Para fazer o SUS funcionar até debaixo
d’água
O Rio Grande do Sul
segue submerso e sua população tenta reorganizar suas atividades cotidianas em
meio a um cenário apocalíptico para o qual ninguém está preparado. Escolas,
comércios, indústria, cuidados domésticos, vendas, entregas, tudo em algum
momento precisa retornar. Na saúde, a situação é até mais exigente e seus
serviços não podem deixar de funcionar nem em situações extremas.
Nesta entrevista,
Paula Suseli, diretora da Fundação Municipal de Saúde, órgão público que
administra o SUS de São Leopoldo, conta como tem sido o dia a dia por lá. A
cidade fica na região metropolitana de Porto Alegre, e perdeu 11 unidades
básicas de saúde – de modo que sua atenção primária foi quase toda transferida
para os 115 abrigos onde se refugiam milhares de desalojados e se atende a
população em geral.
“Em muitos locais do
Rio Grande do Sul, hospitais inteiros foram evacuados, bem como unidades de
saúde e farmácias ficaram embaixo d’agua. Ainda não temos dados sobre o quanto
afetou a saúde pública da população, porém, sabemos que a dificuldade de acesso
aos serviços de saúde, medicamentos, exposição à água contaminada e adoecimento
psíquico daqueles que tiveram de deixar suas casas ou perderam familiares e
animais de estimação ocasionará um aumento da prevalência de doenças e também
dos agravos”, sintetizou.
Por uma pequena dose
de sorte, o hospital principal da cidade não foi afetado. De toda forma, uma
nova estratégia de atenção à saúde precisa ser pensada, quase do zero e com
enormes adversidades materiais. Inclusive porque parte dos profissionais de
saúde está ilhada e tenta tirar suas próprias casas dos escombros.
“Estamos com um
projeto de pensar ações para além das curativas, mas também de promoção e
prevenção de saúde, a fim de evitar intervenções médica desnecessárias devido à
grande quantidade de profissionais de saúde do município e também voluntários,
que comparecem para atendimento da população nos abrigos. Para a assistência à
saúde dos alojamentos menores, montamos equipes volantes compostas por uma
médica, um enfermeiro e um técnico de enfermagem”, explica.
Na conversa, a gestora
de saúde conta que aos poucos a presença da Força Nacional do SUS, organizada
pelo Ministério da Saúde, se faz sentir no território, mas a ação coletiva, por
dentro e fora das instituições, é fundamental para o imenso esforço de reerguimento
do estado e seus serviços essenciais.
Além disso, Paula
Suseli alerta que o estado gaúcho se verá diante de uma inevitável onda de
problemas relativos à saúde mental, num contexto onde o trauma coletivo ainda
está longe de ser medido e pode perdurar anos, e marcar para sempre quem viveu
a catástrofe climática.
“Um cenário que já
estava diferente após a pandemia de covid, agora tem a tendência de ser muito
mais desafiador. Se não houver um investimento social grande, que inclua uma
política pública de habitação e de segurança alimentar, teremos sérios
problemas a médio e longo prazo”, explica.
Sua afirmação indica
que não se resolverá nenhuma questão de saúde individual e coletiva sem uma
forte agenda de investimentos públicos, com vistas a recuperação material e
psicológica de todos. Para além de acordar definitivamente para a emergência
climática, o RS tem diante de si não só a oportunidade, mas a necessidade de
reorientar a agenda pública para o bem estar social e coletivo.
“Vamos precisar
futuramente olhar para os territórios afetados e verificar novamente a
necessidade da população. Não há dúvidas que as referências que tínhamos para
planejar os serviços e a assistência à saúde anteriormente foram todas
alteradas. Como faremos? Não temos essa resposta. Agora há que se olhar para a
saúde coletiva a partir da intersetorialidade, não tem outro caminho”, alertou.
Ao final da
entrevista, Outra Saúde também compartilha depoimentos pessoais de duas
profissionais de saúde sobre estes dias trágicos, cobertos por uma rotina de
trabalho praticamente incessante. O primeiro, da própria Paula Suseli; o
segundo, de Savannah Carvalho, responsável técnica de enfermagem da Fundação
Municipal de Saúde de São Leopoldo.
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Leia a entrevista e os depoimentos a seguir.
• Primeiramente, qual foi o impacto da
tragédia climática na estrutura de saúde da sua cidade e do estado?
O impacto foi enorme.
Em muitos locais do Rio Grande do Sul hospitais inteiros foram evacuados, bem
como unidades de saúde e farmácias ficaram embaixo d’agua. Ainda não temos
dados sobre o quanto afetou a saúde pública da população, porém, sabemos que a dificuldade
de acesso aos serviços de saúde, medicamentos, exposição à água contaminada e
adoecimento psíquico daqueles que tiveram de deixar suas casas ou perderam
familiares e animais de estimação ocasionará um aumento da prevalência de
doenças e também dos agravos.
• Como esses serviços de saúde estão
funcionando neste momento?
Em São Leopoldo, temos
11 unidades de saúde fechadas no município devido à enchente. A farmácia
municipal e do estado também foram afetadas pela enchente, tendo medicações e
insumos perdidos. O Serviço de atendimento especializado (SAE) e o Centro de
Saúde Capilé retomaram suas atividades, no dia 21, depois de 18 dias fechados
devido à falta de energia e alagamentos no local. Muitos insumos e medicações
foram perdidos, assim, tivemos de construir uma farmácia do zero, a partir de
doações de empresas farmacêuticas e também de pessoa física.
Nos alojamentos com
maior número de pessoas (centro de eventos para mil pessoas; Bigornão, 600
pessoas; Unisinos, 2 mil pessoas) estamos com equipe de saúde (médico,
enfermeiro e técnico de enfermagem) fixos 12 horas por dia, incluindo finais de
semana e feriados.
Em alguns alojamentos
não temos equipe completa, porém, temos profissionais de referência para mapear
as necessidades de saúde nos locais e identificar a população com mais
vulnerabilidade (crianças, idosos, gestantes e pessoas com comorbidades). No
momento, temos referência da saúde em 11 abrigos na cidade de São Leopoldo de
um total de 115 alojamentos.
No momento, estamos
com um projeto de pensar ações para além das curativas, mas também de promoção
e prevenção de saúde, a fim de evitar intervenções médicas desnecessárias
devido à grande quantidade de profissionais de saúde do município e também
voluntários, que comparecem para atendimento da população nos abrigos.
Para a assistência à
saúde dos alojamentos menores, montamos equipes volantes compostas por uma
médica, um enfermeiro e um técnico de enfermagem. Eles se deslocam com uma
caixa de medicações e kit de sinais vitais para realizar os atendimentos nos
alojamentos. As rotas são feitas diariamente e organizadas por proximidade.
Também temos contato via WhatsApp com referências da saúde e referências de
voluntários que ficam nos abrigos, para nos acessar caso tenha alguma situação
que a equipe de saúde precisa avaliar. No momento, o município conta com 7
equipes volantes.
A Unidade de Pronto
Atendimento ficou fechada durante 12 dias devido à falta de energia elétrica,
retomando suas atividades na última sexta, 17. O hospital referência do
município não foi afetado pela enchente, permanecendo com os atendimentos.
Na medida do possível,
estamos nos organizando para reabertura das unidades de saúde: temos 13
unidades de saúde em funcionamento, também dois hospitais de campanha, com o
auxílio do exército e da equipe da força nacional do SUS. Atualmente, temos
cerca de 14 mil pessoas abrigadas e mais de 100 abrigos.
• Quais são as principais demandas para o
SUS neste momento? Infecções e doenças associadas a enchentes já estão em alta
na população?
No momento, temos
surtos de gastroenterite, escabiose e pediculose nos abrigos. Agora com as
mudanças de temperatura, começam gripes e resfriados. O município enfrentava
uma epidemia de dengue, ainda temos casos, mas com menor intensidade com a
queda da temperatura. Já temos registros de leptospirose, porém, nada
impactante no momento.
• O que esperar no aspecto da saúde
mental? Teremos uma epidemia de longa duração neste âmbito?
Acredito que sim. O
trauma da perda de suas histórias, bem como de familiares, é algo que irá
deixar marcas importantes. Também devemos considerar o trauma gerado pela
velocidade dos alagamentos em alguns locais, além da demora para os resgates.
Além de toda a desestabilização de quem já era acompanhado pelas equipes de
Saúde Mental.
Nossos serviços da
Rede de Assistência Psicossocial (RAPS) foram todos afetados; dos três CAPS do
município, esta semana retomamos apenas um, com equipes mistas (público adulto,
Álcool-Drogas e infanto-juvenil). Um cenário que já estava diferente após a pandemia
de covid, agora tem a tendência de ser muito mais desafiador.
• Há risco iminente de colapso do sistema
de saúde gaúcho?
Sim. Se não houver um
investimento social grande, que inclua uma política pública de habitação e de
segurança alimentar, teremos sérios problemas a médio e longo prazo.
• Como reconstruir tudo, com priorização
da saúde coletiva?
Precisamos reconstruir
as unidades de saúde e os serviços de atendimento especializados afetados.
Precisamos de investimento do governo federal e da sociedade civil como um
todo. Vamos precisar futuramente olhar para os territórios afetados e verificar
novamente a necessidade da população. Não há dúvidas que as referências que
tínhamos para planejar os serviços e a assistência à saúde anteriormente foram
todas alteradas.
Como faremos? Não
temos essa resposta. Agora há que se olhar para a saúde coletiva a partir da
intersetorialidade, não tem outro caminho. E este é um desafio enorme.
<<<<< A
seguir, confira os relatos pessoais de Paula Suseli e Savannah Carvalho a
respeito do dia a dia no serviço de saúde de São Leopoldo, após a destruição e
os alagamentos:
<><> Paula
Suseli
Nós começamos a
mobilizar as equipes de saúde desde a organização do primeiro abrigo,
inicialmente deslocando a base da Unidade de Suporte Básico do SAMU para este
local.
Posteriormente, foi
aberto o Ginásio Municipal, local que já havia abrigado as vítimas do ciclone
em 2023, que após menos de dois dias foi evacuado e também alagou
completamente.
Neste dia (sábado) eu
estava no local até às 24h, havia cerca de 500 pessoas abrigadas, quando o
prefeito determinou que todas as equipes que estavam em resgates externos
retornassem para efetivar a evacuação. Neste mesmo prédio funciona a Farmácia
municipal e estadual, com todo o seu estoque. Todos entraram em pânico, foi uma
sensação de incredulidade, ninguém imaginava que a água extravasaria o dique e
pensamos que era uma medida de precaução. Em menos de 24 horas tudo mudou. No
dia seguinte a água avançou pelos bairros e centro, abrigos começaram a se
multiplicar, pessoas em desespero.
E nós seguimos
trabalhando cerca de 20 horas por dia, com a força de trabalho e com as
ferramentas que tínhamos. O SAMU começou a atuar nos resgates e as necessidades
de saúde dos abrigados naquele momento eram muito relacionadas ao pânico e
ansiedade gerados em toda a população.
Hoje, a intensidade
continua, cada dia é um planejamento novo, mas as necessidades têm mudado e o
mais difícil é não saber quando retornaremos à “normalidade”.
Nossa força de
trabalho foi muito afetada e tivemos redução drástica no efetivo.
Nossa primeira
diretriz foi atender às necessidades imediatas dos desabrigados. Montamos
equipes fixas em três abrigos. Segundo, abrir serviços que não foram afetados.
Terceiro, facilitar a comunicação com os abrigos a partir do número 24h e com a
comunidade a partir do ZAP da saúde.
<><>
Savannah Carvalho, Responsável Técnica de Enfermagem da Fundação Municipal de
Saúde
Posso falar da rotina
de trabalho na gestão municipal como responsável técnica da enfermagem, a qual
está sendo muito exaustiva. Desde o dia 3 de maio, foram poucos dias em casa.
Nos poucos momentos em casa, permaneço conectada ao celular, ajustando escala e
respondendo os trabalhadores. Temos pouca vida pessoal, atividade física e
lazer ficaram em um segundo plano.
Devido à dificuldade
de mobilidade da minha cidade até São Leopoldo, tive que ficar em um alojamento
na cidade, longe da minha família e com pouca rotina. A imprevisibilidade tomou
conta dos dias e nunca sabemos as demandas que podem surgir.
O peso da
responsabilidade em organizar os trabalhadores diariamente e a carga de
trabalho é intensa diante da impossibilidade de alguns colegas de trabalho
estarem no município, devido ao alagamento de suas casas. Todos estão
fragilizados e a gestão acaba sendo o suporte para muitos, ou seja, preciso
estar suficientemente forte para amparar aqueles que precisam.
Do ponto de vista
material, não tive nenhum prejuízo, portanto, assumo mais responsabilidade para
que outros colegas de trabalho que foram afetados pela enchente possam se
reorganizar. Na questão emocional me vejo cansada e por vezes mais estressada
que o habitual.
Fonte: Por Paula
Suseli em entrevista a Gabriel Brito, para Outra Saúde
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