O fim da Guerra Fria e a decadência do
Ocidente
O capitalismo
prevaleceu na Guerra Fria porque foi capaz de impor a “disciplina econômica”, a
política de ajuste, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. O comunismo
entrou em colapso porque não conseguiu fazer isso na Europa do leste. É esta a
conclusão de Fritz Bartel, em seu notável livro sobre o fim da Guerra Fria e a
ascensão do neoliberalismo, a relação íntima entre o capitalismo financeiro
global dos anos 1970 e a frágil estabilidade do socialismo. Seu livro é a
história desse momento de ajuste nos anos 1970 e 1980, que provocou mudanças
fundamentais no cenário mundial.
Nas primeiras décadas
da Guerra Fria – nos anos 1950 e 1960 –, observou-se um período de elevado
crescimento da economia de grande parte do mundo. Entre 1950 e 1973, o PIB per
capita cresceu a uma média anual de 4,1% na Europa Ocidental, 2,5% nos Estados
Unidos e 3,8% na Europa do leste. Em meados dos anos 1970, este crescimento
econômico desacelerou-se. O sistema de Bretton Woods estabelecia
valores fixos para a troca de moedas dos países ocidentais e regulava o fluxo
de capitais de curto prazo. Em 1971, Nixon eliminou a taxa fixa de
convertibilidade do dólar em ouro, permitindo a flutuação da taxa de câmbio, a
fim de enfrentar a crescente competitividade da indústria europeia e do Japão e
o declínio do papel relativo dos Estados Unidos na economia internacional.
Os preços do petróleo
quadruplicaram-se em 1973, depois da guerra do Yom Kippur. A Organização dos
Países Exportadores de Petróleo (OPEP) registrou um superávit da conta de
transações correntes de 60 bilhões de dólares e, a partir de 1974, a rápida
expansão do Euromarket tornou viáveis planos que apenas um ano
antes pareciam impossíveis. Um novo cenário, formado pelas mudanças nos
mercados energéticos e financeiros e pelas políticas de ajuste econômico,
começou a moldar-se, de modo a definir o resultado da Guerra Fria.
O aumento dos preços
do petróleo tornou impossível manter o mesmo esquema de subsídios com que a
URSS abastecia seus aliados. O petróleo que estes países recebiam era vendido
ao Ocidente a preços de mercado, tornando-se a principal fonte de divisas para os
parceiros do mercado comum socialista (Comecon). O modelo entrou em crise e os
países da Europa do leste só conseguiram enfrentá-la graças ao crescimento
explosivo do mercado de capitais, que os seguiu financiando. Os créditos
em Eurocurrency ao mundo comunista aumentaram 36% em 1976,
para 3,2 bilhões de dólares, e pareciam não ter fim. O custo dos empréstimos em
dólares era praticamente zero.
·
A economia do mundo
socialista desmorona-se
Confrontada com sua
própria crise, a URSS acabou alterando sua política de subsídios. A URSS
fornecia à Polônia 13 milhões de toneladas de petróleo a 90 rublos por
tonelada. O preço internacional era de 170 rublos. O mesmo acontecia com os
outros países do bloco. O Kremlin fornecia ¾ do petróleo à Europa do leste. Em
1975, decidiu ajustar os preços de seu petróleo de acordo com uma fórmula
baseada no preço médio dos últimos cinco anos. A economia soviética já não
estava em condições de continuar subsidiando tão generosamente seus aliados. Era
uma decisão que custava milhões de dólares. Para os países da Europa Oriental,
representava um encargo extraordinariamente pesado – mais do que um aumento
anual do PIB, no caso da RDA – e deixava-os diante de um cenário de eventual
quebra, incapazes de cumprir seus compromissos financeiros. Ao mesmo tempo, a
indústria energética soviética estava em crise. Seus aliados pretendiam
aumentar a demanda por energia em 47% por volta de 1990, muito acima do aumento
da produção, estimado em apenas 23%.
As únicas fontes de
financiamento para os países da Europa do leste eram os bancos ocidentais e os
organismos financeiros internacionais (ou a República Federal da Alemanha, da
qual dependia especialmente a RDA), que operavam com uma condicionalidade crescente,
exigindo ajustes fiscais severos e a privatização de empresas públicas.
Entre 1970 e 1976, os
membros do Comecon, com exceção da URSS, acumularam um déficit comercial com o
Ocidente de 26 bilhões de dólares. De 1971 a 1975, a dívida do bloco socialista
com o Ocidente passou de 764 milhões de dólares para 7,4 bilhões de dólares. Só
a dívida da RDA com o mercado financeiro ocidental, no final de 1974, era de
cerca de 3,5 bilhões de dólares e as projeções de seu crescimento já indicavam
que o processo se tornara inviável. Em março de 1977, os responsáveis
econômicos da RDA avisaram Erick Honecker, secretário-geral do partido, que,
pela primeira vez, enfrentavam graves dificuldades de pagamento. As divisas
obtidas com as exportações não eram suficientes para cobrir as necessidades de
importação. Se a RDA tivesse que comprar no Ocidente o petróleo fornecido pela
URSS, teria que desembolsar mais 4,5 bilhões de Valutamarks (VM, a moeda de
contas da RDA) entre 1974 e 1976. Com os fornecimentos de petróleo para o
quinquênio 81-85 congelados ao nível de 1980, eram 19,5 milhões de toneladas de
petróleo a menos do que o inicialmente previsto nos planos quinquenais. Cerca
de 3,2 bilhões de dólares teriam que ser importados do Ocidente. Seriam
necessários novos empréstimos, no momento em que a confiança dos bancos
ocidentais na economia dos países socialistas começava a enfraquecer.
No final de dezembro
de 1979, a URSS invadiu o Afeganistão. O presidente dos Estados Unidos, Jimmy
Carter, reagiu decretando um embargo aos grãos soviéticos e propondo que os
bancos norte-americanos revissem suas políticas de crédito ao mundo socialista.
Com a instabilidade, os bancos estrangeiros começaram a sacar seus depósitos de
curto prazo dos bancos estatais da Europa do leste num ritmo alarmante. No
segundo trimestre de 1982, os assessores econômicos da Alemanha Oriental
advertiam que, se não obtivessem novos créditos, teriam que declarar
insolvência. Estamos sendo atacados, disse o banqueiro húngaro János Fekete
à Euromoney em 1982. Não se tratava de uma ameaça militar, mas
que as instituições financeiras de todo o mundo estavam retirando seus recursos
do bloco comunista. As portas do Euromarket foram fechadas
para o Comecon. Na primavera de 1982, os bancos estrangeiros retiraram 1,1
bilhão de dólares da Hungria, deixando-lhe apenas 374 milhões de dólares para
efetuar seus pagamentos. Em 1981, o governo polonês tentou impor um
racionamento. Os preços dispararam, os salários caíram e muitos poloneses foram
direcionados a “novos empregos”. Para enfrentar os protestos, o presidente
Wojciech Jaruzelsky decretou a lei marcial em dezembro, com graves
consequências políticas para um governo já enfraquecido.
·
A mudança de cenário
da Guerra Fria
Em setembro de 1983,
na Inglaterra, Margaret Thatcher anunciou seu plano de fechar 75 minas de
carvão e de reduzir a força de trabalho de 202.000 mineiros para 138.000. A
ideia era quebrar a espinha dorsal da força sindical inglesa, para impor a
política de ajuste ao país. Diante da proposta, o poderoso National
Union of Mineworkers (NUM) entrou em greve. Mas, depois de três meses,
as sondagens mostravam que 71% do país era a favor do fechamento das minas
deficitárias; 51% da população preferia o triunfo do governo; e apenas 21%
apoiavam os trabalhadores. Em 3 de março de 1985, após mais de um ano de greve
e já sem recursos, os mineiros começaram a retornar ao trabalho, sem terem
obtido qualquer concessão do governo. Cinco anos depois, 170 minas, mais da
metade das existentes, foram fechadas e 79.000 mineiros perderam seus empregos.
As mesmas forças
conservadoras que apoiavam as reformas na Inglaterra sustentavam a oposição na
Polônia. Enquanto o líder dos mineiros, Arthur Scargill, não conseguiu
construir uma base de apoio popular para sua greve, na Polônia, o sindicato
Solidariedade tinha o apoio de dez milhões de pessoas em seus protestos contra
o governo. O governo socialista não dispunha dos mesmos recursos para impor uma
política de austeridade que o governo conservador inglês, um aspecto que Fritz
Bartel, na minha opinião, não destaca. Fritz Bartel argumenta que, ao contrário
do que alguns pensam, a crise do mundo socialista não surgiu com a perestroika nos
anos 1980, mas com a crise do petróleo de 1973 e seu crescente endividamento.
A grande demanda de
capitais por parte dos Estados Unidos, consequência de seus déficits
orçamentários e das elevadas taxas de juro pagas, graças às políticas de ajuste
do presidente da Reserva Federal, contribuiu para desviar para a economia
norte-americana empréstimos anteriormente investidos na Europa do leste. Esta
situação, associada à redução do abastecimento soviético de energia subsidiada,
levou as economias do leste europeu a uma inevitável renegociação de seus
empréstimos com os bancos ocidentais. A Hungria negociou um acordo com o FMI em
dezembro de 1982, que lhe rendeu 700 milhões de dólares em empréstimos do Banco
Mundial. Mas, para criar um superávit fiscal e começar a pagar suas dívidas,
teve que adotar medidas drásticas: aumento de preços, corte de subsídios,
fechamento de empresas, redução do déficit fiscal e desvalorização de sua
moeda, o florim. A Polônia aderiu ao FMI no verão de 1986. Os soviéticos não
gostaram da medida, mas não podiam evitá-la. A dívida da Polônia era de 30
bilhões de dólares.
A Alemanha Oriental
não queria fazer um acordo com o FMI. Preferiu negociar com a RFA condições
para a abertura da fronteira em troca de novos recursos. Foram emprestados dois
bilhões de marcos, entre 1983 e 1984, “o que tornou a RDA dependente do marco alemão
como um viciado em heroína depende desta”. Estes resgates significaram uma
mudança dramática no equilíbrio de poder no cenário da Guerra Fria.
·
O “sucesso” do
capitalismo democrático ou a decadência do Ocidente
Para Fritz Bartel, o
capitalismo democrático prevaleceu porque foi capaz de impor ajustes econômicos
a seus cidadãos, ganhando apoio para um discurso que insistia na
indispensabilidade de tais reformas. O comunismo colapsou porque não conseguiu
fazer isso. Foi o triunfo do “There is no alternative” de
Margaret Thatcher. A perestroika, o processo de reformas promovido
por Mikhail Gorbachev na URSS nos anos 1980, é vista como a versão socialista
da “economia pelo lado da oferta”. Procurou alterar a política de pleno
emprego, de preços e de subsídios.
Para Fritz Bartel, a
tentativa fracassou porque os dirigentes soviéticos não conseguiram impor
reformas econômicas dolorosas, entre outras razões, porque lhes faltava a
tradição ideológica liberal, que priorizava o individual. Em sua opinião, as
crises polonesa e inglesa mostraram que o “capitalismo democrático” produz um
Estado mais forte e mais legítimo do que o “socialismo autoritário”. Mas a
análise de seu próprio texto nos permite destacar a diferente situação
econômica dos dois mundos como o fator-chave para estes resultados: a de um
socialismo enfraquecido, cada vez mais dependente dos recursos do Ocidente,
contra um capitalismo “fortalecido” pelas políticas de Margaret Thatcher e
Ronald Reagan, cujas reformas estavam na mesma direção dos interesses do
capital.
Na reunião anual do
FMI, em 1986, Janos Fekete argumentou que, desde a crise da dívida dos anos 80,
o fluxo de capitais tinha tomado uma direção errada: dos países pobres para os
países ricos, dos países em desenvolvimento para os países desenvolvidos.
Na primeira metade dos
anos 1980, a combinação das políticas de ajuste promovidas por Paul Volcker; o
aumento das despesas militares (resultado da corrida armamentista em que as
duas superpotências estavam envolvidas); a queda dos preços internacionais do
petróleo e da produção na URSS, criaram dois blocos políticos com capacidades
materiais e econômicas muito diferentes. Se, entre 1972 e 1982, 147 bilhões de
dólares entraram nos países em desenvolvimento, a tendência inverteu-se. Entre
1983 e 1987, 85 bilhões de dólares foram transferidos para os países
desenvolvidos. Ajustes severos enfraqueceram a possibilidade de crescimento
futuro, enquanto o superávit obtido através de grandes sacrifícios destinava-se
ao pagamento de juros.
Ronald Reagan
conseguiu resolver o problema do déficit crescente norte-americano com a
entrada massiva de capitais estrangeiros, na sequência do aumento das taxas de
juro decretado por Paul Volcker. Confrontado com seus próprios problemas, o
governo soviético teve que se preocupar com as condições de vida de sua
população. Para Mikhail Gorbachev, a alternativa para resolver suas
dificuldades econômicas era acabar com o sistema de preços subsidiados de
trocas com o Comecon e fixá-lo em moedas fortes, a preços de mercado.
Mikhail Gorbachev
começou a sugerir que cada país resolvesse seus próprios problemas. A política
de subsídios não podia continuar como antes, nem voltariam os dias de
intervenção militar nos países em crise, como acontecera na Hungria em 1956 ou
na Tchecoslováquia em 1968. Foi uma mudança fundamental, de enormes
consequências para a época, que lançou as bases das novas relações da Rússia
com seus antigos aliados. Mas é na reforma econômica, que pôs a economia russa
de pé, que reside um fator-chave para explicar a Rússia de hoje. O que era
então sua fraqueza, lançou as bases para a fortaleza que hoje demonstra face às
sanções draconianas do Ocidente no contexto da guerra da Ucrânia. Ao substituir
o sistema de subsídios, que sangrava sua economia, pela troca a preços de
mercado, estabeleceu as bases para seu próprio desenvolvimento, baseado em seus
recursos naturais.
Nas mudanças que já
fazem cerca de 50 anos e que alimentaram o voo curto dos que sonhavam com o
“fim da história”, escondiam-se os fundamentos de uma história muito diferente,
em que se encontravam as raízes da decadência do Ocidente.
·
A unificação alemã e
as ambições de Washington
Na República
Democrática Alemã (RDA), a situação econômica e política continuava
deteriorando-se. Nos últimos dois meses de 1985, o preço do petróleo nos
mercados internacionais despencou. O petróleo refinado era o principal produto
de exportação da RDA. Era produzido a partir de petróleo cru fornecido pela
URSS a preços subsidiados. Em 1985, a RDA exportou 2,5 bilhões de volutamarks (VM),
valor que baixou para 1 bilhão em 1986 e para 900 milhões no ano seguinte. A
austeridade parecia ser a única forma de evitar a insolvência do Estado. Se o
país quisesse manter o fluxo de capitais aberto, teria que duplicar suas
exportações, mantendo-se constantes as importações. Para isso, seriam
necessárias reformas econômicas, incluindo o aumento dos preços, eliminação de
subsídios, fechamento de empresas e desemprego. Contudo, o secretário-geral do
partido e presidente da RDA, Erick Honecker, estava relutante em reduzir os
benefícios do sistema social alemão.
A dívida com o
Ocidente tinha aumentado de dois bilhões de VM em 1970 para 49 bilhões de VM em
1989, o que deixava o país completamente dependente do capital ocidental, e 65%
das despesas eram financiadas por créditos. Em 1990, só para manter a dívida estável,
seria necessário reduzir o consumo entre 25% e 30% e obter um superávit
comercial de 2 bilhões de VM. A RDA só poderia sobreviver com empréstimos de
sua rival, a RFA, a menos que conseguisse obter apoio da URSS. Em 1 de novembro
de 1989, Egon Krenz, que tinha substituído Erich Honecker como chefe de Estado
e do partido em outubro, viajou a Moscou para se encontrar com Mikhail
Gorbachev. O líder soviético teria ficado surpreso com a gravidade da situação
econômica da RDA, mas reiterou que não lhe podia fornecer mais do que o
previsto no plano quinquenal 86-90.
Em 4 de novembro,
cerca de meio milhão de pessoas reuniram-se na Alexander Platz, em Berlim,
exigindo reformas. Era a véspera da queda do muro. Alexander Schalk, diretor da
Seção de Coordenação Comercial da RDA, viajou a Bonn para se encontrar com o
ministro federal de assuntos especiais, Rudolf Seiters, e com o ministro do
interior, Wolfgang Schauble. Informado dos resultados da reunião, o chanceler
Kohl decidiu impor condições a Krenz: exigiu uma data para a realização de
eleições, com a participação política da oposição, em troca de apoio
financeiro. Os recursos da RFA só seriam disponibilizados se a RDA criasse
condições de mercado para a economia e a abrisse à atividade privada. Em
dezembro, um mês após a queda do muro, Krenz foi substituído pelo secretário do
partido em Dresden, Hans Modrow. Kohl chega a Dresden em 19 de dezembro para se
encontrar com Modrow: voltou a defender que uma lei que garantisse eleições
livres e um marco jurídico que protegesse os investimentos estrangeiros na RDA
eram condições indispensáveis para a ajuda. Modrow antecipa as eleições,
inicialmente previstas para maio, para 18 de março de 1990 e solicita aos
alemães ocidentais um novo empréstimo de 15 bilhões de marcos alemães.
As eleições foram
vencidas pela opositora “Aliança pela Alemanha”, com 48% dos votos, e o líder
da União Democrata-Cristã (CDU), da Alemanha Oriental, Lothar de Maizière,
tornou-se o novo primeiro-ministro. Em 6 de fevereiro, Kohl tinha anunciado sua
intenção de iniciar imediatamente negociações para unificar as moedas das duas
Alemanhas. O processo de unificação acelerava-se, mas uma Alemanha unida era
vista com desconfiança tanto pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher
como pelo presidente francês François Mitterrand. O norte-americano George
Bush, no entanto, não parecia estar preocupado. Ao contrário, os Estados Unidos
buscava consolidá-la. A Alemanha era o suporte de sua presença na Europa, por
isso sua adesão unificada à OTAN era de importância vital para Washington.
·
A perestroika e os
ajustes econômicos na URSS
A economia da URSS
também estava em queda livre. No primeiro semestre de 1987, Gorbachev tinha
transformado a perestroika numa campanha de reformas radicais. A ideia era
substituir a coerção administrativa do Estado pela coerção econômica do
mercado. A ideia era fazer com que os lucros privados (das empresas públicas),
as falências, a desigualdade salarial e a mobilidade do trabalho passassem a
fazer parte das regras econômicas. Há quem considere que este foi o início do
abandono do socialismo, uma ideia que não compartilho. A este respeito,
gostaria de salientar que, para mim, o aspecto fundamental – a propriedade –
continuava pertencendo ao Estado. Mas os dirigentes soviéticos não tinham sido
capazes, em quatro anos, de deter a deterioração de sua economia. A reforma do
sistema de preços, essencial para a perestroika, revelou-se politicamente
impossível. A liberalização dos preços e o desemprego só se concretizaram
realmente quando Boris Iéltsin chegou ao poder na Rússia, em 1992.
Mikhail Gorbachev
perguntava-se qual seria a saída: aumento dos preços? Os vastos recursos
naturais da Rússia permitiram-lhe evitar a dependência do capital ocidental.
Mas o colapso dos preços do petróleo em 1985-86 e as reformas econômicas dos
primeiros anos da perestroika tinham deteriorado a balança de pagamentos. Em
abril de 1990, o presidente do banco de comércio exterior da Rússia, Yuri
Moskovskii, avisou Mikhail Gorbachev da dificuldade de obter novos recursos
diante de uma atitude cada vez mais negativa dos credores estrangeiros. O
problema não era tanto o montante da dívida, mas o ritmo do crescimento: tinha
passado de 16 bilhões de dólares em 1985 para 40 bilhões em 1989.
A experiência de
vários países nos anos 1980 (como México, Brasil e outros países
latino-americanos, assim como a Polônia e a Iugoslávia) mostrava que o
adiamento do pagamento da dívida tinha consequências econômicas e políticas
adversas. Mas renegociar a dívida não estava nos planos dos soviéticos, pois
isso os deixaria nas mãos do FMI.
·
As negociações sobre a
OTAN
Em 14 de maio de 1990,
os líderes soviéticos reúnem-se com enviados da RFA para discutir sua situação
econômica. O governo alemão afirma que o apoio financeiro só será concedido se
fizer parte de um pacote que inclua uma solução para o “problema alemão”:
unificação do país, adesão à OTAN e retirada das tropas soviéticas. Quando o
secretário de estado James Baker chegou a Moscou, em meados de maio, disse a
Gorbachev que a OTAN deixaria de ser uma ameaça para a URSS porque passaria de
uma organização militar para uma organização de caráter político, que não se
ampliaria à Alemanha Oriental. Apresentou-lhe uma lista de nove reformas nesse
sentido. Quando o Pacto de Varsóvia se desfez, seus antigos membros, incluindo
a URSS, foram convidados a enviar uma representação diplomática para a sede da
OTAN em Bruxelas.
Os Estados Unidos
considerava a possibilidade de dar à URSS os 20 bilhões de dólares que esta
pedia para retirar suas tropas da Europa central e permitir que a Alemanha
aderisse à OTAN. Mas a oferta de Baker não era a única sobre o assunto em
Washington. Bent Scrowcroft, conselheiro de segurança nacional de George Bush,
escreveu-lhe um memorando em 29 de maio. Garantiu-lhe que a ajuda econômica era
uma forma direta e rápida de garantir a vitória do Ocidente na Guerra Fria, que
seria uma opção estratégica para conseguir a unificação da Alemanha na OTAN e a
retirada dos militares soviéticos da Europa do leste. Se Mikhail Gorbachev
estivesse disposto a aceitar estes termos, a assistência financeira poderia
definir o armistício da Guerra Fria a nosso favor, afirmou. Na sua opinião, as
mudanças em curso seriam irrelevantes se os Estados Unidos não conseguissem perpetuar
seu próprio poder no continente.
·
As exigências da URSS
A união monetária
alemã estava prevista para 1 de junho, o que significava que o custo da
manutenção das tropas soviéticas na Alemanha dispararia. O custo teria que ser
pago agora em marcos alemães e não na moeda desvalorizada da RDA. Dos seis
milhões de toneladas de petróleo que custava, passaria para 17 milhões, se nada
mudasse. Este valor era muito superior ao que a URSS fornecia a toda a RDA. Ficava
pendente a reação da Rússia. Qual seria o lugar desta Alemanha: na OTAN, no
Pacto de Varsóvia, neutra? Para Gorbachev, manter a Alemanha fora da OTAN era
fundamental. A URSS ainda tinha 380.000 soldados na Alemanha. A Guerra Fria não
podia terminar sem resolver esta questão. “Ninguém devia esperar que uma
Alemanha unificada aderisse à OTAN”, disse Gorbachev. “A presença de nossas
forças não o permitiria. Podemos retirá-las, se os Estados Unidos fizerem o
mesmo”.
O Kremlin exigiu que a
RFA assumisse os compromissos da RDA com a URSS. Esta demanda era compatível
com a estratégia de Kohl, que estava disposto a resolver estes problemas com os
recursos financeiros alemães. Quando Gorbachev se encontrou com o chanceler
alemão, em 15 de julho, pediu-lhe um plano de retirada das tropas soviéticas do
país e um acordo sobre a adesão da Alemanha à OTAN. Disse-lhe que, se a URSS
garantisse a total soberania da Alemanha, estava disposto a financiar a
retirada das tropas e a assinar um amplo tratado de cooperação. Se decidissem
aceitar a unidade da Alemanha, os alemães os ajudariam a manter sua economia em
funcionamento. No final de agosto, sentaram-se para negociar esta ajuda. Os
soviéticos pediram 20 bilhões de marcos e Kohl ofereceu oito. Depois, aumentou
sua oferta para doze e, finalmente, para quinze. Gorbachev concordou com a
adesão da Alemanha à OTAN, mas exigiu que esta não fosse estendida à Alemanha
Oriental enquanto as tropas russas lá estivessem, o que poderia demorar de três
a quatro anos, de acordo com os direitos de ocupação da Segunda Guerra Mundial.
Em 12 de setembro, as potências ocupantes da Alemanha assinaram um acordo em
Moscou renunciando a esses direitos. Em 3 de outubro de 1990, Kohl celebrou a
absorção da RDA pela RFA na Porta de Brandemburgo. Um mês depois, no
aniversário da queda do Muro de Berlim, Gorbachev e Kohl assinaram um acordo
sobre a retirada das tropas soviéticas da Alemanha em três anos.
·
Promessas não
cumpridas? Uma nova ordem mundial
O debate sobre o
cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Unidos e pela Alemanha
diante da União Soviética nas negociações de 1990 sobre a ampliação da OTAN
para o leste, ganhou renovada atualidade com o conflito na Ucrânia.
Em novembro de 1990,
um ano depois da queda do Muro de Berlim, os países membros da Conferência
sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) assinaram a “Carta de Paris para
uma nova Europa”. “A Europa está libertando-se da herança do passado”. “A era da
confrontação e da divisão da Europa terminou”, afirmam no primeiro parágrafo do
documento. Trinta e quatro anos depois, é evidente que nada disto era verdade. “Havia
ou não garantias ocidentais de que a OTAN não se expandiria para leste em troca
do acordo soviético para a reunificação alemã?”, perguntava a acadêmica
norte-americana Mary Elise Sarotte num artigo publicado em 2019, trinta anos após a
queda do Muro de Berlim. Na verdade, tratava-se da atualização de um artigo que
a mesma autora tinha publicado em 2014 na revista Foreign Affairs.
Não é possível pretender resolver esta questão aqui, mas o trabalho de Mary
Elise Sarotte está atualizado, com referências a arquivos oficiais recentemente
desclassificados, sendo meticulosa sua análise destas referências.
A que conclusões ela
chega? “As provas mostram que, ao contrário do que se pensa em Washington, a
questão do futuro da OTAN – não apenas na RDA, mas em toda a Europa Oriental –
surgiu em fevereiro de 1990, pouco depois da queda do Muro”.
“Altos responsáveis
estadunidenses, trabalhando em estreita colaboração com os líderes da RFA,
deram a entender a Moscou, durante as negociações deste mês, que a Aliança não
poderia se expandir, nem mesmo para a metade oriental de uma Alemanha ainda por
reunificar-se”. As provas documentais, diz Mary Elise Sarotte, mostram que “os
Estados Unidos, com a ajuda da RFA, foram rápidos a pressionar Gorbachev para
que concordasse com a reunificação, mas sem fazer quaisquer promessas escritas
sobre os futuros planos da Aliança”. Em poucas palavras, acrescenta, sobre esta
questão “nunca houve qualquer acordo formal, como alega a Rússia”. Parece
evidente que não existe um acordo formal, escrito. Mas também parece evidente
que a questão foi discutida e as promessas, feitas por alguns, foram mais tarde
revistas por outros altos funcionários norte-americanos. Mary Elise Sarotte
acrescenta que, de acordo com documentos conservados no ministério das relações
exteriores da RFA, Hans Dietrich Genscher, então ministro das relações
exteriores, disse a seu colega britânico Douglas Hurd, em 6 de fevereiro de
1990, que “Gorbachev queria eliminar a possibilidade de uma futura expansão da
OTAN para a RDA e para o resto da Europa Oriental”. Genscher propôs que a
Aliança declarasse publicamente que a organização não tinha “intenção de
expandir seu território para leste. Tal declaração deveria ser de carácter
geral e não deveria fazer referência apenas à Alemanha Oriental”.
O debate prossegue
nesta linha. Na ausência de um compromisso escrito, há quem defenda que não
existe qualquer compromisso, como Mark Kramer, diretor do projeto de Estudos
sobre a Guerra Fria na Universidade de Harvard, que discorda de Sarotte. Outros
– incluindo os russos – reiteram as diferentes ocasiões em que a questão foi
discutida e as promessas feitas de não ampliar a OTAN para o leste. Como
sabemos, para a Rússia, a promessa não foi cumprida. Vladimir Putin referiu-se
a este caso em seu grande discurso na Conferência de Segurança de Munique, em
2007. “O que aconteceu com as garantias que nossos parceiros ocidentais nos
deram após a dissolução do Pacto de Varsóvia?”, perguntou.
O fato é que a OTAN
continuou expandindo-se para o leste, até às fronteiras da Rússia, criando uma
realidade política muito diferente daquela que os países europeus imaginaram em
1990, em sua “Carta de Paris”. Um novo muro foi percorrendo mais de mil
quilômetros para o leste, até que a Rússia decidiu rompê-lo em fevereiro de
2022, quando suas tropas atravessaram a fronteira ucraniana. Moscou declarou
inaceitável sua adesão à OTAN, criando uma nova realidade política na Europa
com repercussões mundiais, cujo resultado porá fim à ordem criada no final da
Segunda Guerra Mundial, embora ainda não saibamos o que a substituirá.
Fonte: Por Gilberto
Lopes, em A Terra é Redonda
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