-valor obtido em D – M – D’ por um
capitalista industrial ou comercial, ou ainda ele pode advir de parte da renda
de qualquer tomador de empréstimo. Contudo, como Ladislau Dowbor diz também que
“a exploração por meio do rentismo supera a exploração salarial”, ele deve
estar pensando em outra coisa. Que coisa?
Ele explica: “O que
aconteceu com o capitalismo de antanho? Como os novos mecanismos não cabem nos
conceitos tradicionais de análise do capitalismo industrial, acrescenta-se
qualificativos: Robert Reich fala sobre capitalismo corporativo, Mariana
Mazzucato sobre capitalismo extrativo, Grzegorz Konat sobre capitalismo real,
Joel Kotkin sobre neofeudalismo (…). Mas não basta acrescentar qualificativos:
é preciso pensar se se trata ainda de capitalismo”.
Ladislau Dowbor não
especifica qualquer nova relação sociais de produção capaz de definir o novo
modo de produção. De qualquer maneira, é preciso examinar tais “novos
mecanismos” de extração de valor de que fala. Será que eles não cabem mesmo nos
conceitos tradicionais? Foi visto já que o capitalismo não pode ser
identificado com o capitalismo industrial; eis que nunca existiu um capital
industrial puro que não se vale do capital de financiamento.
Mas isso não é tudo.
Desde o seu começo, subsiste nesse modo de produção uma tendência endógena para
a socialização capital, o que implica na expansão necessária do capital
financeiro, assim como da financeirização (Prado, 2024). Pois, além de subsumir
trabalho nas esferas da produção e da circulação, o capital se põe a si mesmo
como mercadoria, ou seja, nos termos de Marx, pode funcionar como capital
portador de juros.
• Um velho “mecanismo”
Para examinar esse
ponto é preciso apresentar as formas da relação entre capital e trabalho que
podem ocorrer no capitalismo; mas não apenas aquelas que lhe são intrínsecas,
mas também as formas de que pode se valer para subsistir e prosperar. Como se
sabe, a relação social de assalariamento por meio da qual o capital subsume –
formal e real, material e intelectualmente – o trabalho é central no modo de
produção capitalista. Mesmo se há variações na estrutura do contrato de
trabalho, o assalariamento requer sempre o aluguel (venda temporária) da força
de trabalho para que esta fique à disposição do capitalista para a execução de
determinadas tarefas, sob o seu comando.
Contudo, essa forma
não se apresenta como exclusiva na história do capitalismo porque as relações
sociais aí travadas são antes de tudo relações de mercadoria e de dinheiro.
Sendo assim, pode existir aí – e mesmo prosperar de modo limitado – o trabalho
por conta própria, resquício do artesanato, pois há certos serviços que escapam
do controle do capital porque os seus agentes não conseguem açambarcar os meios
de produção que lhes são necessários. De qualquer modo, ele dá suporte ao
capitalismo.
Por outro lado, o
capitalismo pode se valer de relações sociais pretéritas, tal como ocorreu no
escravismo colonial justamente como forma de acumulação primária (ou
primitiva). No capítulo sobre a “Acumulação primitiva” do Livro I de O capital
uma dessas combinações históricas é assim descrita: “enquanto introduzia a
escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo,
o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes
mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração (Marx, 2013, p.
538). Não é preciso entrar aqui na questão de saber se o escravismo colonial é
um modo de produção distinto, pois basta ver que ele estabelece uma relação
entre o capital e o trabalho que se vale da escravidão.
Contudo, isso não é
tudo. Há a possibilidade de que a subsunção do trabalho ao capital se dê não
pelo assalariamento, mas por meio do aluguel de um meio de produção, que é
imprescindível para a produção de determinado bem ou serviço, mas está
monopolizado por um capitalista. Marx, no capítulo sobre a “Maquinaria e a
grande indústria” do Livro I, registra o caso das fábricas-cottage, que, para
ele, representa uma de transição incompleta do artesanato para a manufatura. No
caso por ele relatado, um capitalista possui uma máquina – trata-se de fato de
uma produtora de vapor – de que muitos trabalhadores necessitam, o que os
obriga a se subordinarem ao capitalista proprietário e a pagar um aluguel por
sua utilização. É assim, diz ele, que “uma única máquina (…) pode novamente
servir de base à produção artesanal”; eis que, neste caso, “a pequena empresa
se liga à força motriz por meio do aluguel de vapor” (Marx, 2013, p. 351).
Nesse caso, os
trabalhadores permanecem independentes uns dos outros, mas – é preciso ver –
eles perdem parte da independência que têm aqueles que trabalham por conta
própria. Eis que se trata de uma forma de subsunção do trabalho ao capital que
não é coberta – é preciso ressaltar – pela categoria de “assalariamento”.
• Uma volta do passado
Tem-se trabalhadores
produtivos que produzem mercadoria e, assim, valor de uso e valor, e que
dependem dos mercados para que possam realizar o valor produzido, por meio da
metamorfose da mercadoria em dinheiro. Contudo, eles não se apropriam mais de
todo o valor que adicionam aos custos primários de produção já que tem de pagar
um aluguel para o proprietário da máquina – máquina essa que aparece como
suporte material de um capital que está posto como mercadoria-capital. Ora,
esse aluguel é o juro do capital emprestado, o qual se está implicitamente
somado ao custo de depreciação.
Ora, aquilo que no
caso relatado aparecia apenas como uma forma social do passado ganhou vida nova
com as plataformas, que nada mais são do que grandes sistemas de máquinas
processadoras de informações. Elas são agora meios de produção necessários para
a produção de muitos bens ou serviços na sociedade contemporânea; eis que
fornecem “serviços”, mediante cobrança de determinadas valores seja de pessoas
seja de organizações em geral. Como são estocadoras, transformadoras e
transmissoras de dados, as plataformas se tornam meios universais de interação
social seja no mundo da vida seja nos sistemas, no sistema econômico em
particular.
As plataformas de
trabalho permitem subordinar trabalhos diversos e dispersos ao capital, para
além do assalariamento. Pois, com elas, os trabalhos podem ser subsumidos ao
capital financeiramente; eis que, nesse caso, o capital comparece não como
capital, mas como mercadoria-capital. São trabalhos que produzem individual ou
coletivamente mercadoria, valor e valor de uso. Eles são conjugados por
intermédio da plataforma ou permanecem não conectados diretamente entre si. Do
mesmo modo que acontece com os trabalhadores em conta própria, os agora
considerados, suportes que são de mercadorias, têm de vendê-las para obter
renda para si próprios e para pagar os juros do capital emprestado, assim como
para repor os custos da produção.
Nesses casos, os
trabalhadores entram no negócio com a sua força de trabalho e com certos meios
de produção que eles próprios precisam possuir – como valores de uso que tem
valor, mas não como capital. O capital do proprietário da plataforma não atua
aqui como capital industrial, não organiza o trabalho por meio de uma empresa
fabril ou comercial, mas como mercadoria-capital, ou seja, como capital de
empréstimo ou, nos termos de Marx, como capital portador de juros.
Juro, como se sabe, é
o valor de aluguel do capital posto numa transação em que apenas o seu valor de
uso – mas não a propriedade – é de fato transacionada. É essa a forma do ganho
(aluguel de meios de produção representados em dinheiro) mesmo se a cobrança
atingir valores acima dos juros de mercado e até mesmo grandezas abusivas.
• Conclusão
Há uma nova força
produtiva: as tecnologias digitais de processamento da informação e da
comunicação. Há uma expansão da função do capital portador de juros. Há uma
mudança profunda nas formas de interação social. Contudo, não há um rentismo
estruturalmente novo, não há uma relação social de produção nova, não há um
“mecanismo” novo de extração de valor, logo – a fortiori – não há um novo modo
de produção.
Fonte: Por Eleutério
F. S. Prado em A Terra é Redonda
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