domingo, 26 de maio de 2024

Antony Lerman: ‘Instrumentalização do antissemitismo - um gerador eterno de privilégios’

Milhares de israelenses se juntaram em Jerusalém dia 28 de janeiro para uma conferência da extrema-direita. Lá, exigia-se o reassentamento de Gaza e a transferência da população do território, descrita de maneira desonesta a partir do eufemismo “uma maneira legal de migrá-los voluntariamente.”

Os principais convidados eram líderes governistas proeminentes e extremistas, incluindo Itamar Ben-Gvir, o ministro da segurança nacional (Otzma Yehudit), e o ministro das finanças Bezalel Smotrich (Tkuma). Seu plano, proposto por membros do governo de extrema-direita desde os primeiros dias de ataques em Gaza, pode ser chamado de limpeza étnica.

Qualquer palestino que ficasse em Gaza seria submetido à extensão territorial do apartheid sancionado pelo estado dominante em Israel pré-1967, na Cisjordânia pós-1967 e nas Colinas de Golã. Esse plano genocida foi saudado pelo ministro do Turismo do Likud Haim Katz como “uma oportunidade de reconstruir e expandir o território israelense”.

·        “Viés antissemita

Por isso, houve grande rejeição da decisão de 26 de janeiro da Corte Internacional de Justiça (CIJ) da ONU de que “Israel deve tomar medidas para prevenir a violência genocida por suas forças armadas” e “prevenir e punir” o incitamento ao genocídio. Também foi um endosso à maré de acusações de tratamento antissemita com Israel a partir da decisão da CIJ. Os primeiros a se manifestarem foram representantes do governo israelense, que declararam que a Corte teve um “viés antissemita”.

Líderes do J7, o US Jewish Communities’ Task Force Against Antisemitism [Força-Tarefa das Comunidades Judaicas dos EUA Contra o Antissemitismo], concordaram. O editor da Jewish Chronicle, Jake Wallis Simons, escreveu ao Telegraph que a CIJ foi “capturada pela propaganda antissemita”. O uso do antissemitismo instrumentalizado para desviar críticas às respostas de Israel aos ataques do Hamas em 7 de outubro nos assentamentos e unidades do exército israelense era evidente, mesmo quando as notícias das atrocidades ainda estavam surgindo.

Por isso, a reação à decisão da CIJ não foi surpreendente. Afinal, este é um gerador eterno de privilégios, com décadas de existência: usar as experiências passadas de perseguição aos judeus para desqualificar críticas e gerar simpatia pela ideia de um Estado judeu.

·        Ataque de propaganda

Como analisei em meu livro Whatever Happened to Antisemitism?, essa estratégia é adaptável a praticamente qualquer violação dos direitos humanos dos palestinos por parte de Israel. Ela foi usada no dia 7 para justificar o que levou o Hamas aos ataques, e desde então para minar e desviar qualquer demanda por um cessar-fogo imediato.

Dentro de horas, em algo que pareceu um ataque coordenado de propaganda, funcionários e membros do governo israelense estavam chamando os ataques de “pogroms” e nomeando este como o “dia mais mortal para os judeus desde o Holocausto”. Essas narrativas continuam influenciando o discurso público na compreensão dos eventos de 7 de outubro.

Pogrom” é uma palavra russa que se refere a ataques violentos contra judeus no Império Russo e em outros países no século XIX. Eles foram perpetrados por um opressor poderoso contra uma vítima fraca e vulnerável. Ainda que tenha sido grotesco, o ataque do Hamas foi precisamente o oposto: “uma demonstração sem precedentes de violência anticolonial”, escreveu Tareq Baconi em um comentário para Al Shabaka, o Centro Internacional de Estudos Palestinos. Este foi um ataque a um alvo simbólico do regime racista antipalestino: o poderoso Estado israelense, responsável pela subjugação da população de Gaza.

·        “O truque que sempre usamos

Quanto à comparação com o Holocausto, tal linguagem apocalíptica distorce e trivializa o genocídio nazista dos judeus. Shulamit Aloni, a líder do então partido mais à esquerda de Israel, Meretz, na década de 1990, descreveu tal comparação como “um truque, que sempre usamos. Quando alguém da Europa critica Israel, nós evocamos o Holocausto”.

Se compararmos a instrumentalização do antissemitismo naquela época com suas dimensões hoje, nós vemos que é cada vez mais significativo o papel do Holocausto nesse jogo de whitewashing do apartheid israelense, com justificativas à opressão e à limpeza étnica dos palestinos. Isso foi possível por meio da Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto, e sua definição de antissemitismo adotada em 2016, conhecida pelo acrônimo da organização: IHRA.

Independentemente da definição em si, quem questionaria algo disseminado por uma organização com “Lembrança do Holocausto” em seu nome? – especialmente quando os promotores da definição praticamente decretaram que era um sacrilégio questioná-la. No entanto, a maioria dos exemplos de antissemitismo trazidos na definição servem para justificar a ausência de direitos dos palestinos de falar sobre suas experiências, e não servem para proteger os judeus do verdadeiro antissemitismo.

·        Comportamento protegido

Mesmo antes de 7 de outubro, as narrativas comuns de antissemitismo serviam para associar os palestinos quase que exclusivamente ao terrorismo. Como hoje “palestino” e “terrorista do Hamas” são frequentemente vistos como sinônimos, sugerir que os palestinos possam merecer direitos, soberania e solidariedade é apoiar a violência contra os judeus, segundo a jornalista e acadêmica Natasha Roth-Rowland. Isso “coloca toda a violência estatal israelense – limpeza étnica, encarceramento em massa, assassinato extrajudicial, roubo de terras – como uma forma de comportamento tolerável, porque é realizado por judeus”. Ao redefinir antissemitismo como antissionismo, o antissemitismo não se trata mais de “quem odeia os judeus”, mas de “quem os judeus odeiam”.

·        Antissionismo

O sucesso da estratégia de instrumentalização se ancora em uma visão distorcida e aparelhada da história judaica: a noção de que, de um lado, o antissemitismo é eterno e imutável e, de outro, o antissionismo é o “novo antissemitismo”. Em ambas, as organizações anti-antissemitismo incentivam as pessoas a acreditar que nossa aniquilação pelo antissemitismo está sempre iminente.

A primeira, compreensão eternista do passado judaico, uma visão lacrimosa e triste, ignora as formas contingentes e historicamente específicas do antissemitismo. Quanto ao antissionismo, nada poderia ser mais judaico. Os judeus foram os primeiros antissionistas, e assim permaneceram em maioria até a Segunda Guerra Mundial. São centenas de milhares de judeus antissionistas até hoje.

No entanto, é interessante para Israel cultivar a visão de que os judeus em todo lugar são igual e eternamente vulneráveis, mesmo que o papel do sionismo tivesse sido de acabar com o ódio aos judeus. Quando tantos parecem abertos a ceder às reivindicações duvidosas de um antissemitismo em constante crescimento, por que não continuar instrumentalizando o discurso do Holocausto e dos pogroms como se fossem perigos claros e presentes?

Para os líderes israelenses, cada confronto militar e cada batalha com o Hamas ou o Hezbollah são em nome do “povo judeu”, ainda que não distinguir o estado de Israel e os judeus em todo o mundo seja tido como uma crença antissemita, de acordo com a IHRA.

Ephraim Mirvis, o rabino-chefe da British United Synagogue, certamente não leu o roteiro quando elogiou os soldados israelenses pelo genocídio em Gaza em nome da erradicação do antissemitismo, chamando-os de “nossos incríveis soldados heróicos”. Não poderia estar mais claro que a instrumentalização do antissemitismo é um perigo claro e presente até mesmo para os judeus que não clamam por direitos iguais para todos do rio ao mar.

 

¨      O agonizante fim do sionismo. Por Samuel Kilstajn

O sionismo, que criou Benjamin Netanyahu, está chegando ao fim, mesmo que estejamos munidos apenas com canetas. Durante o pessah, a páscoa judaica que comemora o êxodo do Egito, Noemi Klein defendeu o êxodo do sionismo, o fim do centenário sionismo em prol do milenar judaísmo.

Em Operação Shylock, em 1993, o ano do acordo de Oslo, Philip Roth já propunha o diasporismo, o êxodo dos judeus europeus da Palestina. Vale a pena citar na íntegra a passagem em que o cínico agente sênior do Mossad afirma, “O que nós fizemos com os palestinos é perverso. Nós os tiramos de suas casas e os oprimimos. Nós os expulsamos, espancamos, torturamos e assassinamos. O Estado Judeu, desde que nasceu, se dedicou a eliminar a presença palestina na Palestina histórica e a desapropriar a terra de um povo nativo. Os palestinos foram expulsos, dispersos e dominados pelos judeus. Para criar um Estado Judeu, nós traímos nossa história – fizemos com os palestinos o que os cristãos fizeram conosco: nós os transformamos sistematicamente no desprezado e subjugado Outro, privando-os, desta forma, de sua condição humana. Independentemente do terrorismo ou dos terroristas, ou da estupidez política de Yasser Arafat, a verdade é esta: como povo, os palestinos são totalmente inocentes, e como povo os judeus são totalmente culpados.”

O diasporismo proposto em Operação Shylock é baseado em uma iniciativa empreendida por dezenas de milhares de judeus que abandonaram Israel no início dos anos 1950. Este êxodo judeu da “Terra Prometida” foi descrito por Ori Yehudai em Leaving Zion: Jewish emigration from Palestine and Israel after World War II.

A banalidade do mal, expressão cunhada por Hannah Arendt, ilustra a utilização de meios abomináveis para justificar fins ideológicos, duvidosos e suspeitos. Ideais fundamentalistas, competição pelo poder e a agonia da decadência têm embalado o mundo em recorrentes catástrofes.

Estamos sendo assaltados por imagens em cores e em tempo real do extermínio do povo palestino. Utilizando-se de um falso discurso amparado por uma pretensa inteligência artificial que detectaria terroristas, Israel aproveita para bombardear blocos inteiros de prédios residenciais, escolas e hospitais, “para que os israelenses possam dormir em paz”.

A Faixa de Gaza, no imaginário coletivo (via mídia), já virou sinônimo de inferno. A ofensiva israelense em Gaza é justificada pelos governos dos países ocidentais como um meio de defender a civilização da “barbárie” oriental que inclui o Islã, a China e a Rússia. Cercada pelo conforto, opulência e aparente segurança, a sociedade ocidental, apática, cínica e mesquinha, assiste ao massacre em curso como se estivesse assistindo a programas de entretenimento, maldizendo qualquer reação “sem precedentes” vinda do oriente.

Há pessoas que não acreditam que haja diferença entre sionistas de direita e sionistas de esquerda. Como não? Claro que há diferença, a direita sionista não é hipócrita. Os sionistas de esquerda acham que a violência contra os palestinos começou com a direita no poder e têm bloqueios para reconhecer que a violência contra os palestinos foi administrada desde sempre pelos governos trabalhistas de esquerda, que anunciavam direitos iguais a judeus e não-judeus, enquanto massacravam, expulsavam e tomavam as terras dos palestinos.

Poucas ainda são as vozes não alinhadas à grande mídia e ao grande capital, que se levantam contra a barbárie ocidental na Palestina. Just Vision, criado em 2003, veicula entrevistas e produz filmes que denunciam a violência dos israelenses e a desumanização dos palestinos. +972 Magazine, criado em 2011, dedicado a um jornalismo independente e cidadão, publica reportagens, artigos e entrevistas. Chamada Local, criado em 2014, é um site em hebraico dedicado ao jornalismo ativista que preza a liberdade de informação e expressão.

De acordo com Primo Levi, Israel foi um erro em termos históricos, um país artificial que não deu certo. O agonizante fim do sionismo pode ser dimensionado pelo recorrente uso redobrado da força física quando ela não atinge os seus objetivos esperados, o que constitui uma total traição ao humanismo, pacifismo e internacionalismo, valores milenares dos judeus da diáspora.

De acordo com Noemi Klein, nosso judaísmo não pode ser protegido por furiosos militares israelenses, pois tudo o que os militares fazem é semear tristeza e colher ódio – inclusive contra nós, como judeus.

 

Fonte: Blog da Boitempo/A Terra é Redonda

 

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