Quando enchentes terminarem, há risco de
seca severa no RS, diz ganhador de 'Nobel' da Alimentação
Tragédias como as
enchentes no Rio Grande do Sul não são um fenômeno isolado e foram vistas
recentemente em outras partes do mundo, como no Paquistão, observa Rattan Lal,
um dos mais reconhecidos cientistas de solo do mundo e ganhador do Prêmio
Mundial da Alimentação a láurea é considerada uma espécie de Nobel da alimentação e agricultura.
Ele também alerta que
as inundações potencializadas pelo aquecimento global, como as que afetaram a
região Sul, tendem a ser seguidas por secas severas, por causa da dificuldade
do solo em absorver água. Diz ainda que temos a responsabilidade de tornar a
agricultura uma solução para o problema.
"Quando as
inundações acabam e altas temperaturas acontecem, o solo não tem mais água.
Normalmente, a seca vem depois da inundação. Essa síndrome de seca-inundação é
um impacto das mudanças climáticas. É uma situação trágica", afirma à
Folha Lal, durante visita ao Brasil para se reuniur com chefes de Pesquisa
Agrícola do G20.
Hindu-americano, Lal é
cientista na Universidade de Ohio (EUA) e embaixador da boa vontade do IICA
(Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura). Foi um dos
cientistas que o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas)
reconheceu como tendo contribuído para o prêmio Nobel da Paz dado ao instituto
em 2007.
LEIA A ENTREVISTA:
<<< O que a
tragédia no Rio Grande do Sul nos diz em termos de consequências das mudanças
climáticas?
Rattan Lal - Minha
solidariedade às famílias e pessoas que estão sofrendo com essa tragédia, que
se deve principalmente às mudanças climáticas, mas também à mudança no uso da
terra.
Essa tragédia no Rio
Grande do Sul aconteceu em outras partes do mundo, como no Paquistão no ano
passado, quando um terço do país sofreu com inundações. Na Índia, a mesma
situação. O impacto das ações humanas em relação ao equilíbrio hídrico foi
agravado pelas mudanças climáticas.
Infelizmente, onde
quer que haja uma inundação, eventualmente também haverá seca. Porque o solo
não está absorvendo água. Quando as inundações acabam e altas temperaturas
acontecem, o solo não tem mais água. Normalmente, a seca vem depois da
inundação. Essa síndrome de seca-inundação é um impacto das mudanças
climáticas. É uma situação trágica.
<<< Foi o que
aconteceu em outros eventos extremos, como no Paquistão?
R. L. - A mesma coisa.
Quando as chuvas se vão, dois ou três meses depois, haverá uma seca severa no
mesmo lugar.
<<< Estamos
falando sobre o Rio Grande do Sul, um estado que tem tradição agrícola. Qual é
o papel do uso histórico do solo nesse tipo de evento climático extremo?
R. L. - As mudanças
climáticas têm gerado eventos extremos com frequência muito maior. Eventos
hidrológicos extremos, que costumavam acontecer uma vez a cada cem anos, agora
estão acontecendo uma vez a cada dez anos. Isso é chamado de período de
retorno.
Então, o período de
retorno de tempestades aumentou, tanto a intensidade quanto a frequência. A
agricultura e a urbanização intensa e pesada desempenharam um papel e
intensificaram muito mais a tragédia.
Mas a agricultura pode
ser uma solução, se feita corretamente. Deixar o solo absolutamente nu com a
superfície arada causa uma tragédia muito maior. Quando o solo tem cultivo de
cobertura [que pode ser com folhas ou serragem], o impacto das chuvas é
suavizado. A agricultura de conservação com cultivo de cobertura, rotação
múltipla, agrofloresta é a solução.
<<< Pensando
ainda no Rio Grande do Sul, é possível realizar uma agricultura resiliente a
eventos climáticos extremos?
R. L. - Existem vários
componentes disso, como a agricultura de conservação, sem arar, deixar os
resíduos da cultura no solo; fazer o cultivo de cobertura, para que o solo
esteja sempre protegido. É através do solo coberto que a água irá infiltrar,
não criar uma inundação. Isso é uma agricultura resiliente ao clima.
Isso significa que os
agricultores terão que deixar o resíduo no solo. É mais caro. Outro foco deve
ser aumentar a eficiência de fertilizantes, isso é agricultura resiliente ao
clima. Escolher espécies, o sorgo é tolerante à seca. O milheto é tolerante à
seca. O arroz não é. O trigo não é.
<<< O sr.
visitou o Brasil pela primeira vez em 1975. Quais mudanças observou na
agricultura brasileira nesses quase 50 anos?
R. L. - Entre 1975 e
agora, a produção da agricultura brasileira subiu feito um foguete. É uma
grande história de sucesso. O Brasil era um importador de alimentos, agora é um
exportador mundial. É uma potência da agricultura. A agricultura do cerrado se tornou
algo que todos comentam.
Como cientista do solo
e agrônomo, sinto orgulho da agricultura no Brasil. Os solos do cerrado que
visitamos naquela época eram estéreis, sem produção, tinham baixo pH, baixo
fósforo, baixo cálcio, sem magnésio. Todos pensavam que esses solos eram improdutivos.
Mas colocaram cal e fósforo, e a produção aumentou tremendamente.
<<< O sr.
destaca no seu trabalho a importância das pequenas propriedades. No Brasil, o
avanço da agricultura nas últimas décadas é associado às grandes propriedades e
indústrias agrícolas. Qual o papel das pequenas?
R. L. - Nós temos
globalmente cerca de 500 milhões de pequenos produtores. Eles têm menos de dois
hectares cada, mas produzem um terço do total de grãos para alimentação no
mundo. É a agricultura de larga escala, como a do cerrado e do Meio-Oeste dos
EUA, que é orientada para a exportação. Os produtores de pequena escala
produzem para suas famílias, e um pouco do excedente para a venda. Não exportam
muito. Apesar disso, a agricultura brasileira pode ser aplicada aos pequenos
produtores.
É uma questão de se
eles têm os recursos. Por exemplo, pedimos para deixar cobertura da colheita no
solo para que haja uma boa infiltração de água. Eles retiram a cobertura da
colheita para alimentar o gado. Eles não têm uma semeadora que possa plantar em
um campo não arado.
Mencionei recentemente
a agricultura de carbono. Se os pequenos agricultores puderem fazer uma
agricultura semelhante, e forem compensados com créditos de carbono, eles podem
produzir o mesmo que o cerrado.
<<< Qual o
principal desafio hoje para a segurança alimentar no mundo?
R. L. - O mundo hoje
enfrenta vários desafios: aquecimento global, degradação do solo, escassez de
água, desequilíbrio hídrico, emissão de gases de efeito estufa, pobreza,
insegurança alimentar, muito uso de energia. A agricultura sendo responsável
por um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa. Estes são os
desafios que o mundo enfrenta, e a agricultura é uma parte importante disso.
A prioridade futura
não é tanto produzir mais, já estamos produzindo o suficiente. [É preciso]
reduzir o desperdício. Um terço de toda a comida produzida globalmente é
desperdiçado. Se de alguma forma pudermos evitar o desperdício de alimentos,
não precisaremos produzir mais.
A segunda parte é:
podemos produzir mais com menos? Menos fertilizantes, menos pesticidas, menos
arado, menos uso de energia.
Outro desafio é que
nossa agricultura utiliza 70% de toda a água usada por humanos. Países como o
Brasil usam irrigação por aspersão na maioria das vezes. Alguns países usam
irrigação por sulcos, alguns usam por inundação.
Deveríamos usar
irrigação e fertilização por gotejamento. O pequeno tubo de plástico enterrado
no solo, com furos, e a água e o fertilizante saem desses furos, gota a gota.
Isso economiza muita água. Temos que economizar água com o sistema de
gotejamento, que não é muito conveniente, mas a tecnologia está disponível.
Na conservação do
solo, não arar. Então, essas são algumas das melhorias na agricultura que
precisam acontecer. Eu honestamente acredito que mudanças significativas
acontecerão [na agricultura] entre agora e 2050.
<<< Quais
mudanças acha que acontecerão?
R. L. - Agricultura de
precisão, inteligência artificial, plantas se comunicando com o agricultor
através de sinais moleculares [identificados por sensores]. Mudanças
significativas acontecerão em grandes cidades.
Até 2100, o número de
megacidades [com mais de 10 milhões de habitantes] será próximo de 90. Uma
cidade de 50 milhões de pessoas será comum, e vai requerer 30 mil toneladas de
alimentos por dia. A agricultura urbana se tornará muito importante. Agricultura
em estufas, grandes estruturas de estufas.
As cidades terão
arranhas-céus feitos de vidro para cultivar alimentos. Usando aeroponia,
hidroponia, cultura de areia. Então, tomate, pepino, alface, aipo, morango, a
mercearia verde acontecerá sem solo. Essa cultura sem solo se tornará mais
comum. O planejamento urbano terá produção de alimentos dentro dos limites da
cidade.
<<< É
acessível para países em desenvolvimento ou pobres?
R. L. - A agricultura
urbana será o futuro. Singapura está produzindo muitos de seus alimentos verdes
dentro dos limites da cidade.
<<< No
Brasil, a atividade agrícola muitas vezes é retratada como a vilã da crise
climática por causa do desmatamento.
R. L. - Bem, a
agricultura tem sido um problema. Desde o início, há 10 mil anos, a quantidade
total de carbono emitido pela agricultura é de cerca de 550, 600 gigatoneladas.
Mas, de 1750 até agora, o total da queima dos combustíveis fósseis é de cerca
de 450 gigatoneladas.
A agricultura tem que
ser uma solução porque não podemos viver sem ela. Estou um pouco preocupado que
se dê muita publicidade à agricultura como um problema. Eu respondo a isso:
sim, mas se acha que ela está causando esse problema, deixe de comer. Não comer
não é uma solução. Todo mundo precisa comer.
Então, se pudermos
reduzir o desperdício, se pudermos adotar plantas geneticamente modificadas as pessoas têm objeções sobre
isso, eu não tenho. Produzir mais
com menos, isso será a agricultura. E
devolver alguma terra para a natureza. Como parte da floresta amazônica que foi degradada.
Os Himalaias que foram
desmatados. Quando as pessoas dizem que a África deveria aumentar sua área de
terra [cultivada], não! Seu rendimento por hectare é tão baixo. Eles deveriam
melhorar o rendimento por hectare.
<<< Em quais
partes do globo a experiência brasileira na agricultura poderia ser replicada?
R. L. - Eu vivi na
África por 20 anos. Acho que o Brasil, Índia e a África eram muito semelhantes
nos anos 1960. Se você olhar para o rendimento total das safras e o uso de
fertilizantes e irrigação, todos eram muito iguais. Mas a África permaneceu a
mesma. Então, eu acho que é onde a cooperação Sul-Sul, onde a experiência de
Brasil, Índia e China poderiam trabalhar juntas e mostrar à África o que pode
ser feito.
A outra parte é que a
comida de melhor qualidade é realmente um problema. Que tal cultivar mais
feijões? Grão-de-bico, feijão-caupi, feijão-mungo e feijão-azuki. Há mais
proteína neles. A agricultura não está focando na qualidade nutricional, na
comida de alta qualidade. Esse é o ponto.
<<< No
Brasil, existe uma crítica sobre uso intensivo de pesticidas.
R. L. - Quando o solo
está saudável, tem alto teor de matéria orgânica e uma biodiversidade muito
alta. Assim como pessoas saudáveis são mais imunes a doenças, quando o solo
está saudável, ele é imune a doenças. O uso de pesticidas pode ser muito menor.
Precisamos deles, mas
não tanto. Quando você tem dor de cabeça, toma uma aspirina. Mas [tomar] cem
aspirinas não é certo. Da mesma forma, os fertilizantes devem ser usados como
remédio.
RAIO-X
Rattan Lal, 79
Nascido no Punjab,
imigrou com a família para a Índia após a criação do Paquistão. É considerado
uma das maiores autoridades em ciências do solo do mundo, tendo recebido o
Prêmio Mundial da Alimentação em 2020. É professor da Universidade de Ohio, nos
Estados Unidos, e atua como embaixador da boa vontade do Instituto
Interamericano de Cooperação para a Agricultura.
Fonte: FolhaPress
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