Antony Lerman: ‘Instrumentalização do
antissemitismo - um gerador eterno de privilégios’
Milhares de
israelenses se juntaram em Jerusalém dia 28 de janeiro para uma conferência da
extrema-direita. Lá, exigia-se o reassentamento de Gaza e a transferência da
população do território, descrita de maneira desonesta a partir do eufemismo
“uma maneira legal de migrá-los voluntariamente.”
Os principais
convidados eram líderes governistas proeminentes e extremistas, incluindo
Itamar Ben-Gvir, o ministro da segurança nacional (Otzma Yehudit), e o ministro
das finanças Bezalel Smotrich (Tkuma). Seu plano, proposto por membros do
governo de extrema-direita desde os primeiros dias de ataques em Gaza, pode ser
chamado de limpeza étnica.
Qualquer palestino que
ficasse em Gaza seria submetido à extensão territorial do apartheid sancionado
pelo estado dominante em Israel pré-1967, na Cisjordânia pós-1967 e nas Colinas
de Golã. Esse plano genocida foi saudado pelo ministro do Turismo do Likud Haim
Katz como “uma oportunidade de reconstruir e expandir o território israelense”.
·
“Viés antissemita“
Por isso, houve grande
rejeição da decisão de 26 de janeiro da Corte Internacional de Justiça (CIJ) da
ONU de que “Israel deve tomar medidas para prevenir a violência genocida por
suas forças armadas” e “prevenir e punir” o incitamento ao genocídio. Também
foi um endosso à maré de acusações de tratamento antissemita com Israel a
partir da decisão da CIJ. Os primeiros a se manifestarem foram representantes
do governo israelense, que declararam que a Corte teve um “viés antissemita”.
Líderes do J7, o US
Jewish Communities’ Task Force Against Antisemitism [Força-Tarefa das
Comunidades Judaicas dos EUA Contra o Antissemitismo], concordaram. O editor
da Jewish Chronicle, Jake Wallis Simons, escreveu ao Telegraph que
a CIJ foi “capturada pela propaganda antissemita”. O uso do antissemitismo
instrumentalizado para desviar críticas às respostas de Israel aos ataques do
Hamas em 7 de outubro nos assentamentos e unidades do exército israelense era
evidente, mesmo quando as notícias das atrocidades ainda estavam surgindo.
Por isso, a reação à
decisão da CIJ não foi surpreendente. Afinal, este é um gerador eterno de
privilégios, com décadas de existência: usar as experiências passadas de
perseguição aos judeus para desqualificar críticas e gerar simpatia pela ideia
de um Estado judeu.
·
Ataque de propaganda
Como analisei em meu
livro Whatever Happened to Antisemitism?, essa estratégia é
adaptável a praticamente qualquer violação dos direitos humanos dos palestinos
por parte de Israel. Ela foi usada no dia 7 para justificar o que levou o Hamas
aos ataques, e desde então para minar e desviar qualquer demanda por um cessar-fogo
imediato.
Dentro de horas, em
algo que pareceu um ataque coordenado de propaganda, funcionários e membros do
governo israelense estavam chamando os ataques de “pogroms” e nomeando
este como o “dia mais mortal para os judeus desde o Holocausto”. Essas
narrativas continuam influenciando o discurso público na compreensão dos
eventos de 7 de outubro.
“Pogrom” é uma
palavra russa que se refere a ataques violentos contra judeus no Império Russo
e em outros países no século XIX. Eles foram perpetrados por um opressor
poderoso contra uma vítima fraca e vulnerável. Ainda que tenha sido grotesco, o
ataque do Hamas foi precisamente o oposto: “uma demonstração sem precedentes de
violência anticolonial”, escreveu Tareq Baconi em um comentário para Al
Shabaka, o Centro Internacional de Estudos Palestinos. Este foi um ataque a um
alvo simbólico do regime racista antipalestino: o poderoso Estado israelense,
responsável pela subjugação da população de Gaza.
·
“O truque que sempre
usamos“
Quanto à comparação
com o Holocausto, tal linguagem apocalíptica distorce e trivializa o genocídio
nazista dos judeus. Shulamit Aloni, a líder do então partido mais à esquerda de
Israel, Meretz, na década de 1990, descreveu tal comparação como “um truque,
que sempre usamos. Quando alguém da Europa critica Israel, nós evocamos o
Holocausto”.
Se compararmos a
instrumentalização do antissemitismo naquela época com suas dimensões hoje, nós
vemos que é cada vez mais significativo o papel do Holocausto nesse jogo
de whitewashing do apartheid israelense, com justificativas à
opressão e à limpeza étnica dos palestinos. Isso foi possível por meio da
Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto, e sua definição de
antissemitismo adotada em 2016, conhecida pelo acrônimo da organização: IHRA.
Independentemente da
definição em si, quem questionaria algo disseminado por uma organização com
“Lembrança do Holocausto” em seu nome? – especialmente quando os promotores da
definição praticamente decretaram que era um sacrilégio questioná-la. No entanto,
a maioria dos exemplos de antissemitismo trazidos na definição servem para
justificar a ausência de direitos dos palestinos de falar sobre suas
experiências, e não servem para proteger os judeus do verdadeiro
antissemitismo.
·
Comportamento
protegido
Mesmo antes de 7 de
outubro, as narrativas comuns de antissemitismo serviam para associar os
palestinos quase que exclusivamente ao terrorismo. Como hoje “palestino” e
“terrorista do Hamas” são frequentemente vistos como sinônimos, sugerir que os
palestinos possam merecer direitos, soberania e solidariedade é apoiar a
violência contra os judeus, segundo a jornalista e acadêmica Natasha
Roth-Rowland. Isso “coloca toda a violência estatal israelense – limpeza
étnica, encarceramento em massa, assassinato extrajudicial, roubo de terras –
como uma forma de comportamento tolerável, porque é realizado por judeus”. Ao
redefinir antissemitismo como antissionismo, o antissemitismo não se trata mais
de “quem odeia os judeus”, mas de “quem os judeus odeiam”.
·
Antissionismo
O sucesso da
estratégia de instrumentalização se ancora em uma visão distorcida e aparelhada
da história judaica: a noção de que, de um lado, o antissemitismo é eterno e
imutável e, de outro, o antissionismo é o “novo antissemitismo”. Em ambas, as
organizações anti-antissemitismo incentivam as pessoas a acreditar que nossa
aniquilação pelo antissemitismo está sempre iminente.
A primeira,
compreensão eternista do passado judaico, uma visão lacrimosa e triste, ignora
as formas contingentes e historicamente específicas do antissemitismo. Quanto
ao antissionismo, nada poderia ser mais judaico. Os judeus foram os primeiros
antissionistas, e assim permaneceram em maioria até a Segunda Guerra Mundial.
São centenas de milhares de judeus antissionistas até hoje.
No entanto, é
interessante para Israel cultivar a visão de que os judeus em todo lugar são
igual e eternamente vulneráveis, mesmo que o papel do sionismo tivesse sido de
acabar com o ódio aos judeus. Quando tantos parecem abertos a ceder às
reivindicações duvidosas de um antissemitismo em constante crescimento, por que
não continuar instrumentalizando o discurso do Holocausto e dos pogroms como
se fossem perigos claros e presentes?
Para os líderes
israelenses, cada confronto militar e cada batalha com o Hamas ou o Hezbollah
são em nome do “povo judeu”, ainda que não distinguir o estado de Israel e os
judeus em todo o mundo seja tido como uma crença antissemita, de acordo com a
IHRA.
Ephraim Mirvis, o
rabino-chefe da British United Synagogue, certamente não leu o roteiro quando
elogiou os soldados israelenses pelo genocídio em Gaza em nome da erradicação
do antissemitismo, chamando-os de “nossos incríveis soldados heróicos”. Não
poderia estar mais claro que a instrumentalização do antissemitismo é um perigo
claro e presente até mesmo para os judeus que não clamam por direitos iguais
para todos do rio ao mar.
¨
O agonizante fim do
sionismo. Por Samuel Kilstajn
O sionismo, que criou
Benjamin Netanyahu, está chegando ao fim, mesmo que estejamos munidos apenas
com canetas. Durante o pessah, a páscoa judaica que comemora o
êxodo do Egito, Noemi Klein defendeu o êxodo do sionismo, o fim do centenário
sionismo em prol do milenar judaísmo.
Em Operação
Shylock, em 1993, o ano do acordo de Oslo, Philip Roth já propunha o
diasporismo, o êxodo dos judeus europeus da Palestina. Vale a pena citar na
íntegra a passagem em que o cínico agente sênior do Mossad afirma, “O que nós
fizemos com os palestinos é perverso. Nós os tiramos de suas casas e os
oprimimos. Nós os expulsamos, espancamos, torturamos e assassinamos. O Estado
Judeu, desde que nasceu, se dedicou a eliminar a presença palestina na
Palestina histórica e a desapropriar a terra de um povo nativo. Os palestinos
foram expulsos, dispersos e dominados pelos judeus. Para criar um Estado Judeu,
nós traímos nossa história – fizemos com os palestinos o que os cristãos
fizeram conosco: nós os transformamos sistematicamente no desprezado e subjugado
Outro, privando-os, desta forma, de sua condição humana. Independentemente do
terrorismo ou dos terroristas, ou da estupidez política de Yasser Arafat, a
verdade é esta: como povo, os palestinos são totalmente inocentes, e como povo
os judeus são totalmente culpados.”
O diasporismo proposto
em Operação Shylock é baseado em uma iniciativa empreendida
por dezenas de milhares de judeus que abandonaram Israel no início dos anos
1950. Este êxodo judeu da “Terra Prometida” foi descrito por Ori Yehudai
em Leaving Zion: Jewish emigration from Palestine and Israel after
World War II.
A banalidade do mal,
expressão cunhada por Hannah Arendt, ilustra a utilização de meios abomináveis
para justificar fins ideológicos, duvidosos e suspeitos. Ideais
fundamentalistas, competição pelo poder e a agonia da decadência têm embalado o
mundo em recorrentes catástrofes.
Estamos sendo
assaltados por imagens em cores e em tempo real do extermínio do povo
palestino. Utilizando-se de um falso discurso amparado por uma pretensa
inteligência artificial que detectaria terroristas, Israel aproveita para
bombardear blocos inteiros de prédios residenciais, escolas e hospitais, “para
que os israelenses possam dormir em paz”.
A Faixa de Gaza, no
imaginário coletivo (via mídia), já virou sinônimo de inferno. A ofensiva
israelense em Gaza é justificada pelos governos dos países ocidentais como um
meio de defender a civilização da “barbárie” oriental que inclui o Islã, a
China e a Rússia. Cercada pelo conforto, opulência e aparente segurança, a
sociedade ocidental, apática, cínica e mesquinha, assiste ao massacre em curso
como se estivesse assistindo a programas de entretenimento, maldizendo qualquer
reação “sem precedentes” vinda do oriente.
Há pessoas que não
acreditam que haja diferença entre sionistas de direita e sionistas de
esquerda. Como não? Claro que há diferença, a direita sionista não é hipócrita.
Os sionistas de esquerda acham que a violência contra os palestinos começou com
a direita no poder e têm bloqueios para reconhecer que a violência contra os
palestinos foi administrada desde sempre pelos governos trabalhistas de
esquerda, que anunciavam direitos iguais a judeus e não-judeus, enquanto
massacravam, expulsavam e tomavam as terras dos palestinos.
Poucas ainda são as
vozes não alinhadas à grande mídia e ao grande capital, que se levantam contra
a barbárie ocidental na Palestina. Just Vision, criado em 2003, veicula entrevistas e produz filmes que
denunciam a violência dos israelenses e a desumanização dos palestinos. +972 Magazine, criado
em 2011, dedicado a um jornalismo independente e cidadão, publica reportagens,
artigos e entrevistas. Chamada Local, criado em 2014, é um site em hebraico dedicado ao jornalismo
ativista que preza a liberdade de informação e expressão.
De acordo com Primo
Levi, Israel foi um erro em termos históricos, um país artificial que não deu
certo. O agonizante fim do sionismo pode ser dimensionado pelo recorrente uso
redobrado da força física quando ela não atinge os seus objetivos esperados, o
que constitui uma total traição ao humanismo, pacifismo e internacionalismo,
valores milenares dos judeus da diáspora.
De acordo com Noemi
Klein, nosso judaísmo não pode ser protegido por furiosos militares
israelenses, pois tudo o que os militares fazem é semear tristeza e colher ódio
– inclusive contra nós, como judeus.
Fonte: Blog da
Boitempo/A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário