Lula, ainda faz sentido estimular a
exportação de alimentos?
Em 1º de maio,
enquanto o Rio Grande do Sul entrava de vez em estado de tensão por causa das
enchentes, o Ministério da Agricultura e Pecuária emitia um comunicado de imprensa em
tom ufanista: “O primeiro quadrimestre de 2024 será lembrado como o mais
produtivo da história em termos de abertura de mercados internacionais para o
agronegócio brasileiro.”
O governo Lula
celebrou a abertura de 31 mercados em 19 países. Desde o início do mandato,
foram 109 novos mercados em 50 nações diferentes. Como faz questão de ressaltar
o próprio ministério, a lista “inclui não somente a exportação de produtos já
consolidados, como carnes e soja, mas também uma variedade de outros itens
agropecuários”: pescados, sementes, gelatina, ovos, açaí, café e
companhia.
Àquela altura, o
Brasil já havia exportado 30,1 mil toneladas de arroz. Seria o suficiente para
garantir a dieta da população brasileira durante um dia do ano. Em 2023, as 800
mil toneladas exportadas garantiriam o abastecimento da população por 28 dias.
Muito ou pouco? Você decide.
Será que a abertura de
novos mercados ainda é razão para celebrar? Num cenário em que a inflação é
motivo de insatisfação de boa parte da população – e, inclusive, afeta a
popularidade do governo e a imagem pessoal de Lula. Num cenário em que o arroz
bateu 27% de aumento de preços em 12 meses. Num cenário em que 27% dos lares são afetados por
algum grau de insegurança alimentar. Lula, será que faz sentido?
“E quanto mais
qualidade a gente tiver, mais vamos exportar. É importante que a gente tenha
noção que esse país merece a chance de crescer”, disse o presidente, em
abril, durante a visita a um
dos 38 frigoríficos recém-habilitados a exportar para a China. “É uma homenagem
ao país chinês a gente entregar carnes de qualidade, abrindo novos mercados e
gerando empregos no Brasil.”
As palavras foram
ditas numa unidade da JBS. Nenhuma empresa é mais simbólica da política de
abertura de mercados impulsionada no primeiro governo Lula, lá em 2003. Com
muito financiamento do BNDES, a JBS deixou de ser um frigorífico pequeno no
interior de Goiás para ser a maior empresa alimentícia do mundo em faturamento
– como gosta de narrar a corporação em seu mito fundador.
A JBS tem uma ficha
que não cabe em nenhum texto. Só para citar alguns feitos, é uma empresa
acusada inúmeras vezes de comprar gado de áreas de desmatamento ou grilagem.
Joesley Batista, ex-CEO, foi flagrado na garagem do palácio presidencial em uma
estranha negociação com Michel Temer. É uma empresa contra a qual pesam
milhares de denúncias de violações trabalhistas – incluindo questões sanitárias graves.
Hoje, a JBS também é
emblema de como a riqueza do agro produz muita pobreza. Reproduzo um trecho
de reportagem de Mariana Costa
recém-publicada pelo Joio:
Entre 2013
e 2023, a JBS teve um aumento de 303% em sua receita líquida, fez cerca de 40
aquisições de frigoríficos e outras empresas ao redor do mundo e o salário dos
administradores subiu 2000%.
Neste
mesmo período, em cidades como Lins (SP), onde a JBS opera seu maior
frigorífico, os cadastros do Bolsa Família aumentaram 51%. Em Goiânia, esse
crescimento foi ainda maior, de 162%.
Em tese, precisamos
dos dólares do agronegócio para fechar a balança comercial. Afinal, com o tempo
deixamos de exportar aviões e automóveis, o que nos força a produzir uma
quantidade imensa de bens de baixo valor. Isso demanda deixar o real
desvalorizado, o que encarece sobremaneira os produtos importados (que hoje não
são poucos) e afeta a indústria brasileira, que grosso modo está falida.
·
Uma racionalidade
insensata
Não se trata de uma
questão ufanista. O problema não é necessariamente que um gringo coma nosso
peixe, mas que se construa um sistema alimentar absolutamente ilógico do ponto
de vista social, cultural, econômico e ambiental.
Se lá atrás a promessa
era de que a produção em larga escala seria a única maneira de alimentarmos uma
população global enorme, bom, essa promessa falhou amargamente. E está
crescentemente se mostrando inviável.
Entre janeiro e abril
– antes, portanto, da tragédia no Rio Grande do Sul –, o Brasil já havia
importado 140 mil toneladas de arroz com casca – ou 3,5 vezes mais que as
exportações. Após as enchentes, o governo federal autorizou a Companhia Nacional
de Abastecimento (Conab) a trazer de fora até
um milhão de toneladas de arroz. A Conab anunciou que fará em breve um
primeiro leilão para comprar 104 mil toneladas de países do Mercosul, que serão
vendidas à população do Rio Grande do Sul ao preço de R$ 4 o quilo, e à
população em geral a R$ 8 o quilo.
“Eu vejo que, na
verdade, o agro é estruturalmente negativo”, disse o economista Valter
Palmieri, criador do canal de Instagram Comida e
Economia. Eu havia perguntado se existe algum
argumento para defender essa ênfase governamental na abertura de novos
mercados. Ele respirou por alguns segundos, olhou para o alto, e não encontrou
nenhum.
“Isso cria um
aprofundamento do subdesenvolvimento, porque leva a uma especialização. Sempre
que você tem um setor muito mais lucrativo que outros, e normalmente é para
exportar, e de produtos que são commodities, em que não precisa de uma força
produtiva tecnológica, como é o caso de alimentos, minério de ferro e petróleo,
você diversifica menos toda a economia. Você fica dependente, dependente de
poucos compradores.”
Na véspera, quando
contei a Valter o que estava buscando discutir nesse texto, ele me mandou pelo
WhatsApp um gráfico e uma mensagem dizendo que, em 2023, o Brasil bateu recorde
na exportação de alimentos. Aqui vale fazer uma ressalva: ele levou em consideração
tudo o que se possa chamar de alimento, o que inclui a soja, que é de longe a
líder dessa ofensiva – 101 milhões de toneladas, quase a metade do total.
“Parece que não existe
uma coordenação entre uma estratégia de desenvolvimento econômico, de segurança
e diversidade alimentar, com essa pauta”, continuou. “É como se existisse uma
independência total do Ministério da Agricultura com uma questão externa. O que
eles conseguirem de ampliação de mercado está bom.”
A tragédia no Rio
Grande do Sul trouxe bons exemplos dessa falta de coordenação. “Se todos os
estados saírem da monocultura, e ampliarem um pouco o cardápio de produção de
alimentos, o Brasil é tão grande que, se acontecer um problema em um estado, a
produção dos outros compensa”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Mas não são os estados
que produzem monocultura: são os fazendeiros. Se, lá na ponta, vale mais a pena
produzir soja, por que diabos alguém produziria arroz e feijão? São abundantes
os exemplos de como o Plano Safra e o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf) induzem a produzir commodities para exportação.
Um levantamento feito em 2020 mostrou
como boi, soja e milho ficaram com 75% dos recursos do Pronaf naquele ano.
Além disso, soja e
milho têm mercado garantido, o que faz muita diferença na hora de tomar a
decisão sobre o que cultivar. Como havíamos mostrado em 2022, o discurso do
agro de que antigamente o Brasil era um grande importador de alimentos não se sustenta. E, em caso de uma catástrofe ou uma
quebra de safra, tínhamos tudo para nos tornarmos grandes
importadores.
Laércio Meirelles,
consultor em agroecologia, integrante da Rede EcoVida e da Articulação Nacional
de Agroecologia, estava em meio a mais uma tempestade no Rio Grande do Sul
quando nos encontramos para uma conversa virtual. Era importante falar com
alguém que conhece as áreas afetadas pela tragédia deste mês e, ao mesmo tempo,
tem cobrado do governo federal um maior estímulo a um modelo agrícola
sustentável.
“Eu acho que o
problema não é a exportação em si, mas é um desenho agrícola que privilegia
grandes extensões de monocultivo de uma só planta. Como engenheiro agrônomo, eu
olho para o modelo de agricultura que estamos incentivando, voltado à produção
de commodities, esquecendo da produção de alimentos num país que tem
sistematicamente desestabilizado sua capacidade de regulação, de oferta e
demanda de produtos agrícolas essenciais.”
Ele considera que o
governo Lula tem ficado aquém do esperado em termos de estímulo à agroecologia.
Para ele, existe solidez suficiente para assegurar que os modos de produção em
base agroecológica podem dar conta de garantir o abastecimento interno. “A gente
já tem um número de informações e de evidências suficientes para dizer que
gostaríamos de experimentar uma transição agroecológica no modelo da cultura
brasileira. O Fernando Haddad fala em transição ecológica, mas para fazer uma
transição ecológica precisa fazer uma transição agroecológica.”
A concentração da
produção nacional de arroz no Rio Grande do Sul não vem de hoje. Pelo
contrário, ao longo dos dois primeiros governos Lula, e desde então sem
inflexão, os produtores gaúchos responderam por uma fatia cada vez maior. Não
sei se faz falta lembrar que o arroz é um dos alimentos mais consumidos pelos
brasileiros.
“Quanto mais vai se
abrindo mercado ao longo dos anos, quando o setor tem um excedente de produção,
e portanto isso faria o preço baixar, o setor prefere exportar para algum
desses países. Então, no momento em que poderia baixar o preço, não vai
baixar”, analisa Valter Palmieri.
Agora estamos perto de
ver o contrário: a escassez de arroz e a especulação devem fazer os preços
aumentarem internamente, o que torna o mercado brasileiro atrativo para os
produtores, mas péssimo para o todo da sociedade. De novo, é uma questão
mediada pelo mercado, e não pela prioridade de abastecimento humano.
Em peso consumido, o
arroz só é superado pelo feijão e pelo café, o que, para os fins da nossa
discussão, significa que esse trinômio representa algo que o governo deveria
olhar com absoluto carinho – são 131 gramas de arroz por dia por pessoa,
segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE.
O fato de só agora
terem se lembrado do risco de deixar o arroz concentrado no Sul me faz lembrar
Bertolt Brecht: “Para quem tem uma boa posição social, falar de comida é coisa
baixa. É compreensível: eles já comeram.”
·
O agro é tudo?
O título do comunicado
do Ministério da Agricultura era curioso: “A cada quatro dias, um novo mercado
foi aberto para o agro neste ano.” Uma síntese, entre tantas possíveis, da
ideia de que o agro é tudo. De fato, é de se esperar que o cenário de exportação
seja dominado por grandes empresas – portanto, pelo agro.
Mas isso não significa
que pequenos produtores estejam de fora do ciclo de venda ao exterior: eles
podem comercializar com atravessadores e grandes empresas.
Tampouco significa que
apenas commodities sejam exportadas. Em março, a África do Sul se abriu a
nossos pescados – em fevereiro havia sido a Austrália. Mamão fresco está
liberado para viajar ao Chile. E o açaí já pode migrar para a Índia, desde
que seja em pó.
Em março, alguns
colunistas de jornais noticiaram que, diante da queda na popularidade e da
dificuldade de convívio com o Congresso, Lula faria uma nova tentativa de
aproximação com o agronegócio. Seriam realizados encontros periódicos para
entender como o governo poderia ser ainda mais benéfico às empresas e aos
fazendeiros.
No dia 21 daquele mês,
a primeira rodada se deu com a Associação Brasileira dos Produtores e
Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas). O presidente da organização,
Guilherme Coelho, não poupou elogios: “O apoio contínuo do governo tem sido
fundamental para o excelente desempenho que alcançamos até o momento, com
conquistas significativas, como o recorde de mais de 1,2 bilhão de dólares em
exportações.”
Mas a fala mais
emblemática de todas, para mim, veio mais uma vez de Lula. Essa frase foi dita
em 2024, mas poderia tranquilamente ter saído da boca dele 20 anos atrás: “Se
fizermos uma política do ganha-ganha, no qual ganha empresários, ganha governo,
ganha o trabalhador rural, ganham os profissionais, esse país vai dar
certo.”
Diante de tudo o que
aconteceu nesse período, essa declaração é uma contradição per se.
Lá atrás, seria possível defender a ideia de convívio entre vários modos de
produção. Hoje, o que estamos vendo é um massacre do agronegócio contra os
povos tradicionais, a agricultura familiar, a agroecologia e os trabalhadores
dessas empresas.
“Para mim, é
impossível você incentivar a diversidade de alimentos, a produção para o
mercado interno com um crescente incentivo para commodities ao mercado externo.
Não tem como. É totalmente relacionado”, diz Valter Palmieri. Ao mesmo tempo,
ele vê o lado meio cheio do copo ao analisar as declarações recentes de
Fernando Haddad: quem sabe tenha se aberto o espaço para a pressão da sociedade
em direção à construção de um sistema alimentar que faça sentido.
Essa é a hora de
lembrar o óbvio: a política de estímulo às exportações tem sido uma política de
Estado, que sobrevive às mais bruscas mudanças de governo. Jair Bolsonaro
também celebrava recorde sobre recorde na abertura de mercados.
Em uma série de reportagens feitas
ao longo de 2023, flagramos o momento simbólico no qual o setor de frutas
ultrapassou 1 bilhão de dólares em exportações. Agora, essa cifra já é passado.
Nossas investigações mostraram como o setor tem fartas denúncias de
violações trabalhistas e uma grande demanda por água,
justamente em áreas do Nordeste que sofrem com estresse hídrico.
O preço das frutas
acumula 16,6% de aumento nos últimos doze meses, contra uma inflação geral de
3,69%. Na verdade, como temos exposto, a
inflação de alimentos como um todo está constantemente acima da inflação geral
desde 2007. Muitos fatores entram nessa equação, e certamente a maneira como
usamos a terra é um deles.
“E essa é a maneira
como o agronegócio gosta de se vender, como um grande case de
sucesso no Brasil. Mas um país que tem 30 milhões de pessoas em insegurança
alimentar aguda, não é uma agricultura de sucesso. Que sucesso é esse em que
seu povo está passando fome?”, questiona Laércio Meirelles.
Fonte: O Joio e o
Trigo
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