Os laços da Brasil Paralelo, que nega crise
climática, na vice-prefeitura de Porto Alegre
A vice-prefeitura da
capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, está nas mãos de um dos primeiros
participantes, professor e apresentador da Brasil Paralelo – produtora que
é uma das maiores fontes no país de conteúdo desinformativo sobre diversos temas
científicos, inclusive, as emergências climáticas.
Trata-se de Ricardo
Gomes, que chegou ao cargo pelo MDB e depois se filiou ao PL, partido de Jair
Bolsonaro. Desde 2020 como vice-prefeito de Sebastião Melo, do MDB, Gomes
conseguiu seu primeiro cargo legislativo em 2016, quando foi eleito vereador
pelo PP.
Segundo a Agência
Pública apurou, o maior gasto da campanha de Gomes na época foi com a
própria Brasil Paralelo. Ele pagou R$ 20 mil por serviços de “construção de
marca e planejamento de conteúdo” para o CNPJ da Brasil Paralelo, que naquela
época tinha a razão social LTH Higgs Ltda. No dia 8 de maio, Gomes chegou a
usar um boné da Brasil Paralelo em uma transmissão ao vivo durante o trabalho de resgate de vítimas das
enchentes no Rio Grande do Sul.
<><> Por
que isso importa?
- A Brasil Paralelo é uma das principais produtoras de
conteúdo no Brasil que questionam que as emergências climáticas atuais
estão diretamente relacionadas à atividade humana, sobretudo ao
aquecimento global impulsionado pela queima de combustíveis fósseis.
- O vice-prefeito de Porto Alegre, cidade afetada pelas
enchentes no Rio Grande do Sul, tem grandes ligações com a BP.
Gomes já anunciou que
não deve concorrer para permanecer no cargo nas eleições deste ano. A sua
sucessão, contudo, chegou a ser cogitada para outra pessoa próxima à Brasil
Paralelo: Claudio Nudelman Goldsztein, empresário do setor da construção,
membro da família Goldsztein, chegou a ser cortejado como possível novo vice
junto a Melo. A construtora Cyrela Goldsztein, braço gaúcho da Cyrela,
frequentemente apontada como
uma das maiores do país, foi fundada pelo seu irmão, Fernando.
Claudio tem atuado há
anos para influenciar políticas públicas no estado através da organização que
fundou, o Instituto Cultural Floresta (ICF). No dia 6 de maio, em meio às
inundações que atingem o Rio Grande do Sul, o ICF postou um vídeo no
qual Goldsztein faz propaganda da compra de antenas da Starlink – empresa do
bilionário Elon Musk – feita pelo ICF para ajudar no trabalho de resgate de
desabrigados. A compra dessas antenas tornou-se um dos assuntos mais comentados
da rede social X/Twitter, do próprio Musk, que recebeu os agradecimentos
públicos do ICF, como mostrou reportagem do Intercept. A chegada das antenas foi compartilhada
junto à desinformação de que nenhuma outra rede de internet estaria funcionando
no estado. O governador Eduardo Leite (PSDB) agradeceu a
Musk.
Enquanto Goldsztein
anunciava as antenas de Musk, o vice-prefeito de Porto Alegre usou a live para
elogiar a instituição do amigo. Gomes contou que esteve ao lado de Goldsztein
desde sexta-feira, 3 de maio, quando a tragédia se acirrou em Porto Alegre. “O
Claudio no jipe, eu no barco”, disse. Ao comentar sobre formas de ajuda, o
vice-prefeito citou nominalmente a instituição do amigo. “Eu quero referendar
aqui o Instituto Cultural Floresta. É um caminho seguro, honesto, transparente
pra fazer doações, mas como outros tantos são”, apontou, indicando que a
aplicação do dinheiro seria mais rápida do que a doação para órgãos públicos,
que teriam que “fazer licitação”, o que faria com que o “primeiro colchão só
chegue daqui a seis meses”.
“Obviamente sou
vice-prefeito, não tô dizendo pra não doar pra Prefeitura, haverá
transparência, haverá aplicação adequada desses recursos, mas o tempo e a
agilidade é muito diferente”, acrescentou.
·
Brasil Paralelo e Instituto Floresta,
“crias” de Olavo de Carvalho em Porto Alegre
A Brasil Paralelo foi
criada em 2016, em Porto Alegre, por quatro homens, segundo o registro na Junta
Comercial. Henrique Viana, um dos fundadores, relatou em uma entrevista que ele e os outros idealizadores faziam palestras para
empresários argumentando que, além do impeachment da ex-presidente Dilma
Rousseff (PT), seria necessário fazer uma “guerra cultural” no país, ocupando a
cultura, entretenimento e educação. Essa foi a base do que viria a ser a
atuação da Brasil Paralelo.
No mesmo ano, na mesma
cidade, surgia o ICF. Fundado por Goldsztein e Luiz Leonardo Abelin Fração –
também empresário –, o ICF se autodenomina uma instituição sem fins lucrativos
que tem a missão de apoiar a segurança pública no estado e arrecada doações
para financiar suas ações.
Viana, da Brasil
Paralelo, relatou em uma entrevista que o nome do ICF de Goldsztein foi
escolhido em homenagem a uma apresentação de ideias do guru bolsonarista Olavo
de Carvalho, que ele e outros fundadores da produtora faziam a empresários de
Porto Alegre, em 2016. Os encontros, que tinham a participação de Goldsztein e
Fração, foram o embrião da Brasil Paralelo.
“Conheço o Henrique
[Viana]. A inspiração de ambos [ICF e Brasil Paralelo] é a mesma, a ideia de
que não basta olhar para uma árvore, tem que ver a floresta inteira, mas não
que um tenha se inspirado no outro”, disse Goldsztein à Pública.
Em entrevista ao Jornal do Brasil, Fração explicou que criou
a organização em resposta a crimes ocorridos na capital gaúcha entre 2015 e
2016. A primeira ação do grupo foi consertar viaturas policiais. “Comecei a
ligar para amigos donos de concessionárias de carro pedindo que arrumassem
viaturas da PM estragadas. Foram cem carros em duas semanas”, afirma.
O ICF ganhou projeção
através de uma iniciativa que ficou conhecida como a “Lei Rouanet da
Segurança”. Em 2019, graças à atuação do instituto, empresários gaúchos
conseguiram aprovar a legislação que permitia trocar o pagamento de parte dos
impostos estaduais pela compra e doação de armas e equipamentos para as forças
policiais.
Na época, reportagem da Pública mostrou como o instituto já havia
comprado 46 viaturas, 1.500 pistolas e fuzis, alguns de alta precisão, para as
forças de segurança gaúcha, apesar de reclamarem de que ainda faltava segurança
legal para conseguirem abater os impostos.
De acordo com o
decreto publicado no final da gestão do governador José Ivo Sartori (MDB), os
empresários puderam escolher onde e como seriam aplicados os artigos doados e o
município onde seriam utilizados. A discricionariedade foi mantida num decreto
do início do governo de Eduardo Leite (PSDB).
A lei criada pelos
empresários gaúchos chegou ao hoje senador Sergio Moro (União Brasil-PR).
Segundo reportagem do Estadão, a equipe do então ministro da
Justiça de Jair Bolsonaro (PL) elaborou uma proposta para criar, no nível
federal, a “Lei Rouanet da Segurança Pública” – que não foi aprovada até ele
deixar o ministério.
·
“Guerra cultural”
Em 2016, quando o
atual vice-prefeito de Porto Alegre foi eleito vereador pelo PP, Claudio
Goldsztein, do ICF, doou R$ 10 mil à campanha.
Gomes foi presidente
do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), onde ocorreram alguns dos encontros
relatados pelo fundador da Brasil Paralelo, Henrique Viana, nos quais pregavam
uma “guerra cultural”. O IEE organiza o Fórum da Liberdade, uma conferência que
reúne expoentes do liberalismo e da extrema direita.
Após ser eleito
vereador da Câmara de Porto Alegre, Gomes foi nomeado secretário de
Desenvolvimento Econômico da capital gaúcha, em 2017. Em 2020, candidatou-se e
foi eleito vice do prefeito Sebastião Melo.
De acordo com os dados
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pessoas ligadas à construtora Cyrela
Goldsztein, da família de Claudio, foram as maiores financiadoras da campanha
de Melo e Gomes em 2020. Foram R$ 200 mil repassados por integrantes da família
e diretores da empresa à chapa vitoriosa.
Já sete pessoas da
família Fração, do cofundador do ICF, Leonardo Fração, doaram R$ 44 mil para
Melo e Gomes. Em 2016, duas pessoas do grupo familiar já haviam doado R$ 4 mil
a Gomes.
·
Brasil Paralelo divulgou Pix de instituto
de Goldsztein
No início do desastre
que atinge o Rio Grande do Sul, o ICF passou a divulgar seu Pix para doações.
Em 6 de maio, segunda-feira, quando a catástrofe já havia atingido enormes
proporções, a organização publicou no X/Twitter que havia adquirido cem antenas
da Starlink, internet por satélite da SpaceX, de Musk.
O vídeo, que soma 1,8
milhão de visualizações e 40 mil curtidas no Instagram, mostra as caixas das
antenas sendo carregadas em uma aeronave da empresa Azul, e ao fundo há uma
trilha sonora instrumental semelhante à de um filme de ação. Segundo o próprio instituto,
as antenas seriam doadas a forças policiais gaúchas, com o objetivo de
restabelecer a comunicação durante a tragédia.
Em uma live no
canal do YouTube da Brasil Paralelo ainda no dia 6 de maio, Goldsztein
justificou que a compra das antenas para entidades policiais faz jus à missão
do instituto. “Nossa prioridade é reconstruir delegacias e quarteis, o
principal que estamos focando é a origem do instituto: segurança e educação.
Porque, se não tivermos delegacias minimamente operacionais, com computadores,
como faremos a prevenção do crime?”, afirmou durante a transmissão.
O apresentador da live
na Brasil Paralelo, Lucas Ferrugem, recomendou doações para o ICF: “A
recomendação que eu tenho feito é que cada um doe para aquilo que se
identificar mais. Eu falo para amigos, faz um cheque maior pro Instituto
Cultural Floresta, para eles poderem se estruturar, e depois você doa ‘pingado’
para várias pessoas físicas que estão nessa linha de frente de comprar comida”.
Goldsztein afirma que
o ICF não está vinculado à Brasil Paralelo e que recebe ajuda e doações de
pessoas e empresas de diferentes matizes ideológicos. “A minha parte para
preservar a natureza, de não jogar papel na rua e não desperdiçar água, eu faço
e ensino para os meus filhos. O ICF não entra nestas pautas, não temos
competência para dizer se alguém poderia ter previsto ou não tomou medidas
corretas. O que podemos fazer é mudar a realidade das pessoas afetadas”,
afirmou.
O empresário disse que
o ICF comprou cerca de 400 antenas da Starlink com recursos de doações, a
partir da divulgação veiculada principalmente pela Brasil Paralelo e
influencers de extrema direita. “Compramos as primeiras 10 ou 12 de forma
avulsa, duas de um vendedor, quatro de outro, e, quando vimos, a população
havia se engajado na campanha e conseguimos comprar um lote de 50 antenas.
Entregamos quase 400 antenas, todas com doação via Pix”, comentou.
Segundo
a Pública apurou, em junho de 2023, o ICF doou R$ 400 mil em
equipamentos de informática ao Departamento Estadual de Investigações Criminais
da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Em 17 de abril, o ICF fez a doação de 40
kits de coldre, capa colete, porta rádio e outros itens à Brigada Militar do
Rio Grande do Sul.
Em 2023, ano marcado
por numerosos ataques a escolas no Brasil, o ICF bancou uma iniciativa que
visava à instalação de um sistema de botões de pânico em 98 escolas da rede
municipal de ensino de Porto Alegre e nas 214 instituições parceiras da
educação infantil, segundo o portal Terra. A empresa BeOn forneceu os equipamentos, que foram
distribuídos pela prefeitura da capital gaúcha.
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O negacionismo climático da Brasil Paralelo
“Eu gostaria de
começar jogando a bola para o professor Felício: o que que é aquecimento
global, professor?”. Assim começa um vídeo chamado
“O aquecimento global é uma farsa?” de quase duas horas da Brasil Paralelo,
que, publicado em 30 de agosto de 2022, ultrapassa 1,4 milhões de
visualizações e mais de 7.700 comentários no YouTube.
“Bom, vamos dizer
assim, que foi uma ideia que quiseram criar dizendo que a temperatura do
planeta média – que é uma abstração total […] fizeram uma associação de que um
dos gases […] constituintes da atmosfera […], que é o CO2, ele a
partir da sua proporção crescendo na atmosfera isso faria a temperatura do
planeta aquecer. Isso não tem nenhuma evidência científica de que acontece”,
desinforma o convidado, que arranca risos dos apresentadores da Brasil
Paralelo.
O convidado em
questão, Ricardo Felício, era professor da Universidade de São Paulo (USP) até
ser demitido em julho do ano passado, segundo reportagem do Globo, após um processo disciplinar motivado por faltas às aulas. Ele
questiona o aquecimento global e consensos científicos como do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), que apontou que o
aumento na temperatura do planeta era influenciado pela atividade humana. Em
2012, Felício foi entrevistado por 28 minutos no Programa do Jô, da Rede Globo, quando afirmou que o aquecimento global “é uma
hipótese sem comprovações científicas”. Também é autor de um curso online
chamado “A ‘mudança climática’: desconstruindo a hipótese”.
A Brasil Paralelo tem
diversas produções que colocam em dúvida a existência do aquecimento global,
minimizam o impacto do agronegócio no meio ambiente e criticam ambientalistas.
Um dos documentários da produtora, “Cortina de fumaça”, de 2021, nega o crescente
desmatamento no país durante o governo Jair Bolsonaro e aponta reivindicações
de ONGs e indígenas como parte de uma conspiração global para frear o
agronegócio brasileiro. O vídeo teve quase 2 milhões de visualizações em apenas
três meses.
O documentário viola
regras do próprio YouTube, que desde 2015 promete contribuir para o combate às
mudanças climáticas evitando conteúdos desinformativos sobre o tema. Porém o
filme segue disponível na plataforma e ajuda a ampliar o negacionismo sobre a
emergência climática.
Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
demonstrou como esse documentário levava a recomendações de conteúdos ainda
mais radicais no YouTube. Os pesquisadores alertam que, “no que diz respeito ao
campo ambiental, a crença em teorias da conspiração ameaça os esforços mundiais
para combater a crise climática”.
Os anos de 2023 e 2024
têm batido todos os recordes de temperatura dos oceanos. O ano passado fechou
com o registro mais quente da história das medições, segundo dados da
Organização Meteorológica Mundial (OMM) apresentados pelo Instituto Nacional de Meteorologia. Já abril de 2024
marcou o 11º mês em sequência com recordes de calor na Terra, de acordo com cientistas do observatório europeu Copernicus.
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Confira a cronologia da crise no Rio Grande do Sul
## 27 a 28 de abril
Desde março, a MetSul
Meteorologia vem alertando sobre chuvas intensas de abril e maio. No sábado,
dia 27 de abril, algumas regiões sofreram impactos de chuvas e granizo. No dia
seguinte, a Defesa Civil contabilizou impactos em 15 municípios.
## 30 de abril a 1 de
maio
Na terça-feira, o Rio
Grande do Sul registrou as primeiras mortes devido aos temporais. Na
quarta-feira, o número de mortes aumentou para 11. Em todo o estado, casas,
pontes e outras construções foram arrastadas pela força da água.
## 2 a 3 de maio
Na quinta-feira, o Rio
Grande do Sul decretou estado de calamidade pública. Uma barragem rompeu
parcialmente, e outras quatro apresentavam risco. Até sexta-feira, já haviam
sido registradas 39 mortes.
## 4 a 5 de maio
O Rio Grande do Sul
enfrenta a maior tragédia de sua história. Na manhã de domingo, o presidente
Lula, acompanhado pelos presidentes da Câmara e do Senado, e pelo
vice-presidente do STF, sobrevoou Porto Alegre de helicóptero.
## 6 a 9 de maio
As mortes chegam a 107
e os desaparecidos a 136, números que continuam aumentando. A quantidade de
afetados passa de 1,3 milhão, em mais de 300 cidades impactadas. O número de
pessoas desalojadas supera 164 mil, e há ainda 67 mil desabrigados.
## 10 a 13 de maio
Com final de semana
chuvoso, mortes chegam a 147. Desabrigados já passam de 600 mil em 447
municípios afetados.
De acordo com matéria do
site Porto Alegre 24 Horas, publicada em 27 de abril, Goldsztein teria sido
indicado para compor a chapa da candidatura à prefeitura nas eleições deste
ano, mas à Agência Pública ele negou que irá concorrer. “Nunca
analisei a fundo essa proposta”, ele disse por telefone.
Segundo
a Pública apurou, a fundação do instituto de Goldsztein foi
inspirada nos mesmos ideais que levaram à criação da Brasil Paralelo. Foi
inclusive através do ICF que Goldsztein e o atual vice-prefeito, Ricardo Gomes,
se juntaram em uma transmissão da Brasil Paralelo em meio ao desastre que
atinge o Rio Grande do Sul.
A reportagem procurou
Ricardo Gomes e a Brasil Paralelo, mas eles não responderam até a publicação
desta reportagem.
Fonte: Por Amanda
Audi, Bruno Fonseca e Gabriel Gama, da Agencia Pública
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