O que está por trás do aumento de peso em
crianças no Brasil
Layla Hassan tomou um
susto quando percebeu que sua filha Laiza da Silva ganhou 20 quilos em apenas
um ano.
À época, a menina
tinha 6 anos — e a junção do histórico familiar com as observações do dia a dia
da família acionaram um
sinal de alerta na mãe.
"Entre meus
parentes, todo mundo tem problema de sobrepeso, diabetes, colesterol… Isso é algo que sempre me preocupou", relata Layla, que
mora na cidade de Matinhos, no litoral paranaense.
"Também passei a
observar que a Laiza não conseguia acompanhar os amiguinhos na escola. Ela
corria um pouco e já ficava cansada. Ela sempre precisava deixar os exercícios e as
brincadeiras, não tinha a mesma rapidez dos colegas... Em casa, preferia ficar
no tablet, deitada", relata a mãe.
"E ganhar 20
quilos em apenas um ano é muita coisa para uma criança pequena",
constata ela.
Hoje, Laiza está
prestes a completar nove anos, e a vida da família passou por uma grande
transformação. Alguns hábitos antigos saíram de cena e foram substituídos por
outros.
"Não fizemos nada
radical. Percebemos que não adiantava proibir algumas coisas, porque isso
gerava uma vontade ainda maior nela", diz Layla.
Um exemplo disso foi
o refrigerante: a família passou a
restringir o consumo e comprar versões zero açúcar. "Hoje em dia, ela
criou um hábito novo e até estranha quando vai na casa de alguém que oferece
uma bebida açucarada."
Laiza também começou a
praticar mais atividade física e
realiza aulas de treinamento funcional duas vezes por semana.
O resultado da
transformação apareceu rapidamente na balança. Desde que a família mudou o
estilo de vida, a menina perdeu seis quilos e agora está conseguindo manter o
peso — algo considerado positivo, uma vez que ela está em fase de crescimento.
"Fico feliz por
vê-la correr e estar mais ativa", comemora a mãe.
"Claro que, como
pais, nós temos muito a melhorar ainda e nos cobramos bastante sobre isso.
Muitas vezes, chegamos do trabalho cansados e, pela facilidade, compramos um
lanche ou uma pizza", admite a mãe.
"Os pais devem
observar os filhos e não esperar que eles engordem muito para só aí procurar
ajuda médica", sugere ela.
A história de Laiza
está longe de ser única no Brasil e no mundo. As taxas de excesso de peso e
obesidade entre os menores de idade crescem numa velocidade que impressiona os
especialistas.
E um estudo publicado em abril no
The Lancet Regional Health - Americas conseguiu capturar como esse fenômeno
ganha terreno em nosso país.
Nele, pesquisadores da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia e da Universidade College London, no Reino Unido, avaliaram uma enorme
quantidade de dados provenientes de três registros públicos: o Cadastro Único
do Governo Federal, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos e o Sistema
de Vigilância Alimentar e Nutricional.
A partir desses
registros, eles conseguiram compilar informações de 5,7 milhões de crianças
brasileiras de 3 a 10 anos, que nasceram entre 2001 e 2014.
"Esse é um número
sem precedentes", destaca o pesquisador Gustavo Velásquez Meléndez,
professor titular da Escola de Enfermagem da UFMG e um dos autores da pesquisa.
Em resumo, o
levantamento traz duas conclusões principais. A primeira é que as crianças
brasileiras estão mais altas: aquelas que nasceram entre 2008 e 2014 têm 1
centímetro a mais, em média, em relação ao grupo que veio ao mundo entre 2001 e
2007.
Mas o dado que chama a
atenção vem na sequência: uma parcela cada vez maior desse público está acima
do peso.
Ao analisar o Índice
de Massa Corporal (IMC), os autores descobriram que 30% dos meninos e 26,6% das
meninas que nasceram entre 2008 e 2014 estão com excesso de peso ou obesidade.
Vale lembrar aqui que
o IMC é uma conta matemática que considera o peso (em quilos) dividido pela
altura (em metros) elevada ao quadrado. O resultado dessa equação indica se o
indivíduo está abaixo, dentro ou acima do peso.
Anteriormente, entre
aqueles que são de 2001 a 2007, essas taxas de sobrepeso estavam em 26,8% e
23,9%, respectivamente.
Em outras palavras, os
índices recém-publicados revelam que um em cada três meninos e uma em cada
quatro meninas estão longe dos parâmetros considerados saudáveis para as idades
deles.
Inquéritos realizados no
final dos anos 1980 e 1990 sugeriam que o sobrepeso infantil afetava ao redor
de 5% das crianças brasileiras da época.
"A grandeza
desses números chama a atenção, ainda mais por estarmos falando de uma
população de baixa renda", analisa Meléndez.
Os bancos de dados
usados na investigação têm um enfoque maior nos mais pobres, que são candidatos
a programas como o Bolsa Família.
"A obesidade pode
se tornar um problema ainda maior num contexto de desigualdade social, em que
os mais afetados não terão acesso aos recursos necessários para lidar com a
condição, como uma dieta saudável ou tratamentos adequados", complementa
ele.
"Esse artigo
publicado no The Lancet representa a junção de dados que já foram observados em
outros trabalhos feitos no Brasil e no mundo nos últimos 30 anos, e reforçam a
tendência de aumento da obesidade", comenta o pediatra e nutrólogo Mauro
Fisberg, coordenador do coordenador do Centro de Excelência em Nutrição e
Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi, em São Paulo.
"Esse aumento do
excesso de peso ocorre numa idade cada vez mais precoce, de forma intensa e
prolongada", diz o especialista, que não esteve envolvido no estudo citado
acima.
Mas o que explica essa
explosão dos quilos extras entre os mais jovens?
·
Um problema pra lá de
complexo
Por muitos anos, a
obesidade foi erroneamente vista como algo simplesmente comportamental, como se
o indivíduo engordasse por culpa própria, apenas por comer demais ou fazer
pouco exercício. Felizmente, essa noção caiu por terra.
"De forma
pragmática, o excesso de peso está ligado a um descompasso na equação entre
consumo calórico e gasto energético", raciocina Meléndez.
"Mas hoje sabemos
que essa equação simples está inserida num contexto muito complexo, que envolve
o indivíduo, a família, o ambiente, a economia e a política", lembra o
especialista.
Ou seja: a pessoa (ou
a criança, no caso) não ganha peso porque quer ou por ser
"descuidada". Em primeiro lugar, há fatores genéticos,
endocrinológicos e neuronais que contribuem para isso. Segundo, toda a forma
como a sociedade está organizada nos dias atuais facilita o acúmulo de gordura
no corpo.
"O crescimento do
sobrepeso e da obesidade tem muito a ver com os hábitos de vida. Nas últimas
décadas, nós tivemos um acesso facilitado a alimentos que são, ao mesmo tempo,
muito baratos e muito calóricos. Eles não possuem um controle de qualidade ou
informações claras no rótulo", analisa a endocrinologista pediátrica
Julienne Angela Ramires de Carvalho, do Hospital Pequeno Príncipe, no Paraná.
"Falamos aqui dos
alimentos ultraprocessados, ricos em gordura, açúcar e sal. Para piorar, eles
são muito palatáveis, então é fácil que as crianças gostem e se habituem a
comê-los."
A médica, que também é
professora do Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Paraná,
ainda destaca que esses produtos são fáceis de preparar — o que facilita a vida
de pais e mães que trabalham o dia inteiro e não têm muito tempo para planejar
uma refeição.
“A praticidade é um
fator determinante para as escolhas alimentares”, constata ela.
Em paralelo às
mudanças na alimentação, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também
destacam o avanço do sedentarismo, a partir da substituição paulatina de
brincadeiras ativas — como o futebol ou o pega-pega na rua, por exemplo — por
atividades passivas — caso dos jogos de videogame e dos vídeos postados na
internet.
Os pesquisadores
apontam que essa "troca" também está relacionada à insegurança, pois
pais e responsáveis têm medo de deixar os filhos brincando fora de casa, e mais
recentemente à pandemia de covid-19, que demandou um isolamento social para
todas as faixas etárias por um tempo prolongado.
·
Complicações
antecipadas
Engana-se quem pensa
que as consequências dos quilos extras, como o desenvolvimento de doenças
crônicas, infarto, AVC e câncer, só apareçam após a quinta ou sexta década de
vida. Alguns efeitos já podem ser observados na própria infância, apontam os
médicos.
"Em crianças com
excesso de peso, há uma alta frequência de pressão alta, resistência à insulina
e gordura no fígado", lista a endocrinologista pediátrica Cristiane Kochi,
da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Um levantamento com
104 jovens realizado pelo Instituto do Coração (InCor), na capital paulista, revelou que 57% tinham valores
indesejáveis de colesterol total e 55,4% estavam com o triglicérides acima dos
limites.
"Esses desvios
[nos valores de colesterol e triglicérides] estiveram relacionados à presença
de obesidade e sobrepeso", pontuam os autores do estudo.
Já um outro
trabalho feito na Universidade Federal de São Paulo avaliou 220 crianças e adolescentes de 5 a 14 anos e
detectou resistência à insulina em 33,2% deles. Um dos fatores que favoreciam o
desenvolvimento dessa condição, que pode evoluir para diabetes, era o aumento
da circunferência abdominal.
A Federação Mundial de Obesidade estima que, em 2020, 1,2 milhão de crianças brasileiras tinham
pressão alta e 535 mil apresentavam altas taxas de açúcar no sangue por causa
do excesso de peso.
O acúmulo de gordura
também pode representar uma sobrecarga para os ossos e as articulações — e não
raro os mais jovens apresentam dores nessas partes do corpo.
"Também chama
atenção questões relacionadas à autoestima e ao risco de desenvolver quadros
psicossociais. Vemos que esses indivíduos com sobrepeso nessa faixa etária
sofrem mais com ansiedade e depressão", acrescenta Kochi, que publicou
pesquisas sobre esses temas pela Santa Casa de São Paulo.
Para completar, os
médicos destacam que crianças com sobrepeso tendem a manter medidas acima do
considerado saudável na adolescência e na vida adulta — o que abre alas para as
mais diversas consequências à saúde, como doenças cardíacas e câncer.
"Essas crianças
ficam expostas a uma incidência precoce de doenças crônicas e
mortalidade", resume o pesquisador Wolney Lisboa Conde, professor da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
"Com isso, quero
dizer que as doenças que apareceriam aos 65 ou 70 anos já acometem esses
indivíduos quando eles estão com 45 ou 50 anos", detalha ele.
Mas, diante de um
cenário tão grave, será que existem maneiras de lidar com o excesso de peso
logo na infância?
·
O melhor caminho é a
prevenção
Os médicos e
pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil são unânimes em afirmar que é
necessário pensar em estratégias preventivas e educativas capazes de conter o
avanço da obesidade entre os jovens.
"E isso precisa
envolver necessariamente toda a família. Não é a criança que faz as compras do
mês ou que prepara as refeições. Os pais precisam ser educados por meio de
campanhas de conscientização", sugere Carvalho.
Kochi lembra que o
Brasil possui diretrizes de dieta e atividade física que são referências no
mundo inteiro, como o Guia Alimentar para a População Brasileira e o Guia de
Atividade Física para População Brasileira, produzidos a pedido do Ministério
da Saúde.
Na visão dela, esses
documentos podem ser utilizados na prática e chegar às pessoas de uma maneira
simples e didática.
Por meio dessas e de
outras publicações, os pais podem aprender como preparar refeições fáceis e
práticas para os filhos com ingredientes que sejam saudáveis e nutritivos, como
legumes e verduras.
E toda a família pode
mudar hábitos e adotar um estilo de vida mais ativo — priorizando as atividades
que mexem o corpo em vez daquelas que envolvem ficar deitado ou sentado por
longas horas.
"Precisamos
explicar o que é o comer saudável e a importância de desenvolvermos cidades
mais sustentáveis e seguras, com equipamentos públicos que estimulem o
exercício", pondera Kochi.
"Também
precisamos cobrar por melhorias nos rótulos dos alimentos, para que todos
possam entender o que há naquele produto, e fazer a regulação de propagandas
voltadas para o público infantil de alimentos de baixíssima qualidade, ricos em
açúcar e gordura", defende Carvalho.
Os especialistas
acrescentam que a prevenção da obesidade infantil começa antes mesmo do
nascimento: as mulheres precisam ser acompanhadas e orientadas a manter um peso
adequado durante a gestação, pois isso vai impactar na saúde do filho nos
primeiros anos (e até pelo resto da vida dele).
"Depois, o
aleitamento materno é outro ponto de atenção. Crianças que não foram
amamentadas têm um risco maior de desenvolver excesso de peso", destaca
Kocchi.
"Portanto, o
aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida da criança é considerado
um fator protetor contra a obesidade", complementa ela.
·
E quando a criança já
está acima do peso?
Em meio a essa
discussão, não podemos ignorar o fato de que um terço dos meninos e um quarto
das meninas do Brasil já pesam mais do que deviam — e, portanto, precisam
receber algum tipo de cuidado.
Para elas, as mudanças
de hábito citadas nos parágrafos anteriores — adotar uma alimentação
equilibrada, reforçar a prática de exercícios físicos, etc. — são o primeiro
passo fundamental.
Mas algumas vezes,
essas estratégias sozinhas já não são mais suficientes.
"Os profissionais
de saúde precisam ficar mais atentos para fazer o diagnóstico precoce e alertar
as famílias", sugere Meléndez.
"Mas não existe
uma fórmula de tratamento única, que podemos indicar para todas as
crianças", constata Fisberg.
"Nós sabemos que,
em muitos desses casos, fazer apenas a orientação de mudança de estilo de vida
não é algo que vai resolver. Nas situações mais graves, pode ser necessário
fazer tratamentos mais intensos, com medicações ou cirurgias", resume o
médico.
Geralmente, para
crianças com sobrepeso que já apresentam doenças crônicas, os profissionais de
saúde prescrevem remédios que controlam alguns desses indicadores, como a
pressão arterial e o colesterol.
Já as medicações
específicas contra a obesidade (como liraglutida e semaglutida, por exemplo)
estão liberadas com prescrição de um especialista a partir dos 12 anos de
idade. As cirurgias bariátricas, quando indicadas, também podem acontecer já na
adolescência se necessário.
E aqui é importante
que o planejamento alimentar seja feito com cuidado, com o auxílio de
profissionais especializados no assunto. Isso porque estamos falando de
indivíduos em fase de crescimento — e é preciso pensar no aporte adequado de
calorias, vitaminas, minerais e outros elementos essenciais nessa fase da vida.
Ou seja, a estratégia
nutricional precisa ter um balanço fino em prol do comer saudável, capaz de
promover o desenvolvimento do corpo, sem exageros que gerem o acúmulo de
gordura.
Lisboa Conde destaca a
necessidade de reorganizar todo o sistema de saúde brasileiro, de modo que ele
seja capaz de lidar com essa demanda crescente de casos de obesidade infantil —
ainda mais diante da constatação de que o problema ganha relevância entre as
camadas mais pobres da população, como visto no estudo publicado no The Lancet.
"E isso é um
desafio para qualquer país. Mas o Brasil tem condições de criar esse programa,
porque tem um serviço público de saúde bem estruturado e uma tradição em
estratégias de acompanhamento e educação da população", pontua o
especialista.
"Precisamos ter
protocolos claros sobre como fazer o manejo do ganho de peso nas
crianças", acredita ele.
Afinal, um problema
tão complexo e multifacetado quanto esse não terá uma única solução. É preciso
agir em várias frentes de saúde individuais e coletivas para prevenir o
sobrepeso sempre que possível — e oferecer tratamento àqueles que precisam.
Isso é algo que, de um
jeito ou de outro, precisará ser encarado de frente: o Atlas da Federação Mundial de Obesidade lançado neste ano aponta que, se nada for feito, 20
milhões de crianças brasileiras terão sobrepeso em 2035. Isso representará 50%
da população infantil do país num futuro nem tão distante assim.
Fonte: BBC News Brasil
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