O que o
setor financeiro tem a ver com a tragédia climática gaúcha?
Neste
momento, todas as atenções, naturalmente, estão voltadas para os efeitos da
tragédia climática no Rio Grande do Sul, numa corrente de solidariedade
entremeada por redes de fake news emanadas das trevas que teimam em existir
(mas só sabemos que há luz porque a escuridão existe, não é mesmo?). Ocorre que
há uma série de causas por trás das mudanças climáticas que estão provocando
eventos extremos como esses, que serão cada vez mais comuns no chamado “Sul
global”, já que essa região concentra a maior parte das economias emergentes e
países em desenvolvimento (ainda que não todas). Esses países, que concentram a
maior parte da população do planeta, são justamente os menos preparados para os
efeitos das alterações climáticas.
Essa
preparação costuma ser chamada de “adaptação às mudanças climáticas” e envolve
um conjunto de ações, sobretudo do poder público (federal, estadual e
municipal, no caso brasileiro), que variam de acordo com as características
físicas (solo, relevo, distância de cursos de água doce e do litoral) de cada
local – estamos falando de obras para evitar inundações e deslizamentos, por
exemplo. No entanto, o setor privado também tem um papel importante a
desempenhar, e aproveitamos para dar um exemplo que todos vão entender: os
riscos de rompimento de barragens de rejeitos de mineração – a maioria delas
construídas há algumas décadas – aumentam substancialmente com o incremento no
volume de chuvas, pois os sistemas de contenção de chuvas (espécies de
“calhas”) foram projetados para um volume muitíssimo menor do que o atual.
Já
sabemos no Brasil o que acontece quando barragens de rejeitos de minérios se
rompem, certo? Os episódios de rompimento da barragem da Samarco em Mariana em
novembro de 2015 e da barragem da Vale em Brumadinho em janeiro de 2019 (que
não foram causados por eventos extremos, e sim por omissões criminosas na
manutenção das barragens) falam por si quanto aos efeitos. E a probabilidade de
que se repitam subiu muito com o crescimento das chuvas em algumas regiões,
incluindo as áreas de Mata Atlântica em Minas Gerais, estado onde está
concentrado o maior número de barragens próximas de áreas onde vivem
populações, áreas de abastecimento de água para consumo humano e de animais,
bem como propriedades de agricultura familiar.
No
setor agrícola, técnicas para adaptação aos efeitos das mudanças climáticas (o
mais comum é a estiagem, um evento crônico) incluem recuperação das florestas,
de pastagens e outras formas de vegetação nativa, sistemas agroflorestais e
rotação de culturas, que aumentam a produtividade do solo. Desenvolver ações de
adaptação hoje é absolutamente urgente, já que as mudanças climáticas deixaram
de ser uma previsão para o futuro e estão presentes aqui, ali e em todo lugar.
Entretanto,
continua sendo possível e necessário adotar ações de mitigação das mudanças
climáticas, ou seja, reduzir a velocidade, conter em alguma medida o ritmo
delas. Isso envolve ações para reduzir a concentração de gases de efeito estufa
na atmosfera, ou seja:
1)
eliminar o desmatamento ilegal e, sempre que possível, reduzir também o
admitido em lei; reduzir com vigor e caminhar para a eliminação da produção e
do uso de fontes fósseis de eletricidade e combustíveis (petróleo – ou seja,
gasolina e óleo diesel; gás natural; carvão mineral); e reduzir outras fontes
de emissão, como fertilizantes químicos (óxido nitroso é um gás de efeito
estufa com poder de aquecimento quase trezentas vezes superior ao CO2) e metano
(resultante da fermentação entérica, um processo digestivo do gado, e de
emissões de aterros sanitários – o metano tem um poder calorífico quase noventa
vezes superior ao CO2) – em suma, reduzir emissões; e
2)
frear a destruição de ecossistemas naturais que capturam CO2 da atmosfera, como
mangues, florestas, áreas úmidas (como o Pantanal) e oceanos.
Agir
apenas na manutenção dos níveis de captura (como faz o governo brasileiro ao
desenvolver ações para reduzir o desmatamento, mas incentivar a exploração de
petróleo) não resolve o problema. Reduzir apenas as emissões de gases de
efeitos estufa e seguir destruindo as fontes de captura tampouco resolve o
problema. Atualmente, na maior parte dos países do mundo, não estamos fazendo o
dever de casa 1 nem o 2 – isso significa que a prevenção de desastres
climáticos e de alterações permanentes nos padrões climáticos está falhando.
Isso todos já sabemos.
E
onde entra o setor financeiro nisso tudo? Entra porque a maior parte das
atividades econômicas (e sinto informar, isso também inclui nossas decisões de
consumo) depende do setor financeiro para existir – ou seja, sem acesso a
crédito, sem acesso a investimentos ou a seguros, a grande maioria das
atividades econômicas simplesmente não aconteceria.
E
vamos contar um “segredo” a vocês: existem entes públicos que fazem as “regras
do jogo” para a concessão de crédito (empréstimos), realização de investimentos
(as chamadas “aplicações”, seja em títulos públicos, títulos privados de renda
fixa, ações ou quotas de empresas) e subscrição de riscos via seguros – eles
são os chamados “reguladores financeiros”: o Banco Central do Brasil, que
regula o crédito em geral; a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que regula
a divulgação de informações de empresas para investidores, a colocação de
produtos financeiros no mercado e as avaliações de risco de crédito (as
chamadas agências de rating); a Superintendência de Seguros Privados (Susep),
que regula o setor de seguros e de previdência complementar aberta; e a Superintendência
de Previdência Complementar (PREVIC), que regula os chamados “fundos de pensão”
(esquemas fechados de previdência complementar).
Esses
entes públicos têm atuado de forma heterogênea tanto ao definir as regras do
jogo como na fiscalização do cumprimento delas, pois muitas vezes não possuem a
estrutura necessária para tanto – precisam de ações de capacitação, de acesso a
dados ambientais e sociais das empresas que recebem crédito, investimentos ou
seguros. O Banco Central foi o primeiro a incorporar fatores ambientais em suas
normas, mas fez isso de forma muito mais intensa e detalhada no crédito ao
produtor rural, em que ocorre o devido alinhamento a outras políticas públicas.
Para outras formas de crédito, isso não ocorre. A CVM tem dado passos
significativos, mas ainda há lacunas imensas nas normas; a Susep avançou muito
em 2022, porém falta abordar diversos pontos; e a Previc ainda está num estágio
anterior, em que o tema já foi tratado, mas faltam exigências mínimas até mesmo
de governança.
É
preciso corrigir essas disparidades. Cabe ao Ministério da Fazenda, ao qual se
vinculam os reguladores financeiros, atuar a respeito. O clima não pode
esperar, a população brasileira não pode esperar, a economia não pode esperar.
Se não respeitamos as regras do jogo da natureza, ela nos engolirá sem nem
mesmo percebermos em que ponto perdemos totalmente a possibilidade de evitar o
pior.
•
Depois do dilúvio. Por Tarso Genro
Ao
contrário do que os formadores ideológicos da grande imprensa rapidamente
propagaram, defendendo que a situação de tragédia não é propícia para o debate
político sobre o futuro, defendo que é exatamente nos momentos de crise que as
pessoas, as classes, as instituições, mostram a sua grandeza e a sua miséria.
Sonegar as causas políticas da tragédia gaúcha é sonegar o essencial e ajudar a
esconder os crimes e as omissões deliberadas que nos levaram até aqui.
Do
ponto de vista do interesse público não cabe indicar quem são os criminosos, o
que é uma tarefa da Justiça Penal, mas sim apontar as políticas públicas que
permitiram que aqueles que cometeram crimes contra a democracia e a cidade
fiquem escondidos nos esgotos das fake news e nas manipulações cotidianas da
desinformação deliberada. A devastação é grandiosa e Celi Pinto tem razão
quando diz que o dilúvio tem razões políticas.
Rezam
a lenda e a Bíblia Sagrada que “as águas do Dilúvio destruíram os iníquos e
todas as criatura que viviam na terra, exceto os que estavam na arca. Quando as
águas do Dilúvio baixaram, Noé e a sua família saíram da Arca”. Os que saem da
arca, depois do dilúvio – aqui e hoje – estão vivos para cumprirem os desígnios
de Deus, da história ou dos profetas, mas eles – os que estão vivos – amam,
sofrem, lutam e um dia morrerão. Nós morreremos, mas enquanto vivos, temos que
falar.
Depois
do Dilúvio também é uma pintura a óleo do inglês George Watts, que “apresenta o
sol de forma incompleta em 1886 e completa, em 1891”. A história se move em
sequências incompletas, como no quadro do inglês – marcado pela meticulosidade
britânica: Noé abre a janela da arca e vê que a chuva cessou. O que pensam, os
gaúchos de hoje quando as chuvas cessam, sobre as profecias dos negacionistas
que conduziram o pensamento de milhões, na modernidade dissolvida pelas águas?
Tomada
como símbolo, história ou mito, a situação de Noé (falecido com 950 anos e
vivendo por mais 350 anos depois do dilúvio no mundo de um Deus improvável) não
enfrentou as três negações que os humanos atuais enfrentam. Depois do nosso
Dilúvio, que causou danos e impressões muito mais fortes do que a leitura das
versões míticas da Bíblia, acho que devemos repensar a vida e a política.
Na
versão bíblica, um Deus vingativo teria dito “multipliquem-se, povoem novamente
a terra e exerçam domínio sobre ela”. E depois: “quem derramar o sangue de um
ser humano, pelo ser humano seu sangue será derramado, pois ele foi criado à
imagem de Deus.” O Deus da Gênesis 9, manda derramar sangue e nega, portanto, o
direito de perdoar a quem derrama o sangue dos seus irmãos. Tendo o “verbo”
como força letal, o Deus da Gênesis não precisou encarar as três negações que
enfrentamos nos dias de hoje.
A
visão da Gênesis está largamente superada pelo direito moderno, que é mais
eficiente e mais “humano” que a “lei do talião”, que o Deus vingativo
recomendou a Noé e aos seus sucessores, pois a lei dos homens julga os
conflitos para retomar a coesão social, tanto pela aplicação da lei penal como
pela possibilidade do perdão. O Deus mítico, ideal, criado pelos homens ou pela
espontaneidade da energia do Universo é sempre maior do que a vida imediata.
Mas
Ele não se defrontou com as três negações que nos desafiam: a negação da
política, propagada pela mídia dominante, que gerou a deposição
inconstitucional da presidenta Dilma Rousseff e abriu as comportas ao fascismo
e aos novos políticos da extrema direita, negação principal e decisiva que ao
eliminar a política tradicional como um cancro e colocar, em seu lugar, o
fascismo e o negacionismo, mutilou o que tem de bom e humano na democracia
liberal.
A
segunda negação é a Pandemia que – com a política assassina da cloroquina
contra a vacina e da respiração ofegante como deboche – ajudou a matar 800 mil
pessoas, cujos titulares ainda permanecem soltos e impunes. O negacionismo
climático é a terceira negação, que guindou ao topo do imaginário do progresso
a destruição ambiental e a criação de novas normas de proteção, não dos
humanos, mas dos desastres que aí estão.
Quero
dizer, com a menção das três negações, que a dimensão da barbárie universal se
derramou sobre o Rio Grande do Sul, não como uma maldição divina, que não só
classifica crimes e estabelece as punições, mas que também se estabeleceu de
forma consciente – pelo dolo evidente de determinados dirigentes políticos –
pela extinção das políticas de manutenção das prevenções e das defesas da
cidade contra as cheias.
Porto
Alegre, assim, passou a ser uma cidade-teste da gentrificação perversa, da
especulação imobiliária, palco dos “síndicos” populistas neoliberais – sem
propósito público – incensados pela mídia dominante. Porto Alegre de modelo do
Sistema Único de Saúde passou a ser o símbolo da irresponsabilidade na Saúde
Pública, pela ausência de uma estratégia sanitária séria na época da Pandemia.
Porto
Alegre de cidade que recebeu prêmios internacionais de gestão decente,
tornou-se um criadouro de meritocráticos de opereta – educada pela extrema
direita empresarial e pela sua mídia servil – que continuam buscando a
proliferação dos seus negócios e (como bons neoliberais oportunistas) buscando
as proteções do Estado. Porto Alegre vai voltar, mas – se quiser sobreviver –
vai ter que varrer nas eleições deste ano o Cavaleiro único do apocalipse que
nos afoga e concentra – no seu perfil populista – as três negações que Noé não
precisou enfrentar, abrigado que esteve nas palavras do Senhor.
Fonte:
Por Luciane Moessa e Suely Araújo, no Le Monde/A Terra é Redonda
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