Renato Janine Ribeiro: ‘O legado de uma
década perdida’
Não sou um fã das
instituições, quero dizer: não considero que a chave para a democracia esteja
nelas. Na verdade, há duas vertentes para se pensar a política moderna – uma é
a da ação, outra a da instituição. Desenvolvi este tema em meu livro A
sociedade contra o social, de 2000, resumo-o rapidamente aqui.
Nicolau Maquiavel
rompe com a Idade Média e a ideia do “buon governo” ao liberar a ação do
príncipe das amarras morais do cristianismo. Mostra que a doutrina do rei bom,
porque cristão e moral, mascara a realidade de reis que foram bem-sucedidos
quando souberam descumprir os preceitos religiosos, sempre que necessário para
a busca de mais poder. Por isso, não é fortuito que Gramsci veja, no partido
revolucionário, o príncipe: é quem age sem estar preso ao velho mundo que está
morrendo, é quem ajuda a nascer o mundo novo, a ordem nova que é o nome da
organização que ele lidera antes de ser preso pelo fascismo.
Bernard Mandeville,
menos conhecido, duzentos anos depois do Príncipe escreve a Fábula das abelhas,
sustentando que vícios privados podem gerar benefícios públicos. A ganância,
vício e mesmo pecado, estimula o empreendedor a produzir melhor e mais barato –
esse, o grande exemplo. O capitalismo depende de se saber canalizar uma pulsão
(para usar a linguagem freudiana) amoral ou mesmo imoral para fins positivos
socialmente. É o que dá vigor às instituições, que fazem que a falta de bondade
(ou mesmo, a maldade) humana se canalize em boas direções. Montesquieu até diz
que Inquisição e monarquia absoluta se combinam bem na Espanha, porque cada uma
delas – más – limita a outra. É o fundamento para o equilíbrio dos três poderes
constitucionais.
Quem apoia revoluções
ou mudanças fortes – no limite, a utopia – vai valorizar a ação. Quem deseja,
não necessariamente o statu quo, mas uma evolução política mais lenta, vai de
instituições. Ora, desde que as revoluções ficaram na periferia do sistema mundial,
que elas deixaram de ocorrer nos países desenvolvidos, a via institucional se
consagrou.
Mas o que aconteceu
entre nós, no período que começa em novembro de 2014?
Foi um esvaziamento e
transferência de poder entre instituições. Costuma-se dizer, parafraseando-se
Aristóteles (“a natureza tem horror ao vácuo”), que na política, se houver
vácuo, ele é prontamente ocupado. Assim sucedeu entre nós.
Dilma Rousseff,
reeleita em 2014, imediatamente mudou sua política econômica, o que –
traduzindo em bom português – teve forte impacto na política social. (Política
econômica é como a direita chama o que a esquerda entende ser política social,
indo ao essencial). A base de esquerda decepcionou-se e deixou de apoiá-la
concretamente. Não promoveu sua destituição, mas também não se bateu em defesa
de seu mandato – basta ver o silêncio com que a esquerda viveu a votação do
impeachment, sem sublevação, sem indignação nas ruas.
Esvaziou-se o Poder
Executivo e, neste quadro, o Legislativo cresceu, sob a chefia de Eduardo Cunha
– que significativamente iniciou o golpe fazendo votar uma emenda
constitucional que dava, a cada parlamentar individualmente, pleno controle de
um porcentual do orçamento. Essa medida, a meu ver inconstitucional, faz que
esse valor, para se tornar lei, não precise do voto das Casas Legislativas nem
da sanção presidencial. É a privatização de uma parcela do orçamento – parcela
esta que desde então só cresceu.
Na sequência, uma
série de pautas-bomba diminuiu a possibilidade do Governo Federal controlar as
finanças e a economia. (O cenário ora se repete). O Congresso, e especialmente
Eduardo Cunha, se fortaleceu, até se chegar ao momento em que a oposição nele e
nas ruas, diante das denúncias de crimes que acabariam por leva-lo à cadeia,
saiu proclamando “somos todos Eduardos Cunhas”.
Mas esse
fortalecimento deixava de lado qualquer coisa que fosse positiva para o País.
Era negativo: impedia o Governo de governar. Impedia, antes mesmo do
impeachment. Mas não desenhava uma alternativa. Por isso, ficava um vazio – que
foi ocupado pelo terceiro poder, o único não eleito, aquele que dá estabilidade
ao sistema, aquele que é (me atrevo a dizer) mais instituição do que os outros,
justamente porque não provém do voto popular nem por este é renovado: o
Judiciário ou, no caso, o STF. Pois foi este que decidiu a tramitação do
impeachment, não foi o Congresso. (Lembrem a frase do político do MDB, “com o
Supremo, com tudo” – que incluía as Forças Armadas, é bom lembrar).
Finalmente, como o
próprio STF não podia governar, uma figura cresceu, no vácuo que tínhamos: um
juiz proativo, que não se continha diante das limitações legais ou éticas, e
que se pôs a condenar quem ele quisesse. Não à toa, tornou-se uma espécie de
favorito dos políticos; ajudou a eleição de Jair Bolsonaro e dele recebeu um
ministério importante. Se mais tarde desabou, foi por sua hybris, sua soberba –
até porque o governo que o ex-juiz apoiou foi o mesmo que enterrou a LavaJato,
que ele havia comandado.
Neste vazio, elegeu-se
o mais improvável, o mais inepto dos candidatos (não sei se o cabo Daciolo
seria pior, francamente…). E no governo ele se mostrou incapaz de tocar a
máquina. Fazia circo com suas motociatas, com suas falas mais adequadas ao
SuperPop do que ao Alvorada. O poder ficou entre o Legislativo e o Judiciário.
O primeiro, ele agradou vitaminando a privatização dos recursos do orçamento. O
segundo, na verdade, limitou suas aventuras.
Um dia se saberá –
talvez – por que o STF, que havia tomado as decisões que levaram Lula à cadeia,
não hesitando com isso em prender mais milhares de pessoas que não tinham
condenação transitada em julgado, mudou de ideia. Terá sido por ser o primeiro
a perceber o monstro que a desordem institucional havia parido? Bons
jornalistas, bons historiadores deveriam investigar esse momento obscuro de
nossa história. Mas continuemos.
Desde 2020, a par de
uma oposição bastante desorganizada, quase acéfala devido ao encarceramento de
Lula, foi o Supremo que conteve os piores excessos. Verdade que alguns
governadores – basicamente, os de oposição (no Nordeste) e o de São Paulo, João
Doria – lutaram pela vacina e pela redução da altíssima mortalidade causada
pela covid, enquanto o presidente e seus aliados, inclusive o governador do Rio
Grande do Sul, que hoje se apresenta como o nome mais fofo da direita, passavam
pano. Ah, honra se lhe faça: Ronaldo Caiado, o governador muito direitista de
Goiás, também apoiou a vacinação. O Judiciário conteve a marcha da insensatez,
do morticínio, ao reconhecer às autoridades locais o direito de limitar as
atividades que poderiam espraiar, ainda mais, a morte precoce.
No Judiciário, a chave
de defesa da democracia foi encabeçada por Alexandre de Moraes, com apoio de
alguns ministros decisivos, em especial Gilmar Mendes. Não foi uma atuação de
todos os ministros, havendo aqueles que se aproximaram de Jair Bolsonaro, por
pensamentos e palavras, pelo menos.
Aqui, o poder que
tinha sido o último a falar, no esvaziamento dos poderes em 2014-16, foi o
primeiro a se mobilizar. O Senado, é verdade, enquanto teve Renan Calheiros na
direção, também agiu – depois, não. A Câmara também, mas só enquanto Rodrigo
Maia a presidia. Depois, não.
Hoje, assistimos à
necessária luta do presidente Lula para recuperar os poderes que cabem ao Poder
Executivo. Quando lemos que 60% do orçamento da Saúde está capturado pelas
emendas parlamentares, vemos de que maneira o planejamento, mais que necessário
nessa área, foi sequestrado pela política de bairro. Mas essa luta é mais do
que árdua. O presidente da Câmara, Arthur Lira, visivelmente faz de tudo para
inviabilizar a recuperação do protagonismo político por quem é a única
autoridade eleita por convicção, num pleito que quase sempre passa por um
segundo turno, a fim de definir quem representa o País. Temos hoje um
quase-parlamentarismo, mas sem responsabilidade parlamentar.
É esta a disputa que
hoje vivemos. O Judiciário, que foi o poder de resistência, enquanto o
Executivo destruía o país, e o Congresso negociava com ele algum tipo de
vantagens, agora está próximo da Presidência, na tentativa de limitar o poder
centrífugo que ainda reside nas casas legislativas. Mas não é e não será fácil.
Não é fácil, até
porque aquela que seria a base de esquerda do Governo não entende, ou mais
provavelmente não quer entender, que nosso presidencialismo hoje é uma
aparência. Sim, vivemos numa sociedade que quer o regime presidencial.
(Parlamentarismo, aqui, ou é uma simpatia de intelectuais, como eu, boa para
conversar num papo-cabeça de bar – ou o recurso que a direita procura sacar
sempre que percebe que vai perder a disputa: como aconteceu em 1961, para
bloquear o presidente Jango, e várias vezes na década passada, para tirar o
PT).
Mas, como “o fraco rei
faz fraca a forte gente”, seis anos com dois presidentes que sobreviveram no
poder devido a acordos menores viciaram nosso tecido político. Nosso
presidencialismo é uma fachada – porém, a esquerda não percebe ou não quer
perceber isso, e por todos os males culpa o presidente. Seria ele que teria
imposto o arcabouço fiscal, seria ele que negaria aumentos salariais, seria ele
que não revogaria a reforma do ensino médio. Em outras palavras – e neste ponto
a esquerda é inteiramente representativa do senso comum de nossa sociedade –
tudo de bom que acontece, e tudo de ruim, é só do Presidente.
Fonte: A Terra é
Redonda
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