quarta-feira, 22 de maio de 2024

O que o setor financeiro tem a ver com a tragédia climática gaúcha?

Neste momento, todas as atenções, naturalmente, estão voltadas para os efeitos da tragédia climática no Rio Grande do Sul, numa corrente de solidariedade entremeada por redes de fake news emanadas das trevas que teimam em existir (mas só sabemos que há luz porque a escuridão existe, não é mesmo?). Ocorre que há uma série de causas por trás das mudanças climáticas que estão provocando eventos extremos como esses, que serão cada vez mais comuns no chamado “Sul global”, já que essa região concentra a maior parte das economias emergentes e países em desenvolvimento (ainda que não todas). Esses países, que concentram a maior parte da população do planeta, são justamente os menos preparados para os efeitos das alterações climáticas.

Essa preparação costuma ser chamada de “adaptação às mudanças climáticas” e envolve um conjunto de ações, sobretudo do poder público (federal, estadual e municipal, no caso brasileiro), que variam de acordo com as características físicas (solo, relevo, distância de cursos de água doce e do litoral) de cada local – estamos falando de obras para evitar inundações e deslizamentos, por exemplo. No entanto, o setor privado também tem um papel importante a desempenhar, e aproveitamos para dar um exemplo que todos vão entender: os riscos de rompimento de barragens de rejeitos de mineração – a maioria delas construídas há algumas décadas – aumentam substancialmente com o incremento no volume de chuvas, pois os sistemas de contenção de chuvas (espécies de “calhas”) foram projetados para um volume muitíssimo menor do que o atual. 

Já sabemos no Brasil o que acontece quando barragens de rejeitos de minérios se rompem, certo? Os episódios de rompimento da barragem da Samarco em Mariana em novembro de 2015 e da barragem da Vale em Brumadinho em janeiro de 2019 (que não foram causados por eventos extremos, e sim por omissões criminosas na manutenção das barragens) falam por si quanto aos efeitos. E a probabilidade de que se repitam subiu muito com o crescimento das chuvas em algumas regiões, incluindo as áreas de Mata Atlântica em Minas Gerais, estado onde está concentrado o maior número de barragens próximas de áreas onde vivem populações, áreas de abastecimento de água para consumo humano e de animais, bem como propriedades de agricultura familiar.

No setor agrícola, técnicas para adaptação aos efeitos das mudanças climáticas (o mais comum é a estiagem, um evento crônico) incluem recuperação das florestas, de pastagens e outras formas de vegetação nativa, sistemas agroflorestais e rotação de culturas, que aumentam a produtividade do solo. Desenvolver ações de adaptação hoje é absolutamente urgente, já que as mudanças climáticas deixaram de ser uma previsão para o futuro e estão presentes aqui, ali e em todo lugar.

Entretanto, continua sendo possível e necessário adotar ações de mitigação das mudanças climáticas, ou seja, reduzir a velocidade, conter em alguma medida o ritmo delas. Isso envolve ações para reduzir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, ou seja:

1) eliminar o desmatamento ilegal e, sempre que possível, reduzir também o admitido em lei; reduzir com vigor e caminhar para a eliminação da produção e do uso de fontes fósseis de eletricidade e combustíveis (petróleo – ou seja, gasolina e óleo diesel; gás natural; carvão mineral); e reduzir outras fontes de emissão, como fertilizantes químicos (óxido nitroso é um gás de efeito estufa com poder de aquecimento quase trezentas vezes superior ao CO2) e metano (resultante da fermentação entérica, um processo digestivo do gado, e de emissões de aterros sanitários – o metano tem um poder calorífico quase noventa vezes superior ao CO2) – em suma, reduzir emissões; e

2) frear a destruição de ecossistemas naturais que capturam CO2 da atmosfera, como mangues, florestas, áreas úmidas (como o Pantanal) e oceanos. 

Agir apenas na manutenção dos níveis de captura (como faz o governo brasileiro ao desenvolver ações para reduzir o desmatamento, mas incentivar a exploração de petróleo) não resolve o problema. Reduzir apenas as emissões de gases de efeitos estufa e seguir destruindo as fontes de captura tampouco resolve o problema. Atualmente, na maior parte dos países do mundo, não estamos fazendo o dever de casa 1 nem o 2 – isso significa que a prevenção de desastres climáticos e de alterações permanentes nos padrões climáticos está falhando. Isso todos já sabemos.

E onde entra o setor financeiro nisso tudo? Entra porque a maior parte das atividades econômicas (e sinto informar, isso também inclui nossas decisões de consumo) depende do setor financeiro para existir – ou seja, sem acesso a crédito, sem acesso a investimentos ou a seguros, a grande maioria das atividades econômicas simplesmente não aconteceria. 

E vamos contar um “segredo” a vocês: existem entes públicos que fazem as “regras do jogo” para a concessão de crédito (empréstimos), realização de investimentos (as chamadas “aplicações”, seja em títulos públicos, títulos privados de renda fixa, ações ou quotas de empresas) e subscrição de riscos via seguros – eles são os chamados “reguladores financeiros”: o Banco Central do Brasil, que regula o crédito em geral; a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que regula a divulgação de informações de empresas para investidores, a colocação de produtos financeiros no mercado e as avaliações de risco de crédito (as chamadas agências de rating); a Superintendência de Seguros Privados (Susep), que regula o setor de seguros e de previdência complementar aberta; e a Superintendência de Previdência Complementar (PREVIC), que regula os chamados “fundos de pensão” (esquemas fechados de previdência complementar). 

Esses entes públicos têm atuado de forma heterogênea tanto ao definir as regras do jogo como na fiscalização do cumprimento delas, pois muitas vezes não possuem a estrutura necessária para tanto – precisam de ações de capacitação, de acesso a dados ambientais e sociais das empresas que recebem crédito, investimentos ou seguros. O Banco Central foi o primeiro a incorporar fatores ambientais em suas normas, mas fez isso de forma muito mais intensa e detalhada no crédito ao produtor rural, em que ocorre o devido alinhamento a outras políticas públicas. Para outras formas de crédito, isso não ocorre. A CVM tem dado passos significativos, mas ainda há lacunas imensas nas normas; a Susep avançou muito em 2022, porém falta abordar diversos pontos; e a Previc ainda está num estágio anterior, em que o tema já foi tratado, mas faltam exigências mínimas até mesmo de governança.

É preciso corrigir essas disparidades. Cabe ao Ministério da Fazenda, ao qual se vinculam os reguladores financeiros, atuar a respeito. O clima não pode esperar, a população brasileira não pode esperar, a economia não pode esperar. Se não respeitamos as regras do jogo da natureza, ela nos engolirá sem nem mesmo percebermos em que ponto perdemos totalmente a possibilidade de evitar o pior.

 

•                                           Depois do dilúvio. Por Tarso Genro

 

Ao contrário do que os formadores ideológicos da grande imprensa rapidamente propagaram, defendendo que a situação de tragédia não é propícia para o debate político sobre o futuro, defendo que é exatamente nos momentos de crise que as pessoas, as classes, as instituições, mostram a sua grandeza e a sua miséria. Sonegar as causas políticas da tragédia gaúcha é sonegar o essencial e ajudar a esconder os crimes e as omissões deliberadas que nos levaram até aqui.

Do ponto de vista do interesse público não cabe indicar quem são os criminosos, o que é uma tarefa da Justiça Penal, mas sim apontar as políticas públicas que permitiram que aqueles que cometeram crimes contra a democracia e a cidade fiquem escondidos nos esgotos das fake news e nas manipulações cotidianas da desinformação deliberada. A devastação é grandiosa e Celi Pinto tem razão quando diz que o dilúvio tem razões políticas.

Rezam a lenda e a Bíblia Sagrada que “as águas do Dilúvio destruíram os iníquos e todas as criatura que viviam na terra, exceto os que estavam na arca. Quando as águas do Dilúvio baixaram, Noé e a sua família saíram da Arca”. Os que saem da arca, depois do dilúvio – aqui e hoje – estão vivos para cumprirem os desígnios de Deus, da história ou dos profetas, mas eles – os que estão vivos – amam, sofrem, lutam e um dia morrerão. Nós morreremos, mas enquanto vivos, temos que falar.

Depois do Dilúvio também é uma pintura a óleo do inglês George Watts, que “apresenta o sol de forma incompleta em 1886 e completa, em 1891”. A história se move em sequências incompletas, como no quadro do inglês – marcado pela meticulosidade britânica: Noé abre a janela da arca e vê que a chuva cessou. O que pensam, os gaúchos de hoje quando as chuvas cessam, sobre as profecias dos negacionistas que conduziram o pensamento de milhões, na modernidade dissolvida pelas águas?

Tomada como símbolo, história ou mito, a situação de Noé (falecido com 950 anos e vivendo por mais 350 anos depois do dilúvio no mundo de um Deus improvável) não enfrentou as três negações que os humanos atuais enfrentam. Depois do nosso Dilúvio, que causou danos e impressões muito mais fortes do que a leitura das versões míticas da Bíblia, acho que devemos repensar a vida e a política.

Na versão bíblica, um Deus vingativo teria dito “multipliquem-se, povoem novamente a terra e exerçam domínio sobre ela”. E depois: “quem derramar o sangue de um ser humano, pelo ser humano seu sangue será derramado, pois ele foi criado à imagem de Deus.” O Deus da Gênesis 9, manda derramar sangue e nega, portanto, o direito de perdoar a quem derrama o sangue dos seus irmãos. Tendo o “verbo” como força letal, o Deus da Gênesis não precisou encarar as três negações que enfrentamos nos dias de hoje.

A visão da Gênesis está largamente superada pelo direito moderno, que é mais eficiente e mais “humano” que a “lei do talião”, que o Deus vingativo recomendou a Noé e aos seus sucessores, pois a lei dos homens julga os conflitos para retomar a coesão social, tanto pela aplicação da lei penal como pela possibilidade do perdão. O Deus mítico, ideal, criado pelos homens ou pela espontaneidade da energia do Universo é sempre maior do que a vida imediata.

Mas Ele não se defrontou com as três negações que nos desafiam: a negação da política, propagada pela mídia dominante, que gerou a deposição inconstitucional da presidenta Dilma Rousseff e abriu as comportas ao fascismo e aos novos políticos da extrema direita, negação principal e decisiva que ao eliminar a política tradicional como um cancro e colocar, em seu lugar, o fascismo e o negacionismo, mutilou o que tem de bom e humano na democracia liberal.

A segunda negação é a Pandemia que – com a política assassina da cloroquina contra a vacina e da respiração ofegante como deboche – ajudou a matar 800 mil pessoas, cujos titulares ainda permanecem soltos e impunes. O negacionismo climático é a terceira negação, que guindou ao topo do imaginário do progresso a destruição ambiental e a criação de novas normas de proteção, não dos humanos, mas dos desastres que aí estão.

Quero dizer, com a menção das três negações, que a dimensão da barbárie universal se derramou sobre o Rio Grande do Sul, não como uma maldição divina, que não só classifica crimes e estabelece as punições, mas que também se estabeleceu de forma consciente – pelo dolo evidente de determinados dirigentes políticos – pela extinção das políticas de manutenção das prevenções e das defesas da cidade contra as cheias.

Porto Alegre, assim, passou a ser uma cidade-teste da gentrificação perversa, da especulação imobiliária, palco dos “síndicos” populistas neoliberais – sem propósito público – incensados pela mídia dominante. Porto Alegre de modelo do Sistema Único de Saúde passou a ser o símbolo da irresponsabilidade na Saúde Pública, pela ausência de uma estratégia sanitária séria na época da Pandemia.

Porto Alegre de cidade que recebeu prêmios internacionais de gestão decente, tornou-se um criadouro de meritocráticos de opereta – educada pela extrema direita empresarial e pela sua mídia servil – que continuam buscando a proliferação dos seus negócios e (como bons neoliberais oportunistas) buscando as proteções do Estado. Porto Alegre vai voltar, mas – se quiser sobreviver – vai ter que varrer nas eleições deste ano o Cavaleiro único do apocalipse que nos afoga e concentra – no seu perfil populista – as três negações que Noé não precisou enfrentar, abrigado que esteve nas palavras do Senhor.

 

Fonte: Por Luciane Moessa e Suely Araújo, no Le Monde/A Terra é Redonda

 

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